POST IT - PREFÁCIO AO LIVRO "DO CULTO AO CAIPIRISMO", DE CEZAR AUGUSTO XAVIER MOREIRA
A ARTE DE MINERAR NO ENCANTADOR REINO DAS PALAVRAS
Meu Pai escrevia “hontem” e “haí”. Com “h”. Certo dia, ainda cursando o Primário, eu o corrigi. Respondeu que “na língua não era errado o que um dia estava certo. As palavras apenas perdem a fama e são escritas de outro jeito.” Nas cartas que dele recebia assinava “Seu Pae.”. No trabalho, e para comunicar-se com alguém de fora da Família, escrevia como recomendava o Novo Dicionário: “Era para respeitar as novidades”, justificava.
A literatura e a exploração mineral têm conexão com um verbo que lhes é comum: “minerar”. A curiosidade de aprendiz incorrigível, mais que a “simples casualidade” declarada por Cezar Xavier na Introdução desta obra, é o impulso fundamental em busca das “belezas que estão por toda parte”, como gostava de proclamar o saudoso Mestre e Amigo Octávio Elísio Alves de Brito. Por vezes óbvias, por vezes tímidas, com elas nos deparamos, mas nem sempre percebemos existirem, talvez por descuidada desatenção.
Neste “Arcaísmo na Língua Portuguesa: Do Culto ao Caipirismo”, ficamos diante do resgate de muitas das formas de expressão que, ao longo da História das nossas gentes, a Língua Portuguesa nos oferece abrangendo traços de Portugal, do Brasil, de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe, e Timor Leste.
Abraçar a Língua em todas suas manifestações, sem distinção de qualquer origem, implica em legitimar a identidade que a ela se conecta um Povo. É a um só tempo empatia e solidariedade, daí porque importa que nela todos se sintam agrupados e acolhidos, comprometidos, reconhecidos e conscientes do dever inato, compromissado, de contribuir para que se mantenha viva e mutante, aberta para abrigar em leito generoso todas as manifestações do falar, do dizer, do sentir.
A língua é viva, mutante? Sim, mas diversamente do que ocorre com os corpos, com os organismos vivos, submetidos ao fenômeno da metamorfose que determina às células que surgem a função de renovar-se no processo para substituir as existentes, que lhes dão lugar até se extinguirem e novamente dar sequência ao ciclo da vida, na Casa da Linguagem essa ocorrência se pereniza para enriquecer o patrimônio cultural com o nascimento de novas formas de expressar o pensamento, de manter a continuidade em impermanência criativa que acumula e acolhe outros costumes, apreendidos e revelados nas observações do cotidiano. É isso, na essência, que Cezar Xavier nos apresenta nesta obra, resumindo o que encontrou, atento, nas minerações que perseguiu ao caminhar sem preconceitos pelas inúmeras sendas das palavras, fazendo aflorar riquezas que escapam ao olhar despreocupado.
Obra pronta e não acabada, como adverte o Autor, a um só tempo resgata e traz a lume o resultado de muitas dessas cuidadosas minerações.
A Língua Materna, ou Pátria, como queiram, é um dos indicadores mais relevantes para definir um Povo, uma Nação, um País. O culto à Língua de origem é ato de cidadania que se pratica naturalmente, muitas vezes sem atentar-se para o que dela emerge na construção do processo cultural civilizatório, e o quanto é insubstituível como amálgama das histórias humanas que identificam tradições semelhantes.
“Cultura é a herança social total da humanidade. (Ralph Linton - The Study of Man, 1936)”
Assegurar a perenidade desse amálgama, que preserva e identifica o caldo da cognição coletiva onde cabem todos os falares, sejam derivados da norma culta ou das amplas manifestações multiculturais, é o propósito aqui registrado sob o manto desse vocábulo que é um achado: Caipirismo!
Manter e preservar a Língua acolhendo todas as representações e signos que a constroem, de forma sistemática, é a contribuição deste trabalho de elaborada pesquisa arquitetada a partir de inúmeras fontes. Aqui nos encontramos com a inteireza da nossa Língua Portuguesa desde os primórdios do período Pré-românico, Românico, Galego Português, Português Arcaico e Português Moderno. E caminhamos pelos Movimentos do Trovadorismo, Humanismo, Classicismo, Quinhentismo, Barroco, Arcadismo, Romantismo, Realismo, Naturalismo, Parnasianismo, Simbolismo, Pré-modernismo, Modernismo, Pós-modernismo e... do Caipirismo, que permeia todas as épocas.
