SAMWAAD – RUA DO ENCONTRO: ANÁLISE DE TRÊS CENAS À LUZ DOS CONCEITOS DE FUNÇÃO-AUTOR, EFEITO-LEITOR E EFEITOS DE SENTIDO

“Samwaad - Rua do Encontro” foi um espetáculo de dança concebido e dirigido pelo coreógrafo e educador do corpo, Ivaldo Bertazzo, em 2004.

O elenco foi constituído por cinquenta e cinco jovens de sete ONGs de São Paulo, a maioria com menos de vinte anos. Os ensaios duraram em torno de oito meses; nesse ínterim, os aspirantes passaram por consultas médicas e odontológicas e tiveram aulas de linguística, percussão e origami.

Analisaremos três cenas do espetáculo segundo os conceitos de função-autor, efeito-leitor e efeitos de sentido. As cenas são: 1) a inicial, em que um dançarino brasileiro e a dançarina hindu, Sawani Mudgal, simulam uma dupla de porta-bandeira/mestre-sala ao som de uma batucada; 2) a interpretação performática do choro “Santa Morena”, de Jacob do Bandolim, pela dançarina hindu e dois bailarinos brasileiros; e 3) uma batucada, interpretada no corpo por Mudgal.

O título prenuncia um encontro. Em hindu, samwaad significa harmonia, portanto pode-se conjeturar que se trata de um encontro harmônico entre culturas e não de um choque, embate, achatamento ou sobreposição. Supõe-se, por conseguinte, que haverá acordo e beleza a partir desse encontro consensual.

Nos movimentos de abertura, aparece o estranhamento entre a bailarina hindu, com vestuário indiano, e seu par, com indumentárias que remetem às de passista de escola de samba. A bailarina, aparentemente, se esquiva amiúde das mesuras do mestre-sala, enquanto ele insiste nas cortesias. Ritmos indianos e brasileiros aparecem alternadamente e cada um dos bailarinos, a seu turno, dança seu ritmo correspondente, como se estivessem dialogando ou se exibindo/se apresentando um para o outro. Nesse diálogo tenso, a dançarina resiste enquanto seu par a galanteia. Ao final desta cena, os dois artistas ficam frente-a-frente por um momento que concentra mais tensão ainda, porém, a seguir, a bailarina cede e, finalmente, faz a roda que se espera de uma “porta-bandeira”, sem, no entanto, abandonar os gestos hindus, lentos e estudados. Então, o ritmo da música fica mais acelerado do que no começo da cena, havendo uma harmonia maior entre o par.

A fim de analisar a cena supradescrita à luz do efeito-leitor, é mister saber que as condições de produção das práticas de leitura atingem o efeito-leitor, pois este “se constrói como resultado da relação que um sujeito concreto, afetado pela sua história particular de leituras, estabelece com um texto em condições de leitura específicas.” (ROJO e ZOPI-FONTANA, 2012).

Em outras palavras, a constituição do efeito-leitor ocorre com as imagens produzidas pelo texto/espetáculo para o leitor/espectador; a saber, representações que remetem à ideia de miscigenação cultural harmônica, de diálogo entre culturas, simetria, beleza, arte, entendimento e equilíbrio. Outro item para a constituição do efeito-leitor são as condições de produção da leitura; neste caso, assistir e ouvir o espetáculo em tempo real, com ‘personagens’ e interlocutores materialmente presentes, participar da emoção de estar ao vivo, presenciando os acontecimentos, de maneira que as cenas se tornam mais intensas e mais reais. Outro componente essencial para que o efeito-leitor se dê, é a circulação do texto, isto é, ao vivo, no palco, com leitores/expectadores presentes no momento da execução e, portanto, afetados de modo mais penetrante, mais carnal, tornando-se testemunhas dos atos executados, quase cúmplices.

O conhecimento prévio do expectador/leitor intervém em sua interpretação na medida em que ele reconhece elementos da cultura brasileira e indiana e os vê imbricados alternadamente com o propósito de se harmonizar, de criar uma identidade híbrida, com múltiplas linguagens e culturas envolvidas.

A circulação, a formulação e a constituição dos discursos na sociedade participam na produção dos efeitos de sentido, os quais também são atravessados por mecanismos de antecipação, num complexo jogo de imagens que os conformam. (ROJO e ZOPI-FONTANA, 2012)

O efeito de sentido gerado a partir da cena considerada é de que “o espetáculo une dois extremos culturais pela sutileza da dança e da música, questionando identidades, linguagens e gestos” (BENVEGNU, 2004) - constituição. O diálogo ocorre em vários níveis: entre a dança e a música, entre as culturas envolvidas – predominantemente, hindu e brasileira – e, finalmente, entre a presença do(s) bailarino(s) proveniente(s) da periferia de São Paulo e das culturas marginalizadas contempladas no espetáculo. No que diz respeito à formulação, pode-se apontar os elementos que constituem o show: danças, músicas, culturas, movimentos harmônicos etc.

