OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO - VINÍCIUS DE MORAES

Quantas coisas são construídas para alicerçar nossas estruturas? As casas, os templos, as escolas, os cinemas... No mundo são apenas objetos inominados que nos abrigam, valorizados conforme as leis de mercado, mas... O homem se perde no anonimato das construções e vive sobre as construções que ajudou a levantar.

O poema “Operário em construção”, de Vinícius de Moraes, inicia com o papel do operário na construção das coisas e o desconhecimento da importância da sua profissão. Narra, em versos, a alienação verificada na multidão que empilha os tijolos com suor e cimento.

“Mas ele desconhecia

Esse fato extraordinário:

Que o operário faz a coisa

E a coisa faz o operário.”

De repente, o operário constatou que ele, um humilde operário, era responsável pelos objetos que estavam em sua mesa e, “tomado de uma súbita emoção”, percebe que era ele quem construía tudo o que existia: “casa, cidade, nação!”. Compreende a força das rudes mãos e a grandeza de ser um operário em construção:

“Foi dentro desta compreensão

Desse instante solitário

Que, tal sua construção

Cresceu também o operário...”

O operário se constituiu em uma nova dimensão. A percepção da própria importância na sociedade que construía, a compreensão do significado do exercício de sua profissão... Tudo disposto em poesia, a consciência adquirida, o conhecimento compartilhado como outros operários e a possibilidade de dizer não:

“O que o operário dizia

Outro operário escutava

E foi assim que o operário

Do edifício em construção

Que sempre dizia “sim”

Começou a dizer “não”...”

O poema nos contagia. Sentimos libertar a percepção quando o operário começa a notar as coisas, as diferenças de sua vida com a do patrão, comparando pequenos detalhes. Sua consciência política e social amadurece e ele se faz forte em dizer não, apesar das contrariedades e das delações de alguns companheiros. O patrão, sem dar importância, solicita aos delatores que o convençam do contrário. Começam as agressões: cospem em seu rosto, quebram seu braço e ainda assim o operário diz não.

“Em vão sofrera o operário

Sua primeira agressão

Muitas outras seguiram

Muitas outras seguirão.

Porém, por imprescindível

Ao edifício em construção

Seu trabalho prosseguia

E todo seu sofrimento

Misturava-se ao cimento

Da construção que crescia.”

O patrão, verificando que toda a violência sofrida não convenceria o operário, tenta dobrá-lo com a proposta de poder, tempo de lazer e de mulheres, com a condição de que o mesmo abandone o motivo que lhe faz dizer não.

O operário observa a ampla região em volta da construção e vê o que seu patrão não consegue ver: o operário vê casas e tantos objetos, enquanto seu patrão está limitado a visão do lucro. O operário percebe que em tudo há a marca de sua mão e diz “não” à oferta do patrão: “Não pode me dar o que é meu”.

O homem, com a amplitude da percepção que adquiriu, sente a enorme solidão dos que compreendem além das aparências, a responsabilidade pela vida dos que padeceram e dos que viverão com esperanças. Constrói-se dentro de um novo perfil de homem, engajado no mundo e consciente de sua participação na história.

“E dentro da tarde mansa

Agigantou-se a razão

De um pobre e esquecido

Razão que fizera

Em operário construído

O operário em construção.”

O poeta encerra sua grande edificação poética. Vivemos a construção do operário, de sua consciência e da coragem para negar à ordem, quando esta não representa o seu trabalho. O poema inicia com versos cotidianos para encerrar na razão solitária e na perspectiva que constrói um trabalhador e que pode contagiar os demais.

Viajamos nos versos e aportamos, emocionados, em nosso papel no mundo. Somos todos operários em construção que devemos construir o dia-a-dia com tijolos significativos e transformar a realidade num abrigo seguro para os ideais.

Pensamos nas conquistas de nossas construções individuais, as carreiras que exercemos, nossa importância na sociedade, o orgulho de estar no mundo de forma significativa, e verificamos que somos também a edificação coletiva, quando podemos visualizar, do alto da construção, o mundo em desenvolvimento.

Vinícius de Moraes (19/10/1913 a 09/07/1980), formado em direito, ingressou na carreira diplomática em 1943 e exerceu-a até 1968, quando resolveu dedicar todo o seu tempo à arte que o consagrou como um dos grandes talentos brasileiros.

Imortalizado pela vasta obra literária e musical, consagrado pela singular abordagem do amor nos sonetos do Amor Total, da Separação e da Fidelidade e pela denúncia da letra da Rosa de Hiroxima; pelo olhar infantil dos poemas infantis da Arca de Noé, e nas inúmeras letras em parceria com Tom Jobim e Toquinho, entre outros compositores. Enfim, destacou-se como um homem que engrandeceu tudo que transformou em versos e músicas. Um homem que construiu a si mesmo e que ousou edificar o operário num poema tão verdadeiro e revelador.

“Operário em construção” não é um poema que acalenta as tardes mansas, mas uma construção de versos que impõe a reflexão do papel que exercemos na sociedade em que vivemos, dos compromissos que assumimos e dos direitos pelos quais devemos lutar.

Vinícius de Moraes marcou sua passagem com um olhar verdadeiro e uma ampla consciência da condição humana e deixou os versos do seu trajeto para os que querem viver mais do que as alienadas aparências possam trilhar em busca de uma vida mais significativa.

Não podemos perder a capacidade de dizer não. Temos sempre de afirmar nossos ideais com a percepção lúcida do operário e não com os olhos dos acovardados pelas circunstâncias ou dos corrompidos pelo poder. A consciência de um trabalhador é algo que jamais pode ser apagada.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 25/01/2005
Código do texto: T2398