Estão explícitas ou implicitamente presentes a “Gramatiquinha do Modernismo de Pés Descalços”, de Mário de Andrade; a cultura caipira bem definida por Ivan Marques; as lições dos consagrados mestres da Língua Portuguesa nos textos de Machado de Assis, Dom Dinis, Camilo Castelo Branco, Paulo Rónai, Guimarães Rosa, José Saramago, Olavo Bilac, Coelho Neto, Luís de Camões, Carlos Drummond de Andrade, Ruy Barbosa, Agripino Grieco, Gil Vicente, Pero Vaz Caminha, Geraldinho Nogueira, Catulo da Paixão Cearense, João Ruiz de Castelo Branco, Francisco de Sá de Miranda, João Garcia de Guilhade, Fernão Lopes, Gomes Eanes Zurara, Rui de Pina, Bernadim Ribeiro, Padre Antônio Vieira, Cruz e Silva, Manuel Maria du Bocage, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Latino Coelho, Antero de Quental, Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro, Júlio Diniz, Ramalho Ortigão, Gonçalves Crespo, Cesário Verde, Eugênio de Castro, Antônio Nobre, Jorge Amado, Garcia de Resende, Antônio Ferreira, João de Barros, Damião de Góis, Diogo do Couto, Agostinho de Macedo, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, Florbela Espanca, Aquilino Ribeiro, Alberto Villas, Fidelino de Figueiredo, Nélida Piñon, Bartolomeu Campos de Queirós, Fernando Pessoa, Antonio Candido, Alceu amoroso Lima, Sérgio Milliet, Afrânio Coutinho, Agrippino Grieco, Afrânio Peixoto, José Guilherme Merquior, Otto Maria Carpeaux, Manuel Bandeira, Câmara Cascudo, Sílvio Romero, Álvaro Lins, Gonçalves Dias, Joaquim Manuel de Macedo, Graciliano Ramos, José de Alencar, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Monteiro Lobato, Mário Quintana, Lima Barreto, Ariano Suassuna, Rubem Braga, Raul Pompeia, Euclides da Cunha, Castro Alves, Cora Coralina, Hilda Hilst, Rachel de Queiroz; e de tantos outros.
A Língua é Patrimônio Espiritual de um Povo. Portanto, dela, e do que dela emana, nada pode nem deve ser esquecido nem relegado. São pressupostos de sobrevivência, dogmáticos, sobre os quais se manifestaram alguns estudiosos.
Antonino Pagliaro, linguista do século XX, ensinava:
"A língua constitui a imagem mais completa e genuína da fisionomia natural e histórica dos povos. Disse-o, há mais de um século, Guilherme von Humboldt, bom conhecedor de assuntos desta natureza e, pelo que sei, ninguém jamais o contradisse. Acrescentava ele que a índole espiritual de uma comunidade e a estrutura da língua estão intimamente tão ligadas entre si que, conhecida uma, a outra devia com facilidade deduzir-se da primeira. Sobre isso não há controvérsia: a língua, representando por um lado a maneira natural através da qual um povo vê e conhece a realidade, sistematizando-a e organizando-a nos sinais de classificação que são as palavras, encerra em si, por outro, o reflexo de todas as experiências internas e externas, de todas as conquistas e de todos os contrastes, porque esse povo passou na cadeia das gerações."
Machado de Assis:
"Não há dúvida que as línguas se aumentam e alteram com o tempo e as necessidades dos usos e costumes. Querer que a nossa pare no século de quinhentos, é um erro igual ao de afirmar que sua transplantação para a América não lhe inseriu riquezas novas. A este respeito a influência do povo é decisiva. Há, portanto, certos modos de dizer, locuções novas, que de força entram no domínio do estilo e ganham direito de cidade."
Paulo Rónai:
"Quando nascemos em uma língua, nós herdamos algo, porque ela já está aí antes de nós, é mais velha do que nós, sua lei nos antecede. Começamos por reconhecer sua lei, isto é, um léxico, uma gramática; tudo isso praticamente não tem idade. Mas herdar, neste caso, não é apenas receber passivamente alguma coisa que já está aí, um bem. Herdar é reafirmar transformando, alterando, deslocando. Para um ser finito, não há herança que não implique uma espécie de seleção, de filtragem. Aliás, só existe herança para um ser finito. É preciso assinar uma herança, contra assinar uma herança, isto é, no fundo, deixar sua assinatura na própria herança, na própria língua que recebemos. Isso é uma contradição: recebemos e, ao mesmo tempo, damos. Recebemos um dom, mas, para recebê-lo como herdeiro responsável, é preciso responder ao dom dando outra coisa, isto é, deixando uma marca no corpo daquilo que recebemos. São gestos contraditórios, é um corpo-a-corpo: recebemos um corpo e deixamos nele nossa assinatura. Esse corpo-a-corpo, quando o traduzimos em lógica formal, resulta em enunciados contraditórios. Portanto, será que é preciso fugir, evitar a contradição, ou será que é preciso conseguir dar conta do que ocorreu, ou justificar o que é, ou seja, essa experiência da língua? Eu escolho a contradição, escolho expor-me à contradição."
