Como construir leitores capazes de autoria? O papel da escola na produção e legitimação de gestos de leitura e práticas de autoria

A função-autor e o efeito-leitor nos permitem compreender a relação entre os lugares sociais e seu funcionamento como posições no discurso, tanto em relação à produção da escrita como nas práticas de leitura.

A produção do efeito-leitor está diretamente relacionada ao exercício da função-autor, na medida em que a escola corrobora ou evita leituras consideradas desejáveis ou indesejáveis, respectivamente – isso interfere diretamente no que é considerado lícito ou inadequado de ser (re)produzido pelos alunos.

Por isso é importante compreendermos os mecanismos envolvidos no funcionamento da função-autor e do efeito-leitor e o papel da escola no desenvolvimento dessas competências.

A função-autor funciona como um princípio de unidade e de completude dos textos, os quais, pela função-autor, se destacam do fluxo contínuo de sentidos produzidos e colocam um sujeito na origem dos sentidos produzidos.

Percebemos, então, que a unidade e coerência do texto, sua linearidade e progressão, com início, meio e fim, sua forma integrada por diversas linguagens estão dadas pela função-autor, cujo funcionamento organiza a sequência sintática e a orientação argumentativa das frases e, inclusive, a relação com imagens, sons e outras materialidades simbólicas que podem integrar o texto.

Para produzir um texto é necessário, então, que o sujeito ocupe a função-autor ou, dito de outra maneira, que organize sua prática de linguagem conforme as determinações historicamente estabilizadas para uma função-autor específica, definida em relação ao funcionamento do discurso em condições de produção concretas e em relação a determinado gênero discursivos. É importante notar, portanto, que a função-autor muda em relação às condições históricas de seu exercício e está, portanto, determinada pelos diversos gêneros discursivos.

É fundamental que a escola oportunize atividades em que os alunos sejam convidados a ocupar a função-autor de forma apropriada em relação às diversas práticas discursivas de nossa sociedade e aos diversos gêneros discursivos, isto é, exercer a autoria em relação a diferentes gêneros em variadas esferas de circulação e em diferentes práticas de escrita. Um exemplo, retirado de minha prática e que mencionei no fórum de discussão, foi uma atividade realizada com as quintas séries (sextos anos) em que depois de os alunos conhecerem o gênero ‘estatuto’, sua função social, forma de circulação, condições de produção, autoria, tipologia textual etc; eles foram instados a exercer a função-autor, produzindo um estatuto para a turma.

Para que a escola possa construir leitores capazes de desempenhar a autoria é importante que ofereça oportunidades adequadas e bem direcionadas aos alunos, a fim de que estes possam conhecer o gênero no qual escreverão antes de produzir de fato; para que tenham condições de exercer a autoria de forma adequada, responsável e ética, conhecendo os mecanismos de citação, paráfrase, intertextualidade, dentre outros.

Além disso, a escola também é um espaço privilegiado para a estabilização e legitimação de gestos de leitura e interpretações, isto é, para a produção dos efeitos-leitor, pois nela determinados gestos de leitura são legitimados e impostos como corretos ou desejáveis, enquanto outros são apagados ou mesmo impedidos ou desqualificados.

Os instrumentos e expedientes didáticos como prólogos, notas de rodapé, resenhas, comentários, ensaios críticos, fichas de leitura etc. participam na construção desse gesto de leitura dominante, fixando e sedimentando determinados processos de interpretação. Nesse aspecto, eles funcionam como mediadores do processo de produção de sentidos na prática da leitura, construindo e determinando os gestos de leitura a partir dos quais se interpreta.

A escola tende a estabilizar gestos de leitura dominantes e a sedimentar suas interpretações com a utilização de composições paratextuais presentes, sobretudo, nos livros didáticos, conforme supracitado. Porém as práticas escolares de leitura devem desestabilizar os gestos de leitura dominantes e suas interpretações já sedimentadas, pela exposição do sujeito-leitor às diversas relações entre sentidos e discursos e a suas determinações históricas. Por exemplo, confrontando leituras divergentes ou mesmo polêmicas em relação a um mesmo texto, ou comparando textos sobre temas comuns, mas de circulação distinta, ou produzidos em condições históricas diferentes, já que todo discurso é produzido em determinadas condições de produção que se inscrevem na sua materialidade como imagens. Assim como as condições de produção intervêm na textualização, também intervêm na prática de leitura dos textos.

Na medida em que a escola possibilitar a desestabilização de leituras historicamente ‘autorizadas’ demonstrará maior compreensão do funcionamento discursivo da leitura, pois esta é um processo de produção de sentidos que envolve o sujeito que lê, no caso: o aluno, e abrange, não obstante, as condições sócio-históricas em que ele, o aluno, se insere, isto é, as condições de produção de sua leitura.

A responsabilidade da escola em formar pessoas capazes de compreender e ocupar seu lugar social por meio do exercício da função-autor e do efeito-leitor não é pequena, mas será possível na medida em que ela, a escola, for capaz de: desestabilizar gestos de leitura sedimentados e considerar o aluno um sujeito histórico e à leitura um ato sócio-histórico, no qual intervém uma materialidade específica do texto a ler e uma materialidade do acontecimento de ler, - os quais tomam parte como fatores determinantes na produção de sentidos na leitura, relacionando o funcionamento do texto com suas condições sócio-históricas de produção e com a memoria discursiva a partir da qual significa.

A não imposição de leituras ‘autorizadas’ dá espaço para que o aluno ocupe seu lugar de leitor e possa produzir o efeito-leitor, enquanto sujeito histórico – e isso tem repercussões na produção de sentidos realizada por ele, pois o estudante poderá, desta sorte, tornar-se produtor de sentidos, exercendo a função-autor, com responsabilidade e ética.

BIBLIOGRAFIA

ROJO, R. e ZOPI-FONTANA, M. G. Autoria, Efeito-Leitor e Gêneros de Discurso. Tópico 1: Autoria e função-autor; Tópico 2: Práticas de leitura e efeito-leitor; Tópico 3: Interpretando textos: entre o autor e o leitor. Campinas, SP: UNICAMP/REDEFOR, 2012. Material digital para AVA do Curso de Especialização em Língua Portuguesa REDEFOR/UNICAMP.