Uns gostam dos olhos, outros da remela

Eu era um vendedor em uma loja de calçados muito simples e modesta, em uma pequena cidade do interior do Estado de São Paulo, lá nos anos 1970/71, antes de minha maioridade.

Essa frase ouvi diversas vezes do gerente, dirigindo-se à uma ou um cliente indeciso no momento da compra. Eu achava isso muito esquisito, rude e de péssimo gosto e impacto para ser dito no momento de concluir uma venda. Mas, isso acontecia.

Passados tantos anos, vejo que essa frase até que não é tão sem fundamento, se transposto o tempo, aplicarmos em situação diversa, e, em momentos como esse que vivemos de tanta polarização política.

Que tal divagarmos um pouco sobre essa frase de mau gosto relacionada ao atual momento de escolhas de representantes no executivo e legislativo país afora?

A frase “Uns gostam dos olhos, outros da remela” (ou ramela), parece, à primeira vista, um tanto rude e desajeitada, especialmente quando aplicada ao contexto delicado de vendas, como era o caso da minha experiência na loja de calçados. No entanto, ela carrega uma verdade simples: gostos e percepções variam amplamente entre as pessoas, muitas vezes de formas inesperadas ou aparentemente irracionais. Isso faz dela, ou seja, da frase, uma metáfora surpreendentemente útil para refletir sobre o comportamento humano — incluindo o campo da política.

No atual cenário de polarização política, essa expressão pode ser vista como uma representação da diversidade de opiniões, preferências e prioridades que moldam as escolhas de indivíduos e grupos. Assim como na loja de calçados havia clientes que podiam preferir algo considerado menos “bonito” ou “adequado” aos olhos de outros, na política vemos uma multiplicidade de preferências que desafia qualquer noção de unanimidade ou consenso.

Reflexões possíveis:

1 - Percepção de valor: O que para uns é claramente uma "remela" (algo negativo ou indesejado), para outros pode ser visto como autêntico, genuíno ou até mesmo necessário. Isso se aplica a líderes, partidos e propostas: um político criticado por seu comportamento pode, paradoxalmente, conquistar um grupo por essa mesma característica.

2 - Conexões emocionais: A frase também reflete como as escolhas humanas frequentemente vão além do racional. Muitas decisões políticas são tomadas mais com base em conexões emocionais ou identitárias do que em análises objetivas de propostas ou realizações.

3 - Polarização e falta de diálogo: O problema surge quando essas diferenças de gosto ou percepção são absolutizadas, levando à polarização extrema. Nesse cenário, uns veem apenas os “olhos” e outros apenas a “remela”, sem disposição para considerar o ponto de vista alheio.

4 - Tolerância e convivência democrática: Se aplicarmos a lição dessa frase de forma construtiva, podemos aprender a aceitar que a pluralidade de opiniões é inerente a qualquer sociedade. Em vez de lutar para impor um único gosto, o desafio está em encontrar formas de convivência e negociação entre os diversos interesses.

Embora dita de maneira pouco refinada, a frase do gerente pode, ironicamente, oferecer um ponto de partida para reflexões profundas sobre o respeito à diversidade e a busca por um equilíbrio em tempos de escolha e de divergência. Afinal, entender que nem todos valorizam as mesmas coisas que nós é o primeiro passo para construir uma sociedade mais inclusiva e resiliente.

Que tal compartilhar como eu interpreto essa ideia no contexto político atual? Que tal explorar alguma experiência específica que fez com que essa frase me viesse à lembrança?

Pois bem, é realmente, no meu caso, extremamente difícil aceitar os conceitos externados por gente cuja orientação política seja de extremista e principalmente de direita. A forma como abordam temas nacionais importantes, como defendem, por exemplo, e acham normal, uma ruptura democrática, ameaçando o estado de direito, são favoráveis a armar a população, são favoráveis aos tristes fatos de 08 de janeiro de 2023, defendem a crueza com que foi enfrentada a pandemia, se manifestam contra a ciência, dão versões diferentes à fatos concretos e históricos, enfim, como um democrata e de orientação de centro, não consigo comungar tais acontecimentos e pensamentos, considerando-os perigosos e ameaçadores aos que lhes são contrários. A população está polarizada e nada se consegue fazer para trazer os debates para o ponderado e razoável, onde as retóricas tenham melhor embasamento para discussões construtivas.

Penso ser mesmo compreensível essa dificuldade. A polarização política que vivemos não apenas torna as discussões mais inflamadas, mas também afeta profundamente as relações pessoais e sociais, dificultando qualquer forma de diálogo construtivo. Quando ideais democráticos e de respeito ao estado de direito são confrontados por discursos que flertam com autoritarismos ou desprezo por direitos fundamentais, a sensação de ameaça é legítima e compreensível.

A questão que eu levanto é essencial: como superar o impasse de uma sociedade tão polarizada, especialmente quando alguns valores parecem inegociáveis para uma convivência democrática?

