agosto, sexta feira, seis.
 
 
 
Sexta seis às seis da manhã, ela já estava acordada embora nem precisasse tanto, mas o dia se previa curto para tanto dia. E de certa forma foi prevenida o que não é novidade nesses casos, sempre um livro à mão para que o olhar não fique vazio ou não tenha que enfrentar outros olhares. Ao médico nem é bom ir, muito menos levar quem não quer ir, mormente se o tempo é longo para se chegar ao fim do tempo e enquanto dois litros de água eram absorvidos de vinte em vinte minutos, os olhos se alternavam entre a simples observação, o atendimento ao acompanhado e os contos de Cortázar.

A pequena e fria sala com banco em L e no ângulo a pequena mesa onde revistas desencapadas de anos passados, entulhada de gente, a maioria do que se convencionou chamar as classes mais humildes ou menos favorecidas embora um ou outro elemento das castas superiores ali também entrasse, provavelmente com a mesma compreensão: a dor e a decadência física não poupam ninguém e todos se igualam, mas ao mesmo tempo mostram as suas diferenças porque no balcão quem ia um a um desembolsando em dinheiro vivo, que é uma expressão bastante estranha, eram as castas inferiores sem dinheiro para um plano de saúde estratosférico e sem cobertura para as suas doenças pelos SUS da vida. E entre o livro e a simpatia que une os da mesma sina, o celular lembrando que hoje seria o dia, o dia em que a mostra cultural começaria e era precisava decidir como o hino nacional seria executado, se assim ou assado e outras questões menores que foram se arrastando pelo dia, como a Firma ter esquecido que a Tenda na Praça teria que ser montada bem cedo para que nada desse errado ou a companhia de eletricidade não ser capaz de compreender que sem as ligações de energia seria impossível passar o som e artista que se preze não enfrenta assim o público, de supetão, sem reconhecer o seu instrumento de trabalho.

Perdida entre os pesadelos imaginados pela imaginação do escriba argentino lá estava ela, tentando compreender os próprios pesadelos que incluíam a falta de tempo e de dinheiro para acertar as contas com aqueles que produzem e vendem o produto de sua Fábrica de Pães porque sexta seis é também o quinto, o quinto dia útil, como se um dia útil não pudesse também se tornar um dia inútil.

E enquanto as horas passavam o fluxo aumentou até o seu ponto máximo e então diminuiu até que ficassem ali, os últimos, os bebedores de água, uma velha senhora e sua filha não tão velha quanto ela, mas não tão jovem quanto o outro que se fazia acompanhar de seu velho pai e de seu também jovem irmão, todos com as mesmas dores, a velha senhora e o jovem homem, que sincronizadamente bebiam a água da jarra, cada um a água de sua jarra, cada um com seu molengo copo plástico, a idosa senhora resistindo bravamente e o jovem mancebo alternando a entrada da água com a saída.

E quando tudo acabou já o sol ia a meio e a leitora de Cortazar oscilava o pensamento entre o conto Juliano e o seu próprio conto que pensava em escrever, mas não estava certa se havia aprendido alguma coisa durante a leitura do diário preparatório para fazer um conto porque uma certeza ela já tinha fazia muito tempo: nada que se escreve é sobre o outro, tudo é sobre si próprio, mesmo sendo as histórias completamente inventadas.

Um dia confuso essa sexta feira, quando o que ela mais queria, ela,  a autora desse texto, era não estar se preocupando com as coisas com que tinha de se preocupar por necessidades causadas por situações sobre as quais não tinha controle, ou causadas por ela mesmo, mas estar longe dali, em terras vizinhas, mas distantes, assentada em um auditório, ou um anfiteatro ou sabe-se lá o que para se emocionar com a conquista de uma mente privilegiada apresentando a uma banca o seu trabalho final de pesquisa que a tornaria mestre, a menina que vira nascer, tão branquinha e fofinha e que a cada dia alçava vôos mais altos e se tornava mais distante. E quando a voz ao telefone lhe falou que a tarde tinha sido um sucesso, mas não uma surpresa porque menos não era esperado, preparou-se para a noite e  ao fim dessa, esquecidos os imprevistos que sempre são previstos, viu a platéia se levantar para aplaudir de pé as meninas mágicas no palco, na noite fria de agosto, esqueceu-se de tudo por um momento e o que viu foram os anjos descendo do céu para aplaudir  e então ali, de pé, fechou os olhos e desejou ser anjo também.
 

(Experimento. Sem conseguir me definir exatamente a que categoria este texto pertence, optei chamá-lo de redação. A espera de uma melhor definição)