"VIDAS PRETAS IMPORTAM"

"VIDAS PRETAS IMPORTAM"

À propósito do histórico esforço oficial de buscar minimizar o legado triste da Escravidão no Brasil, encontramos uma enorme quantidade de citações relacionadas a isso nas publicações de livros, jornais, revistas, etc... Um pequeno exemplo disso encontra-se no cancioneiro popular brasileiro, e que tomo a liberdade de pinçar um pequeno trecho de um livro, recentemente citado aqui no meu perfil, que bem traduz essa estupidez de tentar "tampar o sol com a peneira'.

A Escravidão no Brasil foi sim muito triste, durou quase 400 anos, e, por briguinha entre a monarquia e a elite da época, agravada com a promulgação da Lei Áurea, favoreceram a Proclamação da República pouco mais de 1 ano depois. Propositalmente nada fizeram para os negros libertos, deixando-os na busca de lugar para viverem nesse imenso país, sem recursos, sem terras sem nada para o seu sustento.

Negar a condição do negro hoje no Brasil e tentar "suavizar" essa triste história, é uma retórica desgastada e idiota.

Na tentativa de sensibilizar a sociedade, nem sempre adepta de uma boa leitura, não se aprofundando nos assuntos importantes e informando-se apenas superficialmente pelas atuais midias sociais, nem sempre verdadeiras (fakee news proliferam), trago também a contra-capa do livro de Laurentino Gomes, reproduzida na foto anexa a essa postagem.

Destaco apenas: "Experiência mais determinante na história brasileira, a escravidão teve impacto profundo na sociedade, na cultura e no sistema político-econômico que deu origem ao país após a Independência. Nenhum outro assunto é tão importante e tão definidor da nossa identidade nacional. Estudá-lo ajuda a explicar o que fomos no passado, o que somos hoje e também o que seremos daqui para a frente."

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Sobre o esforço oficial para a minimização do legado da Escravidão no Brasil

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Eu não sou cachorro, não

Paulo Cesar de Araújo

Trecho: De armas, bandeiras e lápis na mão – Pgs. 221 a 223

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O vendaval ufanista do período do governo Médici arrastou mais artistas da MPB que transitavam pelos círculos da esquerda. Que o diga o cantor Ivan Lins, que no Festival Internacional da Canção, em 1970, para surpresa do público universitário, apareceu com a composição “O amor é o meu país”. Uma testemunha daquele festival, o jornalista Mylton Severiano, recorda-se ainda hoje da primeira audição da música de Ivan: “Aquilo soou como um acinte para nós, os massacrados; parecia a versão musical do lema “Brasil: ame-o ou deixe-o” da ditadura”.

A oposição protestava, mas as adesões ampliavam. O conjunto “Os três Morais”, grupo vocal que despontou no início dos anos 60 no programa ”O fino da bossa” e que acompanhou o Chico Buarque na gravação de “Noite dos mascarados” (marcha-rancho incluída no segundo LP do cantor), também harmonizou suas vozes com as mensagens da propaganda oficial do regime. Em 1973 eles gravaram as marchas “Amor e paz” - “não adianta querer lastimar/ melhor é poder colaborar...” – “O Brasil merece o nosso amor”, versão musical do slogan homônimo lançado pelo presidente Médici em agosto daquele ano: “Prá frente, com decisão / iremos com união / paz com trabalho e dedicação / mostrando com o orgulho todo nosso valor / o Brasil merece o nosso amor...”

Outro famoso slogan cívico-patriótico do governo Médici foi incorporado em 1972 pelo compositor João Roberto Kelly. Autor de algumas das mais populares marchas carnavalescas – Cabeleira do Zezé, Mulata ie, ie, ie, Rancho da praça onze - , o compositor utiliza esse mesmo ritmo em “Você constrói o Brasil”, faixa gravada pela cantora Emilinha Borba, a “favorita da Marinha”, mas que também deve ter agradado a todos do Exército e da Aeronáutica: “Pisando firme, numa terra firme / sem guerra e sem nada que aborreça ... / você constrói o Brasil / e vai construir muito mais / tudo está virando jóia, jóia de amor e de paz...”

Este sentimento de ufania e de otimismo com o país era intensificado pela propagada ideia de que existiria congraçamento racial e social no Brasil – tópico defendido pelos ideólogos do regime militar. Em maio de 1972, por exemplo, num ato público comemorativo aos 84 anos de assinatura da Lei Áurea, o presidente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Aureliano Leite, discursou que apesar da existência da casa-grande e da senzala “sejamos gratos aos nossos destinos, que nos pouparam de males piores” porque, segundo ele, “a escravatura não impediu que o Brasil conseguisse penetrar na era atual de franco progresso, sem profundos desníveis, nem os entraves dos complexos raciais”. Surpreendentemente, esta ideia também foi respaldada naquela época pela cantora (e mais tarde militante do movimento negro) Leci Brandão, autora do samba “Nada sei de preconceito”, que exalta: “Minha terra é verde-amarela / e meu amigo branco é meu irmão / ele é do asfalto e eu sou da favela / mas existe a integração...”.

Do Universo do samba para a canção sertaneja o discurso é praticamente o mesmo. A dupla Léo Canhoto e Robertinho, uma das precursoras no uso de instrumentos elétricos na música de origem caipira, lançou em 1971 a marcha “Minha Pátria Amada”, composição que em cinco estrofes reúne alguns dos principais mitos já construídos ao longo do tempo sobre a nacionalidade brasileira: país da democracia racial (“aqui os negros e os brancos se entendem / sem preconceito nem raça e nem de cor...); do homem cordial (“o brasileiro sempre foi muito gentil / quem nasce aqui tem mais bondade e mais amor...”); da convivência harmoniosa (“nós trabalhamos semeando em nossa terra / ordem e progresso / liberdade, paz e amor...”); da história incruenta (“aqui, seu moço, não existe a tal guerra / nosso caminho é enfeitado de flor...”); e do paraíso tropical (“Brasil querido / tua beleza não se encerra / tu és a terra prometida por Deus”.)

Os exemplos de músicas ufanistas produzidas naquela época são vários, não havendo necessidade de citá-los todos – ainda assim, alguns outros títulos representativos, com destaque para a produção do compositor Miguel Gustavo, serão apresentados no capítulo “No país dos mortos-vivos”. Por hora, basta dizer que não foi por mera coincidência que exatamente no início do período do “Milagre” (1969-70), diversos cantores brasileiros resolveram regravar a ufanista “Aquarela do Brasil”, de Ari Barroso. O famoso samba-exaltação – lançado por Francisco Alves em 1939 e principal trilha sonora da ditadura do Estado Novo - , ressurgia exatos 30 anos depois em outra ditadura, a militar, e em gravações quase simultâneas nos discos de Elis Regina, Tom Jobim, Agostinho dos Santos, Erasmo Carlos, conjunto Os Incríveis e outros.

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Com essas e outras dá para entender o motivo das declarações dos senhores Presidente Jair Bolsonaro e de seu vice-presidente Hamilton Mourão, ambos advindos da caserna. O que manifetaram está incrustado no pensamento nacional e se arrasta desde a Lei Áurea. Triste isso. São preconceitos latentes que nessas situações são manifestadas, para tristeza daqueles que lutam para que a população negra no Brasil tenham um melhor "espaço social" e mais condizente com sua condição de brasileiros.

"VIDAS PRETAS IMPORTAM"

MARCO ANTONIO PEREIRA
Enviado por MARCO ANTONIO PEREIRA em 22/11/2020
Código do texto: T7117755
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