O vírus e a (in)consciência de classe

O porteiro do prédio onde Paulo morou, ao dar entrevista sobre o talentoso ator e humorista recém falecido por Covid-19, afirmou que “para esse vírus não tem rico, não tem pobre, não tem branco, não tem preto”.

O que aquele senhor e muitos outros trabalhadores das classes cada vez mais empobrecidas parecem não perceber é que, em vários momentos, há não só diferenças, mas sobretudo desigualdades.

Sim, quando a hora da morte chega, somos de certo modo igualados. Mas há quem tenha tido a oportunidade de lutar pela vida, a partir de recursos tecnológicos de ponta e equipes muito bem qualificadas. Nada de mau, nada de errado, quando acessado de forma honesta, com recursos de seu trabalho, como é o caso do ator mencionado. Outros, no entanto, que também trabalham ou de alguma forma contribuem para gerar a riqueza coletiva deste país, sucumbirão por falta de oxigênio, uma “tecnologia” teoricamente mais simples e acessível, cujo próprio artista colaborou para ajudar a prover aos que foram violentados em Manaus pelos desgovernos nos três níveis, mas sobretudo federal.

Antes de disputar a vaga e os recursos do SUS (um sistema importantíssimo pelo qual devemos sempre lutar para manter/fortalecer), quantos tiveram acesso à água potável, moradia, coleta/tratamento de esgoto, máscaras, álcool 70, comida suficiente...? Quantos tiveram condições de fazer isolamento, com apoio decente dos governos e/ou de um trabalho seguro para sua subsistência? Não foi (e não é) a realidade da maioria, sabemos. E dentre este maior número de pessoas, sem condições de acessos, destaca-se sim a população negra com sua quase similar situação de pobreza e ruína das condições de existência. Cabe lembrar, portanto, o quanto o “ponto de partida” da história e formação social deste país, com extermínio de indígenas e escravização de corpos negros, tem influência no contexto de agora.

Corpos negros que, aliás, continuam a ser brutalmente vitimados e exterminados pelo Estado, como visto recentemente no Jacarezinho.

O vírus é letal, brutal, avassalador. Porém, todos estes adjetivos devem ser aplicados exponencialmente aos que praticam a “política da morte” (necropolítica) e que deveriam garantir a vida. E, neste sentido, o vírus biológico somado ao social, tem impacto sim de forma diferente para ricos, pobres, brancos e negros.

Tomara o porteiro, um senhor negro, trabalhador assalariado de talvez uns sessenta e poucos anos, tenha tido acesso às duas doses da vacina, pois certamente não teria tratamentos caros à sua disposição, caso viesse a precisar. Imunização esta que ao jovem artista não foi garantida a tempo, por (des)responsabilidade de um (des)governo que em lugar de providenciar medidas para contenção da pandemia, ocupa-se de contribuir e muito para piorá-la.

À percepção das desigualdades impostas pelo modo de vida (produção) no qual estamos mergulhados, Karl Marx chamou de “consciência de classe”. Que não nos falte esta percepção, mesmo (ou principalmente) diante do caos!

Por Márcia Estulano, maio de 2021.

Márcia Estulano
Enviado por Márcia Estulano em 08/05/2021
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