Os Encantados

Os caminhos que desabrocham do mar são caminhos de encantamento. As memórias trafegam por eles desde o passado para renascerem nas experiências das pessoas que são médiuns e se multiplicarem por cima do mundo. São notas, inocências desencontradas, poesias, estórias que se refazem na passagem por sobre as terras ventiladas. Arrisco dizer que esses encantamentos são as coisas que ventilam as flores das terras com o sal das ondas.

As coisas que se deslocam pelos caminhos do mar são os Encantados. Eles vêm desde as ondas do oceano e se chegam às coroas dos médiuns. Fazem o bem, regeneram as pontes, habitam os corpos de estórias. Os Encantados moram em muitas partes e certamente trafegam por muitas estradas dentro da terra. Porém quando estive no Terreiro do Mestre Antônio de Mel, conheci com mais profundidade aqueles que são das ondas. Conheci um local de encantamento, conheci a pisada de um Cavaleiro do Mar no trabalho, conheci o mistério do pôr do sol. E nunca pude me esquecer destas coisas.

Ao caminhar por dentro das veredas que levavam a Raposa não senti mais as forças do sal nem os pássaros que nascem nas ondas. Senti um abandono tão grande! Achei que até mesmo Deus tivesse se esquecido de mim e daqueles que estavam ali comigo. Aqueles caminhos ainda não tinham sido trilhados por gente como nós e fazê-los pela primeira vez tornava-se um desafio solitário. Quem não teria medo? Onde estavam os Encantados?

Certo dia estava sentada na praia da Cana Brava, nas terras do finado Nilo Paixão, quando um homem chegou por trás de mim e tocou em meu ombro. O sol estava muito forte que ao me voltar para trás a fim de conhecer sua face, nada vi além da sombra. Não tive medo. Então ele me falou:

– Seu pensamento me chamou minha filha. E antes disso Oxalá tinha marcado nosso encontro nesta praia esverdeada. Vim para te dizer umas coisas sobre o teu passado de andanças. Quer saber por que não pudemos está contigo nem te aparar na noite em que caiu no caminho para a Raposa?

– Me diga meu pai. Agradeço que tenha vindo ao meu encontro, pois sinto tristeza.

– Não sinta tristeza minha filha. Veja o Mar lhe sorrir com a brancura das ondas. Ele quer te chamar para dançar e eu sou um navegante que dança nas ondas. Sou também aquele que se levanta do fundo do Mar para os outros Encantados passarem e percorrerem a terra na qual você lhes abriu os caminhos. Há quem pense que nós fazemos tudo sozinhos, que não precisamos da ajuda dos médiuns... quando você é o descomeço do antigamente. Somente gente que não te conhece é que poderia mesmo arriscar dizer diferente.

Não pudemos te acompanhar naquela viagem porque Deus não permitiu e só podemos fazer o que Oxalá ordena. Os caminhos sobre a terra estavam fechados e não tínhamos alcançado distâncias maiores que aquelas que nos levaram os outros médiuns. Ainda não tínhamos nascido naquelas terras ensolaradas, distantes da imensidão azulada. Lá existiam outras coisas e somente suas pernas poderiam abrir os caminhos para que nós também habitássemos aquelas distâncias, como prometera nosso grande Pai.

Então você e seu marido foram lá e abriram passagens maravilhosas e pudemos alcançar aquelas partes e curar os que precisavam... você cumpriu a promessa de seu destino, a mesma que lhe foi anunciada na casa da Raimunda e tornada real no Terreiro do Mestre Antônio de Mel.

Assim, minha filha, respondo a dúvida do seu coração. Não pudemos caminhar com você porque não estávamos ali. Foi seu esforço que nos levou. E quando chegamos lá andando pelos mesmos caminhos que você tinha aberto, então fizemos morada em vocês.

Uma última coisa que quero lhe falar: Acaba de ir embora uma pessoa muito importante para o antigamente. É por isso que você sente essa tristeza que não sabe como explicar. Mas ele está alegre por ter concluído sua missão na terra e poder continuar sua jornada no além-mundo. Olha ali nas ondas...

Virei minha face quente, molhada pelas lágrimas da descoberta. Fitei aquele rosto que me encarava com afeto. Senti uma dor no coração, como se uma faca me penetrasse até a alma. Tentei gritar arriscando que ele pudesse me ouvir. Porém, o grito ficou entalado na minha goela. O Mestre Antônio de Mel ainda me sorriu antes que seus dentes se transformassem em sal...