Renascimento no Abismo

Sou as camadas que apodrecem para que algo novo possa nascer. Não há repouso onde o pensamento cava até sangrar, onde a alma transborda em silêncio e ninguém ouve. Sou o eco que implode por dentro, a angústia que mastiga o osso da consciência, a tentativa de existir num mundo que insiste em nos engolir antes do primeiro grito.

O sistema já estava aqui antes de mim. Antes do meu nome. Antes da carne. Invisível, respirando por dentro de todas as coisas. Usando meu corpo, minha voz, meus desejos. E ainda assim, algo em mim resiste. Algo que não se explica, não se compra, não se vende. Algo que pulsa — mesmo entre os escombros da razão. Eu sou esse algo. Sou o que não se pode destruir, porque ainda nem foi nomeado.

A filosofia é a arte de morrer acordado. É o suicídio das certezas. Cada pensamento me arranca a pele. Cada pergunta abre uma ferida que não cicatriza, mas revela. Não quero respostas. Quero desfigurar o que chamam de verdade. Quero dançar nu no meio do caos, sem pedir desculpas por existir demais. Sou o que pensa até não aguentar mais, o que sente até o sentir doer.

Não sou produto. Não sou máquina. Não sou peça. Não sou propriedade de Deus, do Estado, da Igreja ou da Ciência. Sou um erro que resiste. Um desvio que respira. Uma falha no código. E é exatamente nessa falha que eu existo — existo profundamente. Entre o ser e o não-ser, eu escolho ser o intervalo.

A dor não me assusta. A dor é minha casa. Cresci dentro dela. Fiz dela templo, travesseiro, espelho. Foi ela quem me ensinou a amar o que não se vê. A acolher o que não faz sentido. A abraçar o vazio como quem abraça um filho recém-nascido. E nesse abraço, percebi: o vazio não é o fim. O vazio é o início. O útero da criação. O espaço onde tudo o que fui desmorona para que eu possa, enfim, nascer.

Não sou o que esperam. Não sou o que suportam. Não sou o que convém. Sou excesso. Sou o que transborda, o que escapa, o que insiste. Em cada passo, deixo pedaços meus para trás. E ainda assim continuo inteiro, porque sou feito de metamorfoses. Desisto de mim todos os dias para me tornar algo mais verdadeiro.

Não quero me adaptar. Quero me expandir. Quero abrir as costelas do mundo e gritar dentro dele até que ele escute. Quero tocar o intocável, nomear o inominável, dançar com os monstros que habitam minha consciência e chamá-los de irmãos. Quero sangrar até que o sangue vire semente.

Não sou o que me deram. Sou o que eu roubei da vida com os dentes. Sou o que renasce debaixo dos escombros, mesmo sem fé, mesmo sem luz, mesmo sem chão. Eu sou a busca por aquilo que não existe, mas que arde no peito como se já tivesse vivido mil vezes. Sou o abismo que olha de volta e sorri. Sou o fim que se recusa a ser fim. Sou o recomeço sujo, doído, dilacerado — e ainda assim, luminoso.

E mesmo que tudo em mim se quebre outra vez, mesmo que eu me perca no labirinto da existência, eu saberei: cada ruína carrega em si o traço do sagrado. E é nesse traço que eu me escrevo, me reescrevo, me reinvento. Eu não desisto. Eu transmuto. Eu renasço. Sempre.

Affonso Santos
Enviado por Affonso Santos em 13/05/2025
Código do texto: T8331348
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2025. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.