SAGA DO USUÁRIO DE TRANSPORTE COLETIVO

Todo o dia é a mesma rotina. Levanto, tomo meu banho,

uma xícara de café puro, bebida em pé, controlando o relógio.

Escovo os dentes, dou uma olhada nos cabelos, é a única vez no dia,

em que eles ganham um ¨cuidado¨especial e, saio em disparada,

pra não perder o ônibus. Chegando ao ponto de ônibus percebe-se

aquele cheiro forte de urina, o que prova que a noite o mesmo serve

de mictório para jovens desocupados.

Devido ao forte cheiro, não dá para ficar dentro do mesmo. Assim,

as pessoas ficam se espremendo num espaço pequeno entre esse e,

uma valeta enorme que tem na beira da rua. E, ali ficam esperando,

esperando... E, nada de chegar o transporte coletivo. Em seguida,

chega um casal de namorados correndo, temerosos de perder o transporte.

A moça ainda com os cabelos molhados, alcança a bolsa para o namorado, enquanto dá os últimos retoques em sua maquiagem. Termina de passar o batom, pergunta para o namorado se está bem e, guarda suas maquiagens na bolsa, que o namorado lhe devolve.

E, todos já impacientes apenas ficam parados em silêncio,

esticando os olhos para o final da rua, tentando visualizar o ônibus.

Eu estou com uma bolsa enorme, cheia de trabalhos dos alunos, que havia trazido para corrigir em casa. E, mais uma pilha de livros, porque preparei uma aula especial para minha turma do 2º ano, como a biblioteca da escola é paupérrima, estou levando meu material para que os alunos possam trabalhar.

Já me dói tudo: braços pernas, costas e, nada do tal ônibus.

De repente, olho ao fim da rua e, não acredito no que estou vendo...

Apuro o olhar para ter certeza, é um pontinho azul que surgiu lá no final. Será ele? O pontinho vem crescendo... É ele. É o ônibus que está chegando.

E, todos se apertam mais, disputando o melhor lugar para ficarem e,

rezando que a porta do carro se abra bem a sua frente, para que possam adentrar o mesmo antes dos outros e, quem sabe assim, por sorte, ainda se encontre um assento vago, onde possam sentar-se.

De repente, o pontinho azul vai sendo engolido por uma nuvem de poeira e, em seguida, já não se consegue mais visualizar o mesmo. Seria mesmo o ônibus?

Não, acho que é ele, sim. Diz a moça que chegou com o namorado.

E, ficam todos na expectativa.

Eu já estou louca pra jogar aqueles livros todos ao chão

Não suporto mais o peso em meus braços. Até a circulação está cortando. As pernas já nem sinto e, as costas... Meu Deus! Como seria bom não ter de estar aqui...

A nuvem de poeira ganha uma proporção assustadora, parece um redemoinho... É um! De puro pó, terra... O tal encosta. As pessoas se abanam todas, tossem, alguns menos educados ainda cospem ao chão. E, o jogo de empurra, empurra começa.

As pessoas se atropelam mais que vacas furiosas no campo.

Olho para a moça do cabelo molhado e, me dá uma tristeza,

ao mesmo tempo em que um sorriso malicioso teima em querer

se exibir em meu rosto. E, é um sacrifício para prendê-lo.

A pobre moça ficou com o cabelo numa verdadeira pasta!

O barro acumulou... Coitada, tão vaidosa...

De nada adiantou seu esmero em ficar bonita.

Ela olha para o namorado, desolada e, esse para consolá-la,

arreda seu cabelo para poder depositar um beijinho em seu rosto,

mentindo: Não querida, tu estás bem. E, tenta ajeitar a pasta sobre

a cabeça da moça. Só que quanto mais mexe, pior fica e, ele desiste.

Todos vão entrando no ônibus como podem.

Uma senhora gorda querendo passar a minha frente dá-me um empurrão que quase me quebra ao meio. Meus livros

caem e, enquanto um senhor de um braço só, tenta ajudar-me a reunir minhas tralhas, os outros vão embarcando. Juntamos tudo e, também entramos no ônibus.

Na minha frente um carinha desses que vêem ao mundo só pra torrar a paciência alheia

tranca na roleta. E, se põe a revirar bolsos em busca do dinheiro da passagem.

Puxa! O cara sabia que ia pegar o ônibus, podia ter separado o dinheiro em casa e, mesmo que não tivesse tido tempo de fazer isso em casa, ficamos mais de vinte minutos esperando o ônibus na parada. Por que não separou o dinheiro?!

Depois de passarmos por mais duas paradas e, já estar ficando difícil se acomodar no espaço entre a catacra e, a porta dos fundos do carro, posto que, como o cara não desempacava dali, as pessoas se obrigavam a ficar amontoadas na parte de trás do veículo, o talzinho encontra o dinheiro e, pagando sua passagem, passa para frente.

Uffa!... Chega a minha vez,

alcanço o dinheiro para o cobrador, pego minha passagem e, passo a catacra. Por sorte, uma moça levanta para descer e, eu aproveito o lugar.

