Este texto é fruto do primero amigo secreto do blogue As Contistas do qual eu faço parte junto com outras 24 mocinhas de todas as idades, e também comemora as 40.000 leituras que obtive aqui no Recanto. Muito obrigada!

Para minha amiga, a escritora carioca Juliana Calafange.


- JULIANA DO CÉU -

 
Juliana tinha um bizarro segredo: ela podia voar. Descobriu ainda criança, depois de um dia na praia. Estava feliz, cheia de energia, e não conseguia dormir. Ficou andando pela casa sem saber mais o que fazer em sua primeira insônia. Foi aí que viu a lata de biscoitos.

A guloseima não estava na prateleira mais alta, mas também não estava baixa o suficiente para que conseguisse pegar. Colocou o banco perto do armário, porém o móvel oscilou e ela quase foi ao chão. Desceu com as pernas tremendo. Abriu a gaveta e subiu nela. A madeira gritou, mas não cedeu. Esticou as mãozinhas o mais que pode e parecia que seus braços se alongavam, como os do homem elástico, tanto que conseguiu tocar no recipiente. Mas quando olhou para baixo foi que se deu conta de que seus pés estavam muito acima da gaveta. Ela flutuava! No desespero da súbita constatação, acabou se desconcentrando e caindo, deixando a lata rolar pelo chão e fazer barulho suficiente para acordar seus pais.


O trauma da queda e o castigo pelos biscoitos fizeram com que guardasse segredo sobre a sua nova habilidade, e, apenas quando estava sozinha, testasse pequenos voos. Além da própria Juliana, só quem sabia do segredo da menina era o gato Petisco, que ela criava desde pequeno.


A capacidade não dependia exclusivamente de sua vontade, na verdade variava de acordo com o seu estado de espírito. Quanto mais emoção, mais voo.

A habilidade às vezes era uma verdadeira maldição, Juliana tinha que usar o máximo de autocontrole nas brigas com outras crianças. Uma vez ficou tão fula da vida que subiu uns três metros no caminho da praça para casa. Só parou porque se agarrou aos galhos de uma goiabeira. E ficou lá sentada na copa da planta até o coração voltar ao batimento normal.


Já mocinha, relutou bastante para arrumar namorado – temia decolar até as nuvens no primeiro beijo. Seu pavor era maior que sua curiosidade, e os anos iam passando sem que a mocinha se envolvesse com qualquer pessoa. O pai, preocupado que ficasse solteira para sempre, tratou de arrumar um pretendente para Juliana. Quando, afinal, se viram, a menina se alegrou de ter encontrado o namorado ideal para ela: Rafael era tão sem graça que ela não corria risco algum de se afastar do chão.

O namoro seguia sensaborão por meses e anos. Foi só quando se transformou em noivado que Juliana percebeu seu erro. Enquanto servia como disfarce, Rafael era o par perfeito para enrolar sempre e casar nunca, mas seus pais tinham outros planos.

Quando se deu conta estava provando bolos, olhando revistas, decidindo convites e tirando as medidas para o vestido de noiva.

Um dia juntou toda coragem que tinha e confrontou a gangue inteira – pais, sogra e o bobão do Rafael que conseguiu manter a cara de parvo mesmo depois dela comunicar o fim. Juliana estava irredutível.

Foi um bafafá dos infernos. Mãe chorando, sogra praguejando, pai gritando e Rafael olhando para ela com os olhos bovinos de costume. Quando as visitas foram embora, Juliana apareceu com uma mala na mão e o Petisco na outra.

– Vou embora!

Diante da ameaça da filha, o pai de Juliana a chamou até o escritório alegando que precisavam conversar. Assim que entraram o homem saiu, trancando a porta por fora.

– Fica aí até mudar de ideia!

Ficou só o tempo suficiente para abrir a janela. Não era a primeira vez que fazia voos mais longos. Subiu, decidida, no parapeito da janela e se jogou no ar. A gente que passava na rua lá embaixo não levantou a cabeça para testemunhar a beleza do seu gesto, a grandiosidade da sua decisão. Juliana simplesmente seguiu o seu caminho, por que sim…Porque estava escrito, e pronto.


Passou anos sem dar notícias. Enquanto os pais aguardavam, Juliana vivia. Morava na Europa onde ninguém se importa com a vida alheia.

Abriu uma empresa de entregas rápidas: era a única funcionária. Casou com um engenheiro de minas e com ele teve filhos normais. Voava para onde queria. Depois de um tempo chegou um postal à casa dos pais sem endereço do remetente. Poderia ter cruzado o oceano e entregado a eles pessoalmente, mas preferiu mandar pelo correio comum. Por segurança.