Biologia e contexto

João é o nome fictício de qualquer garoto que nasce em uma família pobre e que, desde bem cedo, começa a se destacar intelectualmente, sem ter uma grande cadeia de estímulos fortes ou incisivos que justifique a sua precocidade. Pois parece que a única alternativa de explicação que restou é de que João nasceu assim mesmo, com um potencial acima da média, começando a apresentá-lo logo nos primeiros anos de vida. O contexto social em que João nasceu e vive não explica a sua inteligência, porque não impediu que ele aprendesse a falar, a escrever e a fazer contas matemáticas mais rápido que as crianças da sua idade. Ele deve ter herdado alguma mutação que o fez diferente de sua família. Eu sei que é uma especulação, mas é porque parece que só sobrou a biologia para explicá-lo.

Esse caso é desconcertante para quem atribui qualquer padrão de comportamento humano apenas ao meio em que se vive. No entanto, pode ser que não sejam apenas os superdotados que nascem superdotados. Pode ser que todos nós também nascemos mais ou menos programados para chegarmos a um certo nível de desenvolvimento intelectual...

Mas, então, o contexto não tem importância alguma??

Mesmo demostrando ser precoce, João precisou ser exposto à uma língua para aprender a falá-la, à sua escrita para aprender a escrevê-la. E, na escola ou em casa, também precisou ser exposto a conhecimentos para aprendê-los. Isso significa que se não tivesse acesso a esses estímulos primários, não teria aprendido, por exemplo, a ler e escrever "sozinho", sem ter um idioma disponível à sua frente.

Mesmo se João tivesse nascido em uma tribo indígena, intocada pelo "homem branco" , ele teria desenvolvido sua superdotação de qualquer jeito, mas de acordo com o contexto cultural em que se encontra.

Em relação à sua vida adulta, se ele não tiver oportunidades para usar a sua inteligência de maneira mais direcionada, pode acabar vítima das circunstâncias ou do contexto em que vive, de, ao invés de se tornar professor, inventor ou cientista, acabar na ''boca do tráfico''. Mas, também tem o fator da personalidade. Pois se João tiver uma personalidade mais anti social, ele pode usar sua inteligência para favorecer apenas a si mesmo ou em detrimento dos outros, independente do ambiente em que estiver, se dentro de uma universidade ou junto com traficantes, por exemplo. Ainda assim, o contexto continua a ser importante porque ninguém vive completamente isolado do seu meio e, portanto, é preciso estar sempre se adaptando a ele.

Claro que existem casos e casos. Tem aqueles em que ocorre atraso no desenvolvimento, até por alguma questão de saúde, por exemplo, de nascer com certo tipo de autismo e demorar para desenvolver habilidades básicas, como falar e escrever. De qualquer maneira, a biologia continua tendo um papel muito importante e a precocidade intelectual é um exemplo notório disso.

Saindo desse exemplo fictício, baseado em casos reais e usando a mim mesmo como demonstração:

Bem, eu nunca fui bom em matemática, especialmente a partir da quinta série, quando deixou de ser apenas sobre fazer tabuada, porque foi aí que eu comecei a ficar para trás em relação à minha classe. Em compensação, eu me desenvolvi mais em outras matérias, especialmente em geografia e história. Quanto a português, a parte da gramática sempre me pegou. O que eu sei é que nada disso foi por falta de esforço ou motivação. Não dá para culpar o meu contexto por não ter sido um aluno excelente, principalmente nas ciências exatas. Nem professores, nem pais, nem eu mesmo. Não foi por falta de livros ou tempo para estudar mais, apesar de já ter percebido minhas debilidades matemáticas desde cedo e de ter constatado que um esforço extra seria inútil. Porque eu fui percebendo coisas importantes sobre mim: de que tenho uma espécie de discalculia moderada, que é o equivalente à uma dislexia, só que para números do que para palavras. Que também não sou bom na resolução de problemas matemáticos complexos. Por isso que eu sou mais lento para fazer contas do que a maioria das pessoas e nunca consegui tirar notas altas em provas de matemática ou física. Eu poderia dizer que "sofro" de uma "dificuldade de aprendizagem" específica. Mas, o que deveria ter aprendido de ciências exatas, eu já aprendi, sem falar que, muito do que nos é passado na escola, a maioria nunca usa em seus cotidianos. Afinal, para que serve exatamente uma fórmula de Bhaskara???

Por fim, uma das percepções mais importantes que tive sobre mim mesmo é que eu tenho uma grande tendência para ficar obcecado por certos assuntos, que me faz dedicar minha atenção a eles e muito menos ao resto. O que explica nunca ter conseguido me concentrar integralmente na matéria dada no quadro, se eu já tinha os meus interesses ocupando a minha mente, que algumas vezes se alinhavam com o conteúdo escolar. Eu até denominei essa minha incapacidade de deixar os meus interesses intelectuais e pessoais de lado, para estudar para uma prova, por exemplo, de baixo "controle cognitivo". E que também pode ser chamado de alta ''motivação intrínseca''. De qualquer maneira, assim como um superdotado não pode ser explicado APENAS pelo meio em que vive, parece que o mesmo acontece comigo e, talvez, com vocês também. Isso não significa que, então, já está tudo determinado e não podemos fazer absolutamente nada para mudar nossos destinos. Mas também não significa que seja só uma questão de se esforçar mais ou de ter sido estimulado desde pequeno, por supostamente termos os mesmos potenciais cognitivos. Nem um extremo, nem outro.