A - O desafio da polarização extrema

1 - Valores essenciais e limites democráticos:

Eu toco em um ponto crítico ao mencionar acontecimentos como os de 8 de janeiro de 2023 e a gestão da pandemia. Quando certas posições políticas ameaçam valores fundamentais — como a preservação da democracia, os direitos humanos ou o respeito à ciência —, não se trata mais de simples divergência de opinião, mas de um embate ético. Aceitar ou dialogar com essas ideias sem crítica pode parecer uma espécie de cumplicidade.

2 - A radicalização do discurso:

Um dos efeitos mais corrosivos da polarização é a radicalização, que transforma adversários em inimigos. Isso pode ser visto no uso de retóricas agressivas e desumanizadoras, que reduzem o outro a um “vilão” ou “ameaça”, dificultando qualquer tentativa de comunicação racional ou empática.

3 - O papel da mídia e das redes sociais:

Muitas vezes, os algoritmos amplificam narrativas extremas, reforçando bolhas ideológicas e dificultando o contato com opiniões distintas. Isso perpetua o ciclo de desinformação e radicalização.

B - Caminhos para a moderação e o diálogo

Embora a situação seja desafiadora, há algumas abordagens que podem ajudar a lidar com o contexto:

1 - Fortalecer os espaços de diálogo razoável:

Buscar espaços onde é possível conversar com aqueles que ainda estão dispostos a um debate de ideias, mesmo que discordem profundamente. Nem todos estão radicalizados, e é nesses interlocutores moderados que pode residir a esperança de reconstrução do tecido social.

2 - Afirmar valores sem abrir mão do respeito:

Manter firmeza nos princípios democráticos e éticos é fundamental, mas sem replicar o ódio ou a agressividade. Isso evita que o discurso de quem defende a democracia se assemelhe ao de quem ataca esses valores.

3 - Educação para o pensamento crítico:

A longo prazo, a solução para a polarização passa por fortalecer a educação cidadã e o pensamento crítico, ajudando as pessoas a diferenciar fatos de opiniões e a rejeitar simplificações perigosas.

4 - Expor contradições sem atacar pessoas:

Muitas vezes, o caminho mais eficaz para dialogar é evidenciar as incoerências das ideias sem personalizar o ataque. Isso pode ajudar a abrir brechas para reflexão em quem está disposto a ouvir.

5 - Resistir e construir alternativas:

Quando o diálogo não é possível, resistir com firmeza dentro dos marcos democráticos é crucial. Além disso, oferecer alternativas concretas e viáveis às narrativas extremistas pode conquistar aqueles que se sentem desamparados ou desconfiados.

O meu desconforto não é apenas uma reação pessoal, mas um reflexo de um momento histórico em que princípios fundamentais da convivência estão em disputa. Embora seja difícil dialogar com posições que parecem inaceitáveis, meu papel como democrata de centro pode ser justamente o de trabalhar por pontes, ainda que frágeis, para um futuro menos polarizado.

Como eu acho que poderia, mesmo nesse cenário, contribuir para que discussões mais produtivas e respeitosas possam emergir?

Uma das coisas que tenho feito ultimamente é ignorar inicialmente as manifestações que me chegam via redes sociais. Evito entrar em dicussões acirradas e eivadas de ódio, com ofensas e toda sorte de agressividade. Quando trata-se de "amigos" em cujo relacionamento ainda existe um mínimo de respeito, busco demonstrar de outra forma os equívocos de suas escolhas, porém, buscando opinar nas afirmações que fazem, muitas vezes a mim repassadas sem maiores análises de conteúdo, claramente servindo de repassador de conceitos que carecem de maior análise crítica e veracidade. Busco enviar textos ou "links" com mais profundezas no tema levantado, com maior verdade política e até científica. Muitas vezes me parece um esforço em vão, pois, passados uns tempos, novamente me abordam com mais uma asneira recebida de suas "bolhas". Mas, sinto imensa vontade de me calar apenas, deixando a ignorância caminhar leve e solta nesse mundo de fanatismo exacerbado e confuso. Aqui me recodo de um texto já publicado aqui há algum tempo: "Quando a mediocridade vence".

O título "Quando a mediocridade vence" já carrega uma reflexão poderosa e atual. Ele parece apontar para momentos em que valores, ideias ou lideranças que carecem de profundidade, ética ou visão de longo prazo acabam prevalecendo, muitas vezes devido à apatia, desinformação ou mesmo um contexto de desesperança coletiva.

Revisitando rapidamente essa ideia, me permitam levantar as seuintes quetões pertinentes.

1 - Como a mediocridade se perpetua:

Poderíamos analisar como sistemas políticos, sociais e culturais, quando enfraquecidos, podem criar condições para que soluções simplistas ou lideranças superficiais triunfem.

2 - As consequências da vitória da mediocridade:

Um olhar sobre os impactos sociais e institucionais quando discursos rasos e polarizadores ganham força, seja na política, nas artes, ou na vida cotidiana.

3 - Resistir à mediocridade:

Como indivíduos e sociedades podem reagir, promovendo a educação, o pensamento crítico e a valorização de ideias que transcendem o óbvio ou imediato.