Sento com minhas tralhas. E, começo a estudar minha estratégia de como farei para passar para frente quando estiver chegando próximo ao meu ponto.

O ônibus pára novamente em outro ponto.

Sobem e descem mais passageiros. E, entre eles, uma senhora que adora bater pernas a toa no centro todo o dia. Mas, tudo bem, a vida é dela, se tem tempo pra fazer isso, melhor pra ela. E, começa a olhar-me com insistência. Quer o meu lugar. Mas, pô! Eu paguei a passagem, estou indo trabalhar, cheia de porcarias pesadas nas mãos.

Ela anda gratuitamente e, vai passear. É eu sei que os velhos já deram sua contribuição para o país. Mas, não ela, que nunca trabalhou na vida! Primeiro vivia à custa do pai, depois do marido.

E, agora, viúva, vive da pensão do marido e, da aposentadoria dela própria, por idade.

Eu sempre dou o meu lugar para os mais velhos, para os doentes e, para as mulheres grávidas ou com crianças no colo. Mas, hoje, pra essa velha preguiçosa e, folgada, decididamente, não estou a fim de

levantar de meu lugar. Mas, a consciência pesa... Que droga! Por que eu sou assim?!

Por milagre, coisa rara de se ver nos dias de hoje, vejo um rapaz de uns 17 anos levantar-se no banco a frente do meu e, oferecer o lugar para a senhora. Respiro aliviada e, peço a Deus para abençoar aquele jovem, que sem saber, salvou-me também.

De repente, ouço o choro de uma criança e,

os resmungos da mãe. Olho para o lado e, vejo a gorda que quase me quebrou na parada, com uma menininha ao colo. Estranho que com o carro lotado como estava, as pessoas deixaram aquele espaço em branco e, se apertavam mais a frente, ou mais pra trás. Então, sinto um cheiro esquisito, olho para o chão do carro e, vejo que está molhado, parece vômito. Dali a pouco, a menina vira para mim, mira bem onde estou e, vomita. Fico com meu braço todo imundiciado, um cheiro insuportável. Eu até poderia tirar a blusa, se tivesse espaço no veículo e, se eu não estivesse com tantas tralhas nas mãos. Mas, não tinha jeito.

A mãe briga com a pobre criança mas,

a culpa é dela, que entupiu a criança antes de pegar o ônibus. Aliás, como as mães daqui têm mania de fazer isso. Então, do centro

para cá, a situação piora sensivelmente. As mães ficam na galeria comprando tudo quanto é porcaria para as crianças e, se ainda dissessem para que deixassem para comer em casa.

Mas não, elas entopem as crianças ali mesmo. Depois, quando entram no coletivo, logo nas primeiras paradas já começa o revertério... E, em seguida, mais parece um concerto musical de má qualidade, ou uma pocilga cheia de porcos rosnando, para culminar com o festival de vômito.

Quem viaja nesses ônibus que nunca tenha sido atingido por uma certeira como eu fui hoje?!

Bem, chega o meu ponto e,

dessa vez, não tenho maiores dificuldades pra descer. Todos sabem que estou suja e, tratam de fugir de mim como podem, pra que eu não os suje também.

Desço e, caminho o mais rápido possível para que não me vejam nem sintam meu fabuloso ¨perfume¨.

Entro na escola e, corro ao banheiro, para tomar um banho antes da aula e, tentar lavar minha blusa para não ter de carregá-la cheirando daquele jeito. E, quando vou fazer isso, é a minha vez de quase chamar o Hugo. Opto por jogar a blusa ao chão do box e, deixar que a água de meu banho ajude a amenizar a situação da blusa. Depois, crio coragem e, lavo a mesma.

Aí, tenho de tomar banho de novo, porque me sinto horrível. Quando termino, meus alunos já estão entrando para as salas e, lá vou eu para mais um dia de trabalho.

Ao final da tarde,

já sei que terei de enfrentar outra vez o suplício do ônibus, outras crianças vomitando, outras mães se irritando, passageiros reclamando do preço da passagem, do aperto dos carros e, o pobre do cobrador tentando explicar que é apenas um funcionário cumprindo ordens. Também, ficarei com meu cabelo emplastrado, minha pele ressecada, poeira em todos os poros, nariz congestionado, tentando

desesperadamente aspirar o pouco perfume que ainda sobra em minha roupa, pra não sentir o cheiro pavoroso de suor, vômito, chulé e, sabe mais o quê, que se encontra diariamente nesses carros. Isso sem contar com o jogo de empurra-empurra e, a briga por lugares.

A única alegria que se tem nessas viagens,

é a belíssima visão que se tem dos campos verdes, das flores multicores, dos pássaros de várias espécies e, demais animaizinhos

que se vê correndo pelos campos e, as vezes até nas rodovias que ficam ao lado destes.

E, o riso de nossas crianças, que graças a Deus, ainda é puro, enquanto essas brincam nas praças ou em frente às suas próprias casas.

Não fosse por isso,

provavelmente, não teria mais condições de continuar fazendo essas cansativas viagens diárias.

Agora, vou terminando porque estou esperando o próximo ônibus. Outro dia tem mais.

Tânia Regina Voigt – 16/09/07