POST IT - PREFÁCIO AO LIVRO “POR QUEM CHORAS, HELENA?”, DE CEZAR AUGUSTO XAVIER MOREIRA
ALGUM DIA TE DIREI
“Eu tenho um segredo pra te revelar desde a primeira vez em que te vi, mas não consigo revelar. Algum dia te direi.” (Felisberto Martins e Cristóvão de Alencar, 1942)
Os anos 60 foram pródigos de acontecimentos que marcaram a História contemporânea. Um ponto de inflexão intenso e extensivo nas ciências, na ebulição dos comportamentos, nas exposições libertárias das artes, na percepção do caráter global das demandas pessoais e coletivas. Foi momento de início dos amplos processos difusos para rompimento de longevas e tradicionais barreiras geográficas, políticas e humanas.
Enfim, navegávamos no mesmo barco.
Conceitos havidos como dogmáticos, rigorosos mandamentos que definiam as bordas do bom, do ruim, do bem, do mal, do belo, do certo, do aceitável, o que rejeitar, foram postos à prova e condicionados a revisões; algumas lentas, outras absorvidas com brevidades, não poucas com violências.
Após a sequência de duas guerras mundiais, e de outras dezenas de conflitos localizados, cansados do papel coadjuvante que nos era imposto pelos sistemas de governo, pessoas nascidas nos anos 30 e 40, então adultas na década de 60, fomos impregnados de liberdades retidas e pelo protagonismo no confronto com o irrecusável e difuso processo de absorção do conhecimento que permeava o meio ambiente no qual inseridos. Por conta da massa crítica borbulhante de inovações extravasadas, passamos a questionar o modo de viver, e de relacionar, sem limitações territoriais.
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Embora muito densa, é recente a presença de Cézar Xavier no reino da Literatura. Neste segundo romance nos traz a sétima obra da coleção que completa -- por enquanto -- o conjunto que se iniciou com “Herança de Deus” (2016); “Coronel João do Calhau: O Homem, O Líder, A Lenda (2018)”; “A Grande e Esquecida Família (2020)”; “Luca Winkler (2022)”; “A Vida Vale a Pena Mesmo Com Ela (2024)”; “O Arcaísmo na Língua Portuguesa (2024)”.
“Por Quem Choras, Helena”, que agora vem à luz, começou a nascer bem antes, no século XVII, quando os ascendentes sefarditas dela, fugindo da vil Inquisição, vieram aportar no Rio de Janeiro e em Santos e, de lá, acompanhando expedição do bandeirante Borba Gato (1649-1718), encontrou na região das ricas montanhas das Minas Geraes a morada acolhedora e o porto seguro de partida para constituir família de oito filhos. Helena, a caçula entre os irmãos.
Não há linhas retas previsíveis nos relacionamentos. São rios de cursos sinuosos que têm destino, não rumo. Ora desviam-se à direita, ora à esquerda, por vezes recuam. Investem emprestando-se, crescem nos compartilhamentos. Alargam para acalmar, afunilam quando impetuosos, encontram-se ao se perder no mar. Não é outro o contexto das histórias humanas que afloram neste novo romance que Cezar Xavier traz à luz.
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“Mas o mundo foi rodando, nas patas do meu cavalo, e já que um dia montei, agora sou cavaleiro, laço firme, braço forte, de um reino que não tem rei.” (Geraldo Vandré e Theo de Barros, 1966)
No correr da primeira leitura apaixonei-me por Helena quando ela, depois de muito refletir sobre que caminhos seguir, após o que lhe ocorrera até então, mesmo cautelosa sentiu despertar-se de novo para o amor e renovar-se de esperanças em encontro com Pedro, que lhe fazia a corte.
A preparação para estar com Pedro é episódio que Cezar Xavier descreve inundando o texto de encanto e poesia: “Aprontou-se com esmero, sem deixar transparecer a Pedro a sua euforia; escolheu um vestido sóbrio azul claro, bem justo, decote discreto, mas deixando à mostra parte dos seios ainda bem formados. A barra do vestido vinha até os joelhos, não deixando à mostra as bem contornadas pernas. A maquiagem discreta, com o contorno dos lábios de uma cor bem natural, evitando o vermelho. O cabelo, preferiu prendê-lo atrás, o que lhe dava uma aparência mais jovial.”
Seduzido com a delicadeza dos arranjos para o encontro que viria, no qual Helena não conseguia mais disfarçar seu desejo, não pude me conter. Temi pelo destino que lhe estava reservado nos capítulos seguintes. E tive a intenção de apelar ao Autor em mensagem com tom de cuidadosa advertência: “Não a maltrate! Cuide bem dela.”
Acontece com alguma frequência essa tentativa de reescrever o que o Autor propõe. Nos romances podemos nos encontrar representados no todo ou em parte da narrativa, e esta condição autoconcedida justificaria a intervenção, por momentos imaginando até mesmo coautoria não autorizada. Esses ajustes mentais são derivações bem-vindas, de intensidade variada, que o romance propõe, oferece, instiga e provoca. É no Romance que os personagens, ao renascerem a cada vez que se abre o livro, adquirem identidade própria e quase sempre conduzem a narrativa na perspectiva psicológica do Leitor, sendo a mensagem do Autor por ele enredada.
Há casos em que esse privilégio pode ser proposto até mesmo durante a concepção do enredo. Jorge Amado contou que Zélia Gattai, esposa dele e também escritora, revisava o que escrevia e ficou amuada quando no texto ainda em elaboração, determinado personagem estava sendo maltratado. Não revelou, Jorge, no entanto, se acolheu a súplica dela.
Foi assim, portanto, depois dessa ousadia nada inédita, curioso e atento com o destino reservado a Helena, que continuei a percorrer a narrativa que nos traz Cezar Xavier neste outro romance, a cuidar de histórias ao alcance de quem viveu os anos 60 e seguintes.
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“Existem somente duas ou três histórias humanas, e elas se repetem furiosamente como se nunca tivessem acontecido antes; como as cotovias deste país, que cantam as mesmas cinco notas há milhares de anos.” (Willa Cather, 1913)
As histórias humanas se assemelham. São diferentes no tempo e intensidade, nos entrelaces dos abraços, nos encontros e desencontros, na submissão compulsória aos acasos, nas pausas e intervalos imperativos da existência, no arbítrio possível das preferências permitidas, na elaborada arte de tecer fio a fio as escolhas inéditas dos caminhos menos percorridos.
O que sucedeu com Helena?
Para saber navegue até o porto de chegadas e de partidas, apreciando as duas barrancas enquanto segue na viagem. E reste, por alguns momentos, na terceira margem em meio da correnteza onde Guimarães Rosa ensinou lá se encontrar o apoio para enxergar, no muito do além, o lugar para abraçar as próprias histórias.
O talento de Cezar Xavier nos oferece o romance de Helena, que não é diferente de tantos outros, embora seja único. Como todos.
Epiphânio Camillo
Novembro de 2024