O CANTADOR

Fiz-me homem. Forjado no mato, crescido no mato, aprendi a ler no mato, bebi do que o mato jorrava em cântaros, era tatu, era peba, era onça, era homem atado ao mato, era o pólen da borboleta do mato. Exalava o mato. Meu Everest eram as barrigudas, meu canto era da Arara Azul, meu cofre-forte eram os buracos no colchão de palha. Tinha um cavalo chamado Panga, meu guia e meu cabriolé. Panga outrora fora um alazão fogoso, forte, crinas vermelhas brilhando ao vento; deu de se apaixonar. Égua de portentosa figura, umas platibandas avantajadas, endoidou Panga. Panga conversava comigo, contou dela, de fazer estripulias por ela, arriara os quartos por ela. Dei-lhe conselhos de neófito, os sopapos da paixão nunca me derrubaram, mas arrisquei reprimenda de pós-doutorado: esquece, Panga! Sai disso! Segue meu exemplo, livre que nem asa de bem-te-vi; lépido, listo, vagueio por aí sob luas de leste, de oeste, de tantos sóis. Panga desouviu tudo e se danou por ela. Danação danada, de arriar a crista portentosa por ela, de relinchar pros quatro cantos, grunhindo que era posse dele. Égua não tinha dono, era do vento, era do mato, era dela mesma. E deu de arrumar barriga de outro, de relinchar cantadeira toda, exibindo barrigão orgulhosa. Panga definhou. Tive pena dele. Olhou pra mim, olhos arrebentados de dor, fungando insultos, nunca mais, patrão! Fêmea nunca mais! Aquela potranca de vergonha nenhuma me acabou. Levei Panga pro rio de nosso eito, dei-lhe um banho frio, chamei os nambus e as rolinhas pra consolá-lo, até porco espinho foi espetar-lhe ânimo. Panga só urrava, um relincho doído de doer a alma da mata.

Vendo Panga quase esquálido, voltei à rotina de cantador. Cantadorava em tudo que era cidadezinha, prostíbulos, bares bêbados, portas de igrejas, feiras-livres. Dormia no colchão do chão, a sela me servindo de travesseiro, lua me ninando, sempre à beira de um rio, brisa com água me dessedentando, os pedaços de carne, de charque; bisaco com farinha, e pão e café em pó. De gogó privilegiado, minha viola anêmica me elogiava nas rimas ricas, nos temas que o populacho me infringia, massa ia às loucuras comigo. Entrava numa cidade, na cacunda de Panga, viola atravessada no peito, meu jeitão de cabra garboso, num trote compassado de coração partido, ele me levava ao primeiro hotel. Tinha cama, um ventilador e um rádio de cabeceira. Sempre tinha. Banheiro comunitário. O que é isso, perguntei ao dono. Cabra riu na minha cara é um banheiro pra todos. Todos os hóspedes usam ele. Tem horário pra banho pela manhã e à noite. Varei-o com meus olhos frios e minha barba avermelhada. Cabra tossiu e me deu a chave. Quarto seis, ali, à direita. Peguei-o pelo braço e meu cavalo, vai dormir onde? De viés, me estranhou. Bom, vosmicê pode deixá-lo com o chefe da estação. Ele sempre arruma jeito de guardar cavalo. Vosmicê é cantador, né? É o que mais tem por essas bandas. Deixei Panga com o cabra. Boa noite, amigão. Boa noite, patrão. E baixou a cabeça, naquela danação de revolta e dor.

Sol deu pinote na manhã morna daquele dia. O toró que despencara das comportas do céu amenizou o calor esfumaçado daquela cidadezinha. Acordo cedo, bebo a manhã com seus líquidos floridos e transcendentes, tomo o café ralo, daquela rala pensão. Sábado. Vou à feira. Gostava das feiras livres. Aquele amontoado de gente, algazarra dos compadres e comadres, cheiro de cominho, de fumo pacaiá, verduras molhadas e recendendo ainda a terra, coisa boa era quilo. As moçoilas acordadas cedo pra lida, me olhando com sorriso na libido, meu jeitão de cantador-artista, saco a viola e me dano a cantar. Não sou besta e começo a exaltar as virtudes daquelas moças, a beleza da cidade, da feira; magote de meninos se junta a mim e logo depois uma tuia de gente me aplaude. Me dão motes de variados assuntos, desenvolvo-os com galhardia e com algumas chispas de gaiato. Tiro o chapéu e o coloco no chão. Moedas e cédulas e até comida enchem ele. Uma moçoila de atributos dadivosos me oferece um copo com água. Gelada. Bebo-a e não arribo dos olhos dela, água correndo pelos cantos da boca; ela me acompanha o filete da água, lambendo os beiços. Desenho-a toda. Bem fornida de carnes, dá rabissaca e desaparece. Potranca!

Dia foi proveitoso. Juntei os estipêndios, voltei à pensão, na hora livre do banho. Aformosei-me como pude, taquei os melhores perfumes na cara e na camisa, exalando cheiro de macho fogoso. Panga estava tomado banho, ainda de focinho baixo, perguntou-me pra onde, patrão? Alisei o dorso dele, dei umas palmadinhas, bora pras festanças da carne, Panga. Balançou a cabeça, relinchou desaprovação, de novo, patrão? Sou vacinado contra essa moléstia, Panga. Paixão né pra mim, não. Chegamos a um bairro infestado de “casas de primas.” Deixei Panga solto, ele me tranquilizou, pode ir, patrão. Sabedor dos efeitos que provocava aonde ia, adentrei naquele antro cheirando a pó e perfume de pinho barato. Todos os olhos me miraram, alguns cabras fecharam a cara, a dona enxerida e rebolando os quartos banhosos, oi, bonitão, fique à vontade, seja bem servido. Me apontou uma mesa em que havia um casal, que saiu desembestado, a mando dela. Foi quando vi ela. Os olhos dela. A boca dela. O corpo endoidecedor dela. Estava só. Me devorando. A potranca. O barulho e as pessoas sumiram, a música parou, ficamos os dois, se cheirando, se medindo. Ela estendeu o braço e me levou a um quarto de cama bem arrumada, luz negra, eu sabia que você viria, disse ela.

Panga não esperou mais. Três dias e seu patrão, nada. Desconfiou, esperou, teve certeza. Patrão se enredara nas teias da paixão. Avisei ele, preveni ele, agora vai beber da taça da danação, das estripulias da carne. Sabia-se só, ninguém mais com quem conversar, com quem chorar. Baixou a crista e pisou a vastidão, ele e o sertão. Estava na hora de se aposentar.

Matuto Versejador
Enviado por Matuto Versejador em 21/08/2019
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