Como aproximar as culturas da juventude da cultura patrimonial da escola

A massificação da educação está acompanhada de uma mudança muito significativa na morfologia social dos alunos. Hoje ingressam na escola os que tradicionalmente eram excluídos, esses estudantes trazem consigo tudo o que são como classe e como cultura. Somado a isso, temos as constantes transformações nas estruturas sociais, familiares e no plano das instâncias de produção e difusão de significados que afetam profundamente os processos de construção das subjetividades (FANFANI, 2000). Donde sucede a questão: como aproximar da cultura da juventude a cultura patrimonial da escola e seu papel de transmissora da cultura hegemônica, sobretudo na disciplina de Língua Portuguesa, considerando essas transformações na demografia, na morfologia e na cultura das novas gerações e as transformações tecnológicas?

As Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) propiciaram mudanças nos modos de construção da cultura e do conhecimento, o que, por conseguinte, afeta a natureza das práticas educativas, isto é, hoje o aluno tem acesso a fontes ilimitadas de informação, o que torna mais dispensável a atuação do professor como aquele que provê conteúdos em áreas específicas de conhecimento; por outro lado, ganha maior importância o papel do professor como aquele que ensina o aluno a ser autônomo na construção do conhecimento e a filtrar de forma crítica as informações que acessa.

Os professores, hoje, encontram-se em um período de transição e, mesmo não sendo "nativos digitais", têm que enfrentar uma nova tecnologia, tendo muitas vezes como referência práticas letradas e atividades escolares fortemente ancoradas nos gêneros escritos (manuscritos ou impressos). Essa situação se torna mais complexa na medida em que a sociedade passa a depender da mediação das TICs em conjunto de atividades relacionadas ao mercado de trabalho ou essas passam a estar cada vez mais presentes em nossas práticas cotidianas.

Dentro desse novo contexto social, no qual o aluno, ‘nativo digital’, frequentemente utiliza as tecnologias digitais e circula nos ambientes virtuais com evidente desenvoltura, a escola deve oferecer a ele a oportunidade de apropriação de gêneros digitais e modos de construção do conhecimento socialmente esperados em contextos formais já que em contextos não formais, o aluno ou já sabe usar, ou aprende usando. Portanto, nas aulas de Língua portuguesa, é preciso que haja um verdadeiro trabalho didático com situações comunicativas mais formais mediadas pelas TICs – isso é fundamental já que há situações nas quais as trocas comunicativas envolvem diferentes papéis sociais e, nesses casos, as escolhas linguísticas precisam respeitar certos princípios de formalidade.

A linguagem usada nas interações via CMC (Comunicação Mediada por Computador) varia e se especializa de forma sistemática. Nossos usos de linguagem sempre variam de acordo com os meios tecnológicos que empregamos, por isso é papel da escola ensinar os usos, possibilidades e adequações da língua considerando os diferentes meios de circulação e condições de produção; ao mesmo tempo, valorizando o que o aluno já traz de experiência e conhecimento prévio, mas pontuando as diferenças (condições de produção, e de recepção, meio de circulação, dimensões sociais envolvidas, os gestos de leitura possíveis, os efeitos de sentido etc) entre ‘as línguas’ (internetês, linguagem formal e informal, oral ou escrita), sem hierarquizar, apenas para dar parâmetros ao aluno e torná-lo mais competente no uso da língua.

Nas aulas de português, por exemplo, é possível pensar na participação coletiva em uma experiência de produção textual, a qual será uma oportunidade privilegiada para a construção do conhecimento, nos moldes previstos pela aprendizagem coletiva e colaborativa para que os estudantes possam participar das novas possibilidades de comunicação e modos de construção do conhecimento de maneira crítica e ética. O uso de e-mails na escola pode fazer com que o aluno aprenda a explorar esse recurso para comunicar-se com a sociedade mais ampla e pode também ser uma forma de instigar a sua reflexão sobre a adequação dos gêneros digitais a situações comunicativas específicas.

Gêneros digitais são ferramentas semióticas e cognitivas que permitem às pessoas engajarem-se ativamente na cultura digital. A escola deve garantir novos modos de pensar e de fazer no meio digital e utilizar os gêneros digitais a favor do crescimento pessoal do aluno e em beneficio da comunidade em que a escola está, ensinando o estudante a usar o computador como um cidadão.

Para aproximar a cultura patrimonial da escola da cultura da juventude, sobretudo na disciplina de Língua Portuguesa, considerando as transformações na demografia, na morfologia e na cultura das novas gerações e as transformações tecnológicas, a escola precisa abrir-se para um trabalho com a língua que não privilegie apenas a língua escrita ou a língua padrão, mas que ofereça a oportunidade de reflexão sobre a língua oral e sobre as variações linguísticas também. Oralidade e escrita, nas mais diversas práticas de linguagem, encontram-se inseparavelmente ligadas e dependem uma da outra para a realização de textos e de discursos.

