CAIXA DE FÓSFOROS - parte 2

No meu regresso a tristeza deu lugar a dúvida. O estranho e o anormal não possuem níveis, realmente. Não tive medo na hora, mas já bem longe do local da cena e no ônibus a caminho de casa , o aspecto misterioso da figura e do objeto dado perturbaram meu espírito.

Tirei a caixa do bolso e fiquei a observa-la. Sacudi-a fazendo um chacoalhar leve. Sensorial.

Quando a abri, um aroma delicado como o das flores do campo subiu de dentro da caixa e dominou meus sentidos. Contendo alguns palitos, a coloração deles me despertaram a curiosidade. A haste de madeira preta e suas cabeças prateadas brilhavam.

Meu avô não me explicou o motivo da caixa ter sido entregue a mim e porque fixar meu olhar em sua chama. Isso me fez refletir tanto que desci no ponto errado.

Chegando em casa, meu pai apontou para o microondas sem dizer palavra e saiu. "Miojo outra vez". Pude notar que ele estava com os olhos vermelhos. Ele não pegou o carro, o que me deu mais segurança de que ele voltaria.

Sobre a mesa uma carta:

"Para Júlio"

A letra era da minha mãe:

"Filho,

Se está lendo isso agora é porque não consegui falar ontem a noite. Você bem sabe que seu pai ainda me acusa de traição e nossa convivência se tornou insuportável.

Isso está acabando com minha saúde, que aliás, estou muito preocupada com o resultado de um exame de mama que fiz semana passada e ainda não chegou.

Você sabe que eu te amo, mas não é mais uma criança. Entende que um casamento pode se desfazer da noite para o dia, mesmo que não tenha sido esse o plano original. Seja homem!

Além do mais, se for confirmado o câncer, vai piorar minha situação. Por isso vou pra casa da minha mãe no interior e quando as coisas melhorarem eu volto pra te ver.

Tenho ficado preocupada com você. Pare de se trancar no quarto. Vá procurar um emprego. Perdi meu filho dentro de casa. Espero que não seja como o filho da vizinha que ficou viciado naquela coisa feia lá e até os estudos abandonou."

Pela primeira vez senti que as letras no papel amassado amassavam-me por dentro.

"Eu te amo filho. Quando estiver pronto, conte a verdade ao seu pai.

Ass: Mamãe"

A carta ficou na mesa. Um acesso de choro e raiva encharcou aquela manhã:

"ELA SEQUER PENSOU EM MIM! NUNCA QUIS SABER COMO EU ME SINTO! NUNCA! E AINDA FALOU DESSA MALDITA "VERDADE". QUE SE DANE TODOS!"

No estopim do meu estresse e na vaga solidão da minha circunstância, optei por aliviar da forma mais rápida possível aquele frenesi emocional que tencionava meus nervos. Tranquei-me no quarto.

Após horas naufragado na internet em busca de qualquer coisa que não fosse a minha realidade, quis enviar um currículo.

"DROGA! REQUER EXPERIÊNCIA!"

Coloquei o celular pra tocar um vídeo aleatório. Uma propaganda sobre "Como enriquecer e fazer seu investimento dar certo" passava. Joguei o celular no chão e por sorte não se espatifou.

Álvaro de Campos pinicava em minha cabeça:

"Fazes falta?

Oh sombra fútil chamada gente: ninguém faz falta!

Não fazes falta a ninguém.

Sem ti correrá tudo sem ti.

Talves sejas pior para os outros existires, que matares-te.

Talves peses mais durando que deixando de durar!"

Nunca considerei o suicidio uma solução para qualquer problema, todavia a vida não me apresentava nenhuma.

Meu avô saberia como me consolar. Sua casa era meu porto seguro. Seu abraço minha proteção. Ele me entendia. Ele… ele era tão meu.

Lembrei da caixa de fósforos.

A famigerada fala "Não mostre a ninguém... risque o fósforo e observe sua chama" gelava minha barriga.

Abri a caixa. O cheiro pelo menos era aprazível.

Olhei para um fósforo. Magro, cabeçudo e brilhante. Tão frágil.

Meu desejo deveria ser jogar aquela caixa fora e seguir o rumo da minha vida como sempre levei. Mas algo me incitava. Assombro e anseio.

"Quer saber? Pior do que já está…"

Acendi um fósforo. A chama brilhou na cabeça do palito.

Fitei os olhos naquela mísera chama. Que aos poucos foi aumentando. Lentamente crescia e ia descendo para o corpo do palito. Até que passou para minhas mãos, meu antebraço, meus ombros, passou por meu peito, de um braço a outro, desceu para o meu corpo, minhas coxas, joelhos, pés e por fim a chama cobriu-me toda a cabeça.

Eu era uma tocha humana, mas não queimava, porém uma sensação quase celeste me dominava. E a chama do palito brilhava, brilhava como uma estrela. A visão que tive foi espetacular. Meu quarto se encheu de um fogo com cores variadas. Amarelo, azul, laranja, roxo, verde, vermelho e branco.

O lugar se tornou uma fogueira, mas nada queimava, cheirava a fumaça ou se consumia. O ambiente não estava quente, cintilava beleza qual aurora boreal, e de repente as chamas se encolheram como uma flor que se abre e fecha na direção da cabeça do fósforo como num piscar de olhos e me levaram para fora do meu quarto…

Continua…

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 01/10/2019
Reeditado em 01/10/2019
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