Em busca de personagens para escrever um texto
 
1-      Moça com cachorrinho branco andando pela Praça em dia de Feira de Artesanato ; ela andava do lado externo da Praça, em direção ao Ponto de Táxi. Trazia nos braços um cachorrinho felpudo com quem conversava baixinho. O cachorrinho se chamava Floco de Neve. Todo mundo mexia com o cachorrinho e ela ia dizendo baixinho – olha Floquinho, que menina mais bonitinha está mexendo com você ! As pessoas que mexiam com o cachorrinho mudavam, as palavras da moça também, mas não a ternura com que ela se dirigia ao seu animalzinho e o sorriso com que ela premiava quem estava apreciando o seu bichinho. Seus olhos eram grandes e muito arregalados e os dentes mais brancos que o pelo do Floquinho. Ela ia assim, bem feliz caminhando e eu a observando até que um homem maduro com cara de casadosemvergonha mexeu com ela, não com o cachorrinho. Ela fechou a cara, virou para o outro lado, apressou o passo e disse mais baixo ainda: Vamos Floco de Neve, vamos para casa.E foi então que descobri o nome completo do Floquinho. Logo a seguir ela entrou em um táxi branco e o táxi desapareceu levando embora a protagonista de minha história e assim, sabendo tão pouco sobre ela, não pude fazer dela um personagem.
2-          Acho que a moça poderia ser interpretada pela Angélica se minha história virasse um filme nacional.
3-          A segunda tomada do filme poderia ser a moça do cachorrinho branco olhando pelo vidro de trás do carro para ver se o homem a seguia. Mas, por que ele a seguiria? Eles já se conheciam? Ou ela apenas era uma daquelas moças que tinham medo de homens desconhecidos principalmente os que pareciam casados e sem vergonhas?
4-          Não posso imaginar a casa em que a moça desceu. Ela não combina com nenhuma das casas que conheço.
5-          O homem com cara de casado e sem vergonha. Ele se assustou com a reação da moça. Parece que ficou ofendido. Mas não deu os braços a torcer: simplesmente cruzou-os enquanto tomava novamente a posição de alerta esperando uma moça que lhe agradasse passar. Sem ou com cachorrinho. Eu passei mas não lhe agradei. Nem me viu. Olhou através de mim. Eu assentei-me em um banco próximo e fiquei observando-o. Precisava urgente de um personagem para minha história.
6-          Passaram muitas moças bonitas mas ele não se interessou. Parece que estava receoso de ser repelido. Ou será que o que o interessava era o cachorrinho? Seria um ladrão de cachorros? Ou será que estava ali a procura do cachorrinho fugitivo de sua filhinha que estava tão doente agora no hospital sentindo falta de sua bichinho de estimação e eu apenas estava fazendo mau juízo dele? Ai quem passou foi um homessexual. Homem. Gay. Travesti, na verdade. Foi aquela olhada e aquele sorriso. O homem ainda de braços cruzados falou um palavrão e desistiu seja lá do que for que estivesse esperando. Deu as costas e rumou para o Hotel em frente. Era apenas um hóspede entediado a procura de passar o dia. Um representante comercial, com certeza. É mais um personagem que perco hoje. Não dá para trabalhar com esses dois. A menos que ele ficasse de espreita a espera do táxi que levou a moça chegar para ir atrás dela. Mas não ficou. O táxi estava de volta ao ponto e tornou a sair. Levando o travesti.
7-          O outro homossexual – Puxa vida, que cara bonito! Ele também está com um cachorrinho branco e o pega de uma forma desajeitada. Parece que acabou de comprar o bichinho e não estão acostumadas ainda um com o outro. Imagino se esse não é o cachorrinho fugitivo da menina doente e triste no hospital. Chamo-o o de Floquinho para ver se ele atende mas quem olha para mim enfurecida é a mãe do homossexual bonito com cara de artista de cinama. Ela está do lado dele, parece que não desgruda dele, que toma conta dele como se fosse um bichinho de estimação. A mãe e seu bichinho de estimação. Só falta amararrar um coleira em seu pescoço. O moço gay olha pra mim com olhos tristes parece que perguntando: Ei você não quer ser minha mãe?Talvez se você fosse minha mãe eu não fosse gay! O cachorro late. A mulher rosna. E nada disso importa porque o que é, é, e nada pode mudar.
8-          Fico pensando em quem poderia representar esses dois em meu filme, o menino podia ser o Brad Pitt bem novinho, mas a mãe eu ainda estou em dúvida. Gosto muito da Meryl Streep mas acho que ela não ficaria bem em papeis de uma mulher muito má. Eu não gostaria de vê-la assim.
9-          Será que o homem do hotel não seria o pai do rapaz gay e marido da dama que late? Será que os dois não estavam a procura dele? Será que o rapaz não achava que era como era porque o seu pai era o que ele não queria ser? Será que a mãe não forçava o filho a ser sua única companhia para não ficar sozinha? Onde estaria o marido da dama e o pai do rapazinho se é que ele não era o homem que foi se esconder no hotel?
10-       Bem, tenho que ir embora. Não dá para ficar aqui fantasiando. Ainda tenho muito para fazer neste dia modorrento. Mas antes de ir vejo que o táxi está de volta.
11-        É grande a multidão na Praça. Parece que todos festejam o fim do período de chuvas embora eu saiba que estão errados. Ela vai voltar, trazendo a enchente das goiabas. Mas é tanta gente que o rapaz louro e seu cachorrinho branco e arredio se perdeu da mãe. Ele olha aflito para todos os lados. Ele olha pra mim e eu sorrio. Ele pergunta sem abrir a boca:Você viu minha mãe? Eu me dirijo até ele, pego em seu braço e o levo em direção ao taxi. Falo baixinho com o motorista e lhe deu uma nota de cinqüenta reais: “Leve-o até a casa da moça do cachorrinho e pode ficar com o troco.” Empurro-o para dentro do táxi e ele obedece sem questionar. Está acostumado.
12-       A mulher que rosna passa por mim aflita em busca do seu filhinho de estimação. Está transtornada. Eu finjo que não vejo e vou para casa. Criar personagens. Porque com estes não vai dar para trabalhar.     
 
 
 
(do meu Caderno de Exercícios)