Após a corrida do ouro/After the goldrush

Há exploração por todo lado. Opressões, mandos, hierarquias. Cegueiras coletivas. Rastros de violência que se alastram sem a menor chance de redenção, apenas vingança. Revide.

Os punks estavam certos já nos anos setenta: no future. Não há futuro. Sentiram, ao desertarem, como nenhum outro setor da época a decadência geral que se avizinhava.

Thomas Hobbes está prestes a tornar- se o maior pensador de todos os tempos, e isso pela negativa: a origem do Estado é, antes, seu fim – homem homem do homem. A barbárie high tech do terceiro milênio. Boom! dos drones inseticidas de gente. Disseram que vão reeditar o filme do segundo maior pensador brasileiro (seja lá o que isso queira dizer): ao vencedor as batatas – transgênicas e intoxicadas.

No ar o cheiro de sangue coagulado, podre. Carniça pros urubus do poder.

É como se depois de Serra Pelada não houvesse mais o que ser feito. Um bar, cachaça, alguma fumaça e aquele silêncio olhando pro nada do formigueiro de gente, nada da serra comida mais da metade. Menos da metade do que um dia se chamou de alma nos olhos de quem, enxergando, já nem consegue mais ver. Se visse ficaria cego, viraria ele mesmo: pedra.

Procura-se ouro e minério no interior do país.

A alma do ouro e do minério manuseada em número.

É como se, ainda sentados, víssemos a imagem do fim do mundo nos olhos de quem acabou de voltar do trabalho.

É como se depois de Serra Pelada não fosse mais possível ter olhos, porque é preciso ver alguma coisa.

Mas aí veio Carajás, Carandiru.

Crimes de maio em São Paulo, de novembro na Messejana.

Veio Belo Monte, Mariana.

Nunca se sabe ao certo onde fica o fundo.

Os punks nos anos setenta ainda eram uns putos de uns otimistas. O fim seria a redenção. O fim seria o: fim. Fim.

Já não podemos ser mais tão otimistas.

Por isso a palavra tem tato, como queriam os dadaístas, por isso a palavra tem que dar um tapa na face do mundo, que jamais oferece a outra.

Por isso o cinema precisa ficar mudo de novo, pra que se possa ouvir o gesto.

Por isso a Nise tava certa: “Cale a boca! Cale a boca! Só pare e observe um pouco”. É preciso ouvir o gesto daquela criança calada, daquele doido que há uns dez anos amanhece dando giros em volta de si mesmo, tentando ser ao mesmo tempo sol e planeta, estrela e lua, constelação e galáxia.

Apenas cale por um momento a boca.

Porque quase ninguém viu uma fagulha de esperança se acordar enquanto a chuva caía e pedia pra que se respeitasse um pouco o tempo de ficar quieto. Porque simplesmente não há tempo de ouvir apelo nenhum se não puder ficar um momento quieto e calado.

Só um momento. Porque depois vai ser preciso falar. Porque depois vai ser preciso acertar o alvo bem no centro, e à longa distância.

***

O sentimento do mundo.

Mãos e olhos dispersos diante da fúria implacável do mundo. Da fúria incansável do mundo.

Ontem reprisaram Carlitos, mas quase ninguém teve tempo de ver.

Ontem contaram histórias que há muito não se ouvia, certas histórias que ainda precisam ser contadas, que ainda não se perderam, mas quase ninguém parou para ouvir. Mudo pras entrelinhas do mundo.

O poeta falou na língua de sinais alguns de seus versos antes de o mundo acabar às 7:45, e só aquela criança entendeu. Guardou consigo um novelo de esperança da mão falante do poeta.

Mãe de sonhos o poeta. Estão grávidos, gestam seres ainda não vistos, inventam flores, novos astros e odores na língua. Até tombarem diante da fúria do mundo.

Spartacus disse que precisava aprender com o poeta. Rimbaud não entendeu que a mão na enxada faz o mesmo que a mão na pena, não conheceu Patativa.

São decassílabos o roçado de milho e feijão. São cantigas de amor e amigo a leira de macaxeira e batata. São metáforas os pés de tomate e maracujá. Rimam à distância com os cachos de banana. E vão-se compondo poemas de frutas, flores e insetos. Aí veio a agricultura sintrópica e fez o mesmo que Rimbaud com a linguagem.

Antônio Vicente
Enviado por Antônio Vicente em 29/09/2018
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