Curta a viagem curta que a vida é mais curta ainda 

Eu tinha somente uma bala na agulha, como dizem quando você está somente com uma única chance de acertar. E era exatamente isso, um dia de folga para resolver tudo sobre uma viagem ao exterior, adquirir passagens, reservas de hotel, confirmação da programação cultural, marcação das férias que garantiriam a saída do país por longo tempo e, o principal: o visto de entrada nessa época em que cada vacilo na resposta pode significar uma grande falsidade que geraria desconfiança e negativa de entrada em outra nação.

A pesquisa foi feita e entre Brasília, Fortaleza, São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, a última foi escolhida para dar entrada na papelada. Antes, porém, foi marcada viagem de três dias e, depois, remarcada para dois, com o devido pagamento da multa por mudança nas datas. Após dias e horas preenchendo a solicitação de visto no site oficial, em inglês, conferências intermináveis para evitar erros, assinou digitalmente e enviou. Só depois percebeu que teriam que ser DOIS encontros ao invés de um, em dias diferentes, para evitar o risco de não conseguir fazer tudo num único encontro. Mudou os horários das entrevistas para arriscar na sorte. Ligou para o consulado e afirmaram que seria possível obter tudo nos horários previamente agendados. Menos mal.

Pois bem, tudo resolvido, viagem marcada para Recife na quinta-feira, 14 de julho de 2016, às 17horas, depois de dar expediente o dia inteiro e sair um pouco mais cedo para evitar surpresas no trânsito. Carro abastecido no dia anterior, malas prontas e uma pasta com todas as provas documentais de tudo que seria alegado para conseguir autorização pra viajar: certidões de nascimento, casamento, trabalho, procurações, contrato de viagem com datas de ida e volta e hospedagem, passagens, reserva de dinheiro para gastar na estadia, passaportes antigos e o novo, lista de lugares visitados nas excursões ao exterior, comprovantes de renda, escritura de casa etc. Até a aparência foi retocada, roupa social, barba aparada e cabelo solto encaracolado ao vento. O medo era o cabelo. E se fosse confundido com algum dos diversos preconceitos e discriminações que são jogados na cara todos os dias?

Partida do aeroporto de Salvador na hora certa, voo com escala em Brasília e chegada a Recife sete horas depois. O taxista se assustou com o nome do “hotel” e sugeriu que não se hospedasse lá, pois se tratava de um motel disfarçado onde todo mundo entrava e saía sem qualquer controle, correndo-se riscos diversos e, além disso, não era permitido sair e deixar bagagem e retornar mais tarde. Ou seja, ali não era possível se hospedar como uma pessoa comum. Então, foi feita uma verdadeira maratona em busca de vaga nos hotéis dos arredores, todos lotados, à exceção do Aquamar, na orla da Boa Viagem. Acolhedor, ar condicionado, televisão a cabo, internet wi-fi, café da manhã espetacular, vista maravilhosa para o mar, outro mar de prédios se descortinando para onde se mirasse.

O taxista, muito gentil e precavido, após extrapolar em muitos quilômetros a corrida pré-paga, ainda se preocupou em marcar horário para pegar o desavisado às seis horas da manhã, e pedir ao recepcionista que acordasse o hóspede vinte minutos antes, para evitar atrasos. Chegada à porta do consulado em primeiro lugar, encabeçou a fila, todo feliz, com a pasta de milhares de documentos embaixo do braço, crente e abafando que não faltava nada. E não faltava mesmo. Na hora de ser atendido, após deixar o celular no táxi e se submeter a rigorosa revista com detector de metais, foi dispensado para refazer o pedido, pois uma data estava preenchida errada. Aí desabou em desânimo, pois estava, literalmente, no mato sem cachorro. Onde iria conseguir uma lan house aberta para acessar, corrigir a informação e imprimir tudo a tempo de retornar e ser atendido? A sorte era o taxista que conhecia um lugar que estaria aberto àquela hora, antes das oito da manhã. Mas a moça que vendia café em frente ao consulado também já era esperta o suficiente para notar quando alguém saía cabisbaixo e perguntou o que tinha acontecido. Indicou imediatamente um estacionamento nas imediações, onde tudo poderia ser resolvido.

Ali o nosso protagonista conheceu um jovem paulista que tocava numa banda de pagode chamada Grupo Poesia Popular e que estava fazendo sucesso, inclusive havia tocado em Salvador, Itabuna, Vitória da Conquista e outras cidades baianas mas que, por desentendimento com o vocalista, que achava que não precisava mais ensaiar, o grupo se desfez e ele, agora, estava há um mês em Recife, recomeçando a vida com outra atividade. A internet oscilava, ia e voltava, o site lento e o jovem viajante, de tão nervoso, esqueceu a senha e qualquer informação que pudesse dar acesso ao formulário preenchido online. Mas, salvo pelo gongo, encontrou tudo impresso em sua pasta de milhares de papeis. Quase meia hora depois, voltou todo feliz com tudo resolvido e entrou novamente na fila para colher digitais e ser fotografado. Todos os cuidados e toda a preocupação com a cabeleira ruiu quando o atendente pediu gentilmente para colocar o cabelo atrás da orelha na hora de disparar o flash.

Atendido, partiu a mil para a entrevista do outro lado da cidade, com o taxista Barros, que tinha virado a noite dirigindo para a Coopseta, com ponto no Aeroporto Internacional. Barros precisava passar o veículo para o próximo motorista que lhe ia render no serviço, mas estava ali, ainda, mesmo atrasando o seu lado, servindo com toda a delicadeza do mundo, ao nosso protagonista. Ao deixá-lo na porta da repartição consular, precisou ir embora e o fez todo sorridente. O jovem, então, após deixar celular e sombrinha num guarda volume, entrou no prédio, foi novamente revistado e até precisou usar o colírio para provar que se tratava, apenas, de um remédio para os olhos. Alguns minutos depois, algumas breves perguntas e, sem precisar mostrar qualquer documento, teve o visto aprovado.

Partida para o aeroporto, almoço e janta tudo junto no meio da tarde, mais espera por voo e conexão, chegando são e salvo em casa umas dez horas depois. Assim, então, terminou a jornada, não sem antes mais um detalhe: a “voz” que anuncia os voos, chamou para que todos embarcassem no portão 14, depois 15, depois 14 outra vez. Peguei a fila, entrei, checaram minha passagem e me desejaram boa viagem. Só percebi que estava na aeronave errada quando cheguei ao final da mesma e descobri que não existia a poltrona 26F, porque só tinha cadeiras até o número 24. Mostrei para uma das aeromoças que me falou que aquele avião iria para o Rio de Janeiro. Tive que enfrentar a fila de passageiros, com mochila na mão, pedindo licença para correr como um louco e entrar no portão 15, o correto. E ainda ouvi que eu tinha pego a fila errada. É mole?
Valdeck Almeida de Jesus
Enviado por Valdeck Almeida de Jesus em 18/07/2016
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