POST IT - PREFÁCIO AO LIVRO “GUIMARÃES ROSA: OUTRA MIRADA”, DE CLÁUDIO PÉRSIO
PRELÚDIO: COM ROSA, NA JANELA
Na janela debruçados, Joãozito e Bébo, cismando e proseando, matutando, conversam sobre coisas, pessoas, lembranças. Cada qual com as suas. Joãozito provoca, propõe. Bébo acompanha, não contesta nem assente: acolhe esse assuntamento. Assim enxergo esta Mirada: dois amigos com alma de meninos, em instantes de descomplicada alegria, conversando animadamente sobre os mesmos temas, mútuas experiências, trocando percepções e refletindo acerca de suas próprias visões para descobrir, juntos, parte da vida e praticar amizade. A obra de Guimarães Rosa, extensa, bela e atemporal, instiga a cada leitura os devaneios mais curiosos. Excita. As metáforas das estórias cabem em qualquer contexto, em inúmeros espaços. Não se limitam às caatingas, ao cerrado, aos vales e aos sertões, às montanhas dessas Minas, nem se circunscrevem nos limites dos casebres e dos currais, dos silos, das fazendas opulentas. Ao contrário, deles transcendem para caberem em cada indistinta estória humana, nesse sertão que está por toda parte! As paráfrases de Cláudio Pérsio experimentam isso. Com habilidade, talento e olhar sensível, agudo, certeiro, ao mesmo tempo difuso e abrangente, expõe nessa obra percepções advindas de sutilezas escondidas nos jogos de palavras e nas tramas malandras e propositadamente enigmáticas do Mestre. Captura as mais simples manifestações de emoção em cada gesto, em cada palavra esculpida no mosaico da obra transversa dessas Primeiras Estórias, Ave Palavra e Tutaméia. E nesse garimpo encontra tesouros e nos conta belezas ainda não completamente reveladas. Verdadeiro artesanato.
O sertão, sim, está por toda parte; as belezas também. Há belezas várias. Saber é encontrá-las; expô-las, mais que isso. Carece da sensibilidade e talento do escultor que arranca no esconderijo da pedra bruta e rara, a obra deslumbrante; do pintor, que na tela limpa faz aflorar a imagem surpreendente; do compositor que, no misturar das fusas e colcheias, entremeadas com sustenidos e bemóis, arranja na pauta a doce melodia. Arte é percepção exposta. É isso que Joãozito e Bébo fazem.
Em alguns pontos pinçados desses contos, diz Cláudio Pérsio:
“É com intenso prazer que sinto a justeza de seus contornos no meu corpo: ela e eu, uma unidade sem intermediários. Também me distraio com os sons da passarada e do barulhão da grande cachoeira, canora e perigosa. E ainda conheço, como ninguém, o Grande Rio e suas Veredas. Diminui a marcha do seu cavalo para não ultrapassar rapidamente a diminuta povoação. Meu receio foi o de alardear aptidões que não seriam aperfeiçoadas. Uma cozinha avarandada com seus barulhos onomatopaicos, como a fritura de torresmos e ovos, o tilintar de panelas e louças, o gorgulhar de água fervendo e o crepitar da lenha no fogão, formando no todo singular melodia. E o inesquecível cheiro de terra molhada: e também frequente, certa brisa no rosto. E volta a chuva, que molha, que dá coisa boa e também muito susto, porém sendo, no mais, coisa boa; acolhida pelos guarda-chuvas que, quando se abrem, as cortinas da história se fecham. Manelantônio, incógnita pessoa, passeava pelas terras da fazenda, de tão grande que sempre parecia vazia, indo e vindo em burro manso, vestido com roupas simples, mas apuradas, algo de requinte postural, pois nem botas usava. De seu corpo despojado, do nada voltando ao nada, teve como ritual fúnebre colossal pira ardente, maior do que a de um general romano. Só. No brilho e no fulgor de seu magma. Na varanda, atentos à aproximação da vaquinha singular em cor e em empenho, por voltar carregada de saudades. Entreolharam-se daquele jeito que só tem tradução em uma correspondência amorosa feita de silêncios. Pitanga, vaca fujona, determinada, corajosa, não atolável no brejo, agora no papel de deusinha Cupido, prefácio de Eros. O povo muda de voz como o vento e ora me apupa, me xinga, ora aplaude e dá vivas. Quer é grande soluço ou solução que empolgue. Que não ando bem da cabeça é certo. Estou prostrado em meu leito, já ultrapassando a letra G e muito próximo da hora H. Já fui louco e hoje não mais. Já fui Dom Quixote. Foi bom, inda que delirante... tropeço... sinto... sonho. Sumo? É difícil esconder a tristeza