Na obra “Sentir a Língua, O Universo de Bobók”, tradução de Paulo Bezerra, encontrei esse trecho que sintetiza bem o que nos traz Cezar Xavier:
"O russo costuma falar de uma coisa que me agrada muito: “tchuvsto yaziká”, que traduzo ora como sensibilidade linguística, ora como sentir a língua quando usada nas conversas comuns, ou sentir a linguagem quando se trata de literatura. Sentir a língua ou a linguagem do outro é sentir o outro, entrar em alguma empatia (ou antipatia) com ele para tentar captar nuances de sua personalidade. Quando traduzimos literatura entramos em atividade estética porque traduzimos a arte da palavra, e essa palavra é do outro. A tradução é uma compenetração na alma e na linguagem do outro, cujo estado d’alma o tradutor precisa vivenciar, colocando-se no lugar dele para senti-lo até nos mínimos gestos. Então, sentir a língua de onde se traduz é compenetrar se totalmente, embeber se dela, vivenciar sua sonoridade, seu ritmo, pensar com seus múltiplos recursos morfológicos e sintáticos, captar e vivenciar a afetividade e também a hostilidade que emanam das falas das personagens. Em suma, entranhar-se na língua de partida, encanar-se, “despersonalizar-se” temporariamente nela, diluir-se na dicção dos seus falantes e assumir seu festival como um ator que representa falas alheias."
As minerações não geram nem oferecem o que se pretende, que é fruto percebido e colhido resultante do trabalho de busca, da seleção que o talento propicia, encontrados poucas vezes ao acaso. Quase sempre são prêmios pelo esforço, talento e habilidade de obtê-los ao percorrer longos caminhos, com persistência metódica inata, que se aplica aos pesquisadores amantes da Língua Portuguesa.
Cezar Xavier expõe os bens que encontrou e de forma organizada os cataloga sob o adequado vocábulo Caipirismo, alçando essa classificação e forma de dizer ao nível que lhe cabe, como de resto a todos os movimentos das expressões e maneiras de dizer. É Arte exposta o que nos traz.
“É próprio da Arte em geral tornar-se acolhedora dos achados fortuitos. Tirar partido dos materiais é, ao mesmo tempo, deixar viver seus acidentes (nós da madeira, particularidade pessoal de um ator, tremor inopinado de um traço) e transmutar esses dados contingentes em uma necessidade nova. É próprio da Arte de viver lidar com o acontecimento; em outras palavras, com o imponderável e o imprevisível.” (Jean Galard, A Beleza do Gesto, 1984)”
Semente acumulada que se reproduz, conhecimentos que por meio e através das palavras se entrelaçam, símbolos da expressão das manifestações culturais tecidas e alinhavadas fio a fio, que acolhidas nas mais diversas fontes são expostas para fixar outros conhecimentos, enlaçar-se pela sedução de novos afetos, induzir desejos e sonhos; e libertar fantasias que afloram do encantado reino das palavras. Por isso, nenhuma pode nem deve ser esquecida, relativizada ou submeter-se a classificações de mérito, sofrer o constrangimento do anonimato, ficar esquecida nos porões da frágil memória humana. Ao contrário, são heranças e legados que devem ser registrados pelos meios e canais de distribuição “a mancheias”, para servir a todos.
É da condição humana a pulsão essencial pelo direito à liberdade para voar como andorinhas, aventurando sem referências momentâneas para vivenciar outras sensações, apropriar distintos gestos, absorver particularidades e atributos alheios. É instigante viajar com destino, mas sem rumo, ao sabor dos ventos, sem atender às recomendações das birutas; e prazeroso compartilhar as experiências, aprendizados e percepções apreendidas. É isso que habita o amplo contexto desta obra pronta e inacabada; inacabada porquanto semente para outras minerações.
Cezar Xavier nos convida a caminhar com ele na atraente estrada da narração de parte da história humana, por intermédio do linguajar popular, dos regionalismos, da norma culta, e das abrangentes variações linguísticas que repõe e traz à luz. Do Culto ao Caipirismo.
Somos, pois, bem-vindos!
Epiphânio Camillo
Fevereiro de 2024