DISTANTES

Eu liguei o abajur com o quarto já escuro. Antes disso, o único vestígio de claridade era a cor magenta do por do sol, que transava com a coloração púrpura nostálgica da noite que chegava, por trás das moitas de algodão. Eu havia ido à conveniência mais próxima comprar seis long necks de Budweiser para embalar minha inspiração.

Entre uma leitura de alguns aforismos de filosofia de boteco e uns riscos no papel, eu prestava atenção em Chopin, que me espreitava ali, no meu quarto. Eu amava meu canto, principalmente porque podia fechar a porta e ficar calado. Sempre tive a mania de fechar a porta e passar a chave, mesmo estando sozinho.

Comecei então a divagar sobre como seria bom ter companhia, mas depois me arrependi da ideia de chamar um amigo para tratar de assuntos triviais. Eu estava introspectivo, mas não queria estar.

Liguei para Lô, que chegou um pouco mais tarde que o combinado com mais umas oito cervejas. Eu já tinha bebido quatro. Mandei entrar. Eu acendia um Lucky Strike de menta na janela da sala. Passou direto para a geladeira, resmungando porque trabalhou o domingo inteiro, xingando o gerente e os clientes do supermercado.

–Puta que pariu, só uma Bohemia bem gelada pra me fazer esquecer daquele inferno! E aí, tais bem?

-Tô de boa, tava dormindo.

- Vida boa é uma dessa, hein? Só vive de cueca no meio da sala! - Falou sorrindo sem olhar para trás, mais pelo costume que pela certeza de que eu realmente estava seminu.

- Nem sei. Mas ”pimenta no cu dos outros é refresco”, né? Bora falar de coisa boa. Tirando a parte ruim, teu dia foi bom? - Perguntei entre tragos que dava no cigarro, sem estourar o sabor do filtro.

-Prefiro nem comentar. olha, vou tomar um banho aqui, passei o dia de calça, tô fedendo. Passei na feira e comprei frutas lá pra casa. Nem perguntei se tu queria. Foi mal! Pode falar que eu te escuto! - Se dirigiu ao banheiro, falando alto.

-Porra de fruta. Odeio fruta, mas deveria comer. Fumando e bebendo vou acabar morrendo cedo. - Havia dado uma aula durante a semana sobre hábitos saudáveis e aquilo me deixou reflexivo.

-Morre nada. Vaso ruim nem quebra. Falou num tom irônico e um riso meio escandaloso. Se fosse pra morrer, já teria morrido de amor, viu?

Continuei calado. Dei um último gole na cerveja que já estava morna, criando peixes. Descartei o cigarro no mistério da noite.

– Pois é, antes de ligar pra tu tava aqui pensando na vida. Fico hipnotizado olhando o por do sol. Hoje pensei que o céu fosse feito de algodão doce. - Falei olhando para o breu, que de doce já não tinha mais nada. Only darkness.

- Eu também gosto dessa hora do dia. Parece coisa de criança né. Parece que ninguém morre no mundo as 17:20 da tarde. - Falou ela do banheiro.

- Né?! Parece que não há tristeza. Dá uma vontade de pular da janela e sair voando, vendo tudo lá do alto. Tudo aparenta estar em puro transe quando o sol começa a dizer adeus. Uma dose de LSD celestial. - Completei seu devaneio, ainda mirando o nada. Fui ao quarto, mudei de música. Pus Cigarettes after sex de fundo, vesti um calção e fui à geladeira buscar mais duas cervejas. Bebemos por mais algum tempo, conversamos sobre nossos pais e os motivos das separações deles, das nossas separações e distâncias.

Depois falamos do São João que não aconteceu e de como as coisas gradualmente voltaram ao normal. O covid-19 ainda era novidade e ainda não saíamos muito de casa, muito embora todos os bares já estivessem funcionando há 6 meses.

-Ei, acho que tá me dando sono. Vou a casa da namorada e depois acho que vamos passar na má fama, ou no Espetiscos pra animar. Pra terminar o domingo bem. Bora?

-Nada, a quarentena aflorou meu espírito de velho. Vai lá. Sem falar que tô cansado, meio desanimado. Vou tomar banho, começar um filme e dormir. Além disso, domingos são foda, né? - Fui Respondendo ao me levantar do tapete da sala, quase que enganando a mim mesmo de que aquele discurso não passava de uma desculpa ridícula para que ela fosse embora logo.

-Ah, beleza. Vai ficar bem, né? Qualquer coisa me liga que a gente passa aqui. Tava com saudades. - Falou abrindo a porta, me deu um abraço e depois colocou o capacete ao montar numa biz preta.

-Claro que vou ficar bem. Valeu! Depois a gente toma outra. Te cuida! - Disse sem olhar no olho.

-Tu também, boy! - Deu partida e sumiu na esquina da rua.

Fechei a porta. Subi as escadas, os passos fazendo eco. O silêncio da casa, a luz do poste atravessando a varanda e tocando a cerâmica branca da sala, a luz da lua entrando pelo jardim de inverno, tonalizando minha visão nas cores do fogo. Confundia-se o vazio de dentro com o vazio da sala. Ausência de som. O vazio de fora. Até que ouvi um grilo estridular.

Henrique Miranda
Enviado por Henrique Miranda em 29/06/2020
Reeditado em 25/03/2021
Código do texto: T6991648
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