do olhar. Pandora. Meu nome acho bonito, foi a madre do orfanato quem escolheu, não sei nada de grego, nem da esfinge e de seu segredo. Conserva, indelével pelo tempo, o pó da Esperança, sua matéria-prima infalível para horas de desespero. Sirva-se da fragrância da Esperança e tudo serenará. Nossos carinhos e olhares desejosos mútuos acabaram por se alastrar pela maior parte dos pares presentes. Casais mornos foram assumindo e soprando brasas ainda existentes, conquanto adormecidas. O fogo do amor foi retomado. Pretendiam a maior discrição possível e não ser ouvidos ao longo da noite. Depois de umas duas horas tórridas de amor e breve cochilo, acordaram ouvindo murmúrios variados em tom e frequência, mas subsequentes. Terminavam uns, começavam outros. Ao invés de tiroteios, sangue e mortes, a noite foi inteiramente agraciada com murmúrios polifônicos de prazer. Que é, afinal, a mais linda melodia humana. Ultrapasse, afaste os limites da tristeza e reviva seu retorno ao mundo da alegria. A cortina subiu, o elenco apareceu. Todo o elenco ficou exposto e inerte. Vaias e mais vaias. As vaias cessaram e a maioria dos atores começou a representar o texto B. Outros, alguma coisa do texto A. Intercalando partes dos dois textos distintos entre si e de forma muito espontânea, dando resultados inauditos. Provocaram uma efusão na plateia, com vivas palmas. Construiu-se, assim, texto totalmente original, saído do forno. Uma peraltice. Achei bonita a ligação entre a mãe e a filha e, por incrível que possa parecer, elas estavam até contentes por formar uma dupla cantante, quando entraram no trem especial com destino ao hospício. Já começo a sentir um aperto de saudades prévias. Tenho um cavalo que bebe cerveja. Mando buscar várias garrafas de cerveja e o cavalo alazão suga com avidez toda a cerveja despejada numa gamela. Estou cheio de ideias: decido ficar uns seis meses apenas dentro de casa, sem ser visto por ninguém, nem pelas janelas fechadas. Começo um terceiro turno de vida. Sono um uomo di tristi memoria." "Fora do palco apresentava-se como um homem recatado, tímido, pacato, educado. Além do trem, com alguma cautela, tomou também uns goles etílicos. Neima percebe-o a pessoa real fora do palco, e vivencia com ele situação amorosa inteira, bilateral, compartilhada. Abraçados até o fim, unidos até que a morte os confirmasse como par. Meu pai tinha seus momentos e, no fundo, foi ele o substituto real, na minha cabeça, dos bravos e protetores caçadores. Partiram todos para o jantar totêmico, cuja iguaria central seriam nacos de carne de Bubalus, intencionando, assim, interiorizar sua força e coragem, apanágios exclusivos dos chefes e dos totens. Não sou culto. Aprendi a vida foi de cor e olfato, ouvindo e cheirando as coisas faladas, vistas e tocadas. Entrego-me a devaneios e meandros do passado. A tentativa de lembrar-me de um tão ontem, pode embaralhar aquele tempo com uma ainda forte escuridão da memória, com nacos do tempo presente, numa salada de eras com temperos indecifráveis e cada vez mais misteriosos. Sei que não sei quem sou, onde estou nem por quê. Sou um teorema? Eu tinha a aparência de um homem todo branco, de alvura quase transparente e inidentificável, imperscrutável, incógnito, inaudível, irreconhecível e incomunicável. Uma espécie de Insabida Criatura. Ocorre que uma pessoa tão incógnita como eu, Insabida Criatura, costuma servir como uma espécie de tela branca, onde são projetados, além de fatos, muitos devaneios, fantasias, fabulações, visões, interpretações surrealistas e outras construções mentais. Eu fico tão quieto no meu canto há bem tempo, que nem sei contar direito há quantas já dura meu silêncio”.
Uma coisa é ler, outra perceber além das evidências. Nesta mirada Cláudio Pérsio, Bébo, não interpreta, não traduz, não sugere. Inova e incorpora. João Guimarães Rosa, Joãozito, com olhar lançado para além do horizonte, mãos fechadas junto ao queixo e cotovelos apoiados numa ventana de Cordisburgo, depois de algum silêncio e sorriso maroto, cordialmente assentiria.
Busco Alberto Caeiro: “A espantosa realidade das coisas é a minha descoberta de todos os dias. Cada coisa é o que é e é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra (...) e quanto isso me basta!”
Epiphânio Camillo
Agosto de 2017