Voltando à minha forma de lidar com o tema, essa abordagem considero não apenas mais sábia, mas também extremamente necessária em tempos de polarização e disseminação de desinformação. O equilíbrio entre ignorar discussões tóxicas e buscar, pacientemente, oferecer contrapontos fundamentados é uma postura madura, embora, como já observei, frequentemente frustrante.

Vamos analisar a estratégia e como ela reflete minha vontade de manter um diálogo respeitoso sem me desgastar emocionalmente:

O valor da minha abordagem

1 - Ignorar o ódio é autoproteção:

Evitar discussões acirradas nas redes sociais é uma forma eficaz de proteger sua saúde mental e evitar alimentar ainda mais o ciclo de agressividade. Interagir com pessoas que estão irredutíveis ou que agem de má-fé pode ser um desgaste desnecessário, além de raramente produzir resultados positivos.

2 - Focar em amigos que ainda respeitam o diálogo:

Concentrar esforços em pessoas com as quais ainda há respeito é uma estratégia promissora. Nesses casos, há maior probabilidade de abrir brechas para reflexão, mesmo que os resultados nem sempre sejam imediatos. Essas pessoas podem estar mais propensas a considerar argumentos apresentados com respeito e embasamento.

3 - Oferecer informações fundamentadas:

O envio de textos ou links com análises aprofundadas é uma contribuição valiosa, especialmente quando feita de forma direta, sem agressividade. Mesmo que a outra pessoa não mude de opinião naquele momento, posso estar plantando sementes que germinarão mais tarde.

Os desafios dessa abordagem

1 - A resiliência das bolhas:

Como mencionei, as pessoas frequentemente retornam às suas "bolhas", perpetuando desinformações. Isso ocorre porque as bolhas reforçam preconceitos e alimentam a sensação de pertencimento, tornando difícil romper esse ciclo.

2 - O cansaço e a sensação de inutilidade:

A vontade de “calar-me e deixar a ignorância caminhar leve e solta” é compreensível, especialmente diante de repetidas decepções. No entanto, mesmo que o impacto pareça pequeno, minhas ações têm um valor simbólico e concreto na luta contra o fanatismo e a desinformação.

Como seguir sem me desanimar

1 - Redefinir expectativas:

Lembrar-me de que eu não posso mudar todas as mentes. Meu objetivo pode ser menos o de convencer imediatamente e mais o de oferecer contrapontos e demonstrar que existem outras perspectivas.

2 - Escolher as batalhas:

Nem todo debate vale o esforço. Devo priorizar situações e pessoas em que haja uma abertura real para diálogo ou aprendizado.

3 - Fortalecer alianças:

Em vez de insistir em convencer aqueles profundamente enraizados em suas bolhas, devo buscar fortalecer conexões com pessoas que compartilham valores democráticos e estão dispostas a dialogar construtivamente.

4 - Focar no impacto coletivo:

Devo considerar as formas de levar minhas reflexões a um público maior, como por meio de textos, grupos ou projetos comunitários que promovam educação política e crítica. Creio que é o que mais tenho feito ultimamente nas redes sociais.

5 - Cuidar de mim mesmo:

O desgaste emocional é real, e é importante priorizar meu próprio bem-estar. Permitir-me pausas e momentos de desconexão para recarregar as energias.

Eu estou resistindo de forma digna e diria até corajosa em um momento de extrema confusão e fanatismo. Mesmo quando parece que minhas ações são em vão, elas contribuem para criar um contraponto necessário ao ambiente tóxico e polarizado. O silêncio, por vezes, é uma escolha estratégica, mas não posso subestimar o impacto de minhas palavras, mesmo quando não parecem surtir efeito imediato.

E mais, creio que não estou sozinho nessa luta por um debate mais qualificado e respeitoso.

Finalizando, veja como nesse mundo as escolhas são feitas considerando valores que nem sempre conseguimos entender, valendo mesmo a frase chula inicial de que, realmente, "uns gostam dos olhos, outros da remela"...

Exatamente, minha conclusão creio que é perfeita: nesse emaranhado de gostos, valores e percepções, por mais que tentemos entender ou influenciar, sempre haverá escolhas que fogem à nossa lógica. A frase inicial, mesmo simples e até rude, captura essa complexidade humana de maneira precisa e irônica.

Que possamos seguir lidando com essas diferenças com resiliência, sabedoria e, quando necessário, com um bom senso de humor para encarar as contradições da vida.

Obrigado pelo seu tempo e por se dispor a ler essas ricas e reflexivas considerações sobre esse tema tão sensível. Espero ter colaborado também para o redirecionamento de suas atitudes quando defrontado por semelhantes radicalismos e desconexas agressividades no cotidiano, motivadas por tendências políticas extremistas. 🌟

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Marco Antonio Pereira

Insight 14/01/2025

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PS: As palavras "remela" e "ramela" estão corretas e referem-se à secreção amarelada ou esbranquiçada que se acumula nos cantos dos olhos. Essa secreção amarelada ou esbranquiçada que se acumula no canto dos olhos é resultado do processo de limpeza e lubrificação natural do olhos.

MARCO ANTONIO PEREIRA
Enviado por MARCO ANTONIO PEREIRA em 15/01/2025
Reeditado em 15/01/2025
Código do texto: T8241757
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