A segunda cena analisada do espetáculo é a interpretação performática do choro “Santa Morena”, de Jacob do Bandolim, pela dançarina hindu e dois bailarinos brasileiros. Nesta cena o choro dialoga com ritmos e sons indianos, além da performance dos artistas. O efeito de sentido gerado consiste na apropriação de uma música que, originalmente, não foi feita para ser dançada, mas que recebe uma interpretação corpórea e, com isso, adquire novos sentidos: ser vista, ouvida, vivida, sentida e dançada.

O efeito- leitor se dá no reconhecimento de uma leitura no meio de outras, isto é, uma música composta em 1954 por um artista brasileiro é evocada em outro contexto, o de um espetáculo de dança, e é posta em diálogo direto com outros instrumentos e com outras culturas, de maneira harmônica e complementar a fim de atingir o máximo de “emoção estética” (BERTAZZO apud in BENVEGNU, 2004).

A última cena que será analisada é a da batucada interpretada no corpo por Mudgal. Essa batucada, tipicamente brasileira, é dançada com movimentos suaves e delicados da artista indiana, isto é, os ritmos se fundem: o ritmo da música e o ritmo do corpo da bailarina que continua a ser comedido e discreto apesar de a cadência exigir maior rapidez. Sem embargo, essa “divergência” não causa desarmonia, ao contrário, origina uma nova leitura para o ritmo nordestino, pois este é lido e entendido segundo as experiências, a mundividência e a forma de sentir da coreógrafa indiana que compôs a cena e da intérprete, também hindu.

O efeito-leitor, no expectador, está na surpresa – que pressupõe um conhecimento prévio e uma expectativa ou imagem de antecipação produzida – da interpretação comedida da artista e que, não obstante ser realizada com gestos controlados, consegue alinhar-se com a batucada frenética, magnificamente, gerando admiração.

Toda a intertextualidade realizada no espetáculo está a serviço da intencionalidade do produtor. A forma como este organizou as sequências, os recortes, as escolhas, a progressão temática, a diversidade de gêneros – geram o efeito-autor como o de um produtor de sentidos e o de um nome que serve como principio fundador de uma obra. Neste espetáculo existem vários autores envolvidos, não apenas um, porém todos os outros autores/colaboradores estão a serviço de um autor principal que idealizou a obra e a partir disso trouxe outros articulistas, mas estes subordinados à ideia central do primeiro autor. Os dançarinos também são autores, pois estes é que executam a coreografia com maior ou menor desenvoltura. Neste caso, a performance geral do espetáculo depende de muitos e não de um autor só.

Conquanto, a obra tenha vários autores, o espetáculo constitui uma unidade por causa da função-autor, uma vez que esta “tem como efeito uma ilusão de unidade, um efeito de fecho e de completude, que o destaca imaginariamente do fluxo contínuo de sentidos" (GALLO, 1989 apud in ROJO e ZOPI-FONTANA, 2012), individualizando uma dispersão de enunciados, conferindo-lhe coerência e consistência, e colocando imaginariamente o sujeito na origem do sentido e como responsável pela sua produção.

Um dado importante para compreender a obra e suas condições de produção imediatas é que contou com jovens dançarinos incipientes, vindos da periferia, cuja participação no espetáculo foi seu primeiro tirocínio na ciência da dança. A obra dialoga com culturas marginalizadas como capoeira, dança de rua, danças de origem africana etc e também com jovens marginalizados.

O próprio título do espetáculo ‘rua do encontro’ carrega a ideia de espaço aberto, público e de todos – o que condiz com a presença dos jovens dançarinos, moradores da periferia de São Paulo. Ou seja, o próprio espetáculo de dança também é para eles um lugar de encontro de identidades e de autoafirmação; pois existe o encontro em dois níveis: o encontro entre culturas – a indiana e a brasileira e o encontro dos jovens de periferia com a dança enquanto espaço de cultura e de ascensão social.

Por tudo isso, o espetáculo, aproveitadas as três cenas descritas como exemplo, pode ser entendido a partir dos conceitos de função-autor, efeito-leitor e efeitos de sentido.

BIBLIOGRAFIA

BENVEGNU, M. Samwaad. Disponível em: <http://www2.uol.com.br/tododia/ano2004/novembro/021104/marcela.htm>. Consulta em 06 de abril de 2012.

KORMANN, A. Elenco de "Samwaad - Rua do Encontro" ensina mais do que dança. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u43844.shtml>. Consulta em 06 de abril de 2012.

ROJO, R. e ZOPI-FONTANA, M. G. Autoria, Efeito-Leitor e Gêneros de Discurso. Tópicos 1, 2 e 3. Campinas, SP: UNICAMP/REDEFOR, 2012. Material digital para AVA do Curso de Especialização em Língua Portuguesa REDEFOR/UNICAMP.

Globo Reporter - Projeto Dança Comunidade, Ivaldo Bertazzo. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=JZC_yi932Ls>. Consulta em 06 de abril de 2012.

Samwaad Cenas. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=fKq8mDwBnlc>. Consulta em 06 de abril de 2012.

Santa Morena (Jacob do Bandolim). Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=mvI4WpRBvc4>. Consulta em 06 de abril de 2012.

Viviane Mirandaa
Enviado por Viviane Mirandaa em 07/12/2012
Reeditado em 07/12/2012
Código do texto: T4023556
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