Compreender os textos produzidos nas modalidades oral e escrita significa ter uma visão de sua complementaridade, pois os textos e gêneros produzidos na modalidade oral vão resultar de um conjunto de estratégias que viabilizam a sua produção. Essas estratégias (tais como a hesitação, a reformulação, a repetição e a inserção) também podem estar presentes na escrita, mas de outra forma. Essas estratégias não são "defeitos" ou "erros", mas ações que caracterizam a fala e a oralidade.

A oralidade (e os gêneros e textos orais produzidos nesse campo) é tão importante quanto a escrita e não, necessariamente, se subordina à escrita.

É preciso que o professor construa caminhos que o levem a eleger alguns gêneros orais formais públicos, tais como a exposição oral, o debate e a entrevista, como legítimos objetos de ensino-aprendizagem e que são muito importantes, na escola e fora dela.

É importante que o professor de língua portuguesa ofereça atividades de retextualização, porque todos nós (alunos e professores) devemos desenvolver um tipo de conhecimento mais reflexivo sobre as diferenças e semelhanças entre o oral e o escrito e sobre os procedimentos de retextualização, de forma a melhor dominar os gêneros mais característicos de uma ou de outra modalidade da língua. As atividades de retextualização (da fala para a escrita e da escrita para a fala) estão presentes em nosso cotidiano por isso é preciso que tenhamos certo grau de consciência em relação às operações que estão na sua base.

Os gêneros orais formais públicos devem ser trabalhados na sala de aula de Língua Portuguesa, porque o papel da escola é fazer com que os alunos ultrapassem as formas cotidianas de produção oral, levando-os a confrontar essas suas formas cotidianas de produção oral com outras formas mais institucionais. E também porque essas formas orais mais institucionais, fortemente definidas e reguladas do exterior, dificilmente são aprendidas sem uma intervenção didática.

A eleição de novos objetos de ensino - a própria aula, os gêneros midiáticos (radiofônicos, televisivos ou cinematográficos) e digitais (vídeos e áudios da Internet) - é de importância vital para que o trabalho com a fala/oralidade surta os efeitos desejados por todos. O trabalho com gêneros orais deve pautar-se em suas diferentes funcionalidades e possibilidades de interrelação entre fala e escrita.

O trabalho com a variação linguística é outro meio de aproximar as culturas jovens com a escolar. A variação linguística é um fenômeno constitutivo de todas as línguas, sendo formas linguísticas alternativas para se dizer a mesma coisa, estando presente nos textos (orais e escritos) e nos gêneros textuais.

O trabalho nas aulas de Língua Portuguesa deve pautar-se na criação de situações de aprendizagem em que se evidencie que os usos linguísticos são influenciados por dimensões e fatores sociais específicos (os participantes; quem está falando; com quem está falando; o contexto social da interação; o tópico; e a função ou finalidade) de maneira que o aluno vá, gradativamente, entendendo que a variedade padrão é uma das variedades de uma língua e é associada à escrita e a práticas de linguagem (orais ou escritas) de prestígio social. A variedade padrão passa por processos de regularização e oficialização e serve para ser usada em funções altas, tais como a escolarização, a elaboração de leis e documentos oficiais e a administração pública. As variedades não padrão são aquelas usadas pelos falantes mais pobres e marginalizados da sociedade. Elas também apresentam variações geográficas e sociais. É por meio delas que são veiculados conteúdos de tradição oral. Não sofrem processos de regularização e de oficialização. São associadas à práticas de linguagem (orais ou escritas) de pouco prestígio social.

É importante que o professor de Língua Portuguesa realize um trabalho didático em sala de aula que evidencie ao aluno que a manipulação consciente de traços das variedades linguísticas é um procedimento muito usado por todos os profissionais da linguagem (poetas, escritores, atores, jornalistas, publicitários etc.). A estilização, por exemplo, é a atividade de manipulação dos recursos linguísticos das diferentes variedades e dos diferentes modos de fala, com fins específicos.

É fundamental levar o aluno a compreender, de forma mais reflexiva, as atividades de estilização empreendidas pelos diferentes profissionais, de forma a valorizar este trabalho e aprofundar seu olhar em relação a práticas de linguagem que parecem muito banais, mas que, na verdade, resultam de intensa e contínua elaboração consciente das diferentes variedades linguísticas.

Outra oportunidade de aproximar a cultura escolar da cultura jovem é refletir como os jovens se apropriam do espaço urbano e como a escola pode dialogar com essa realidade haja vista que os grafites, stickers e pichações, tão presentes na imagética metropolitana contemporânea, quase sempre são associados às potencialidades das culturas juvenis na cidade (OLIVEIRA, 2006).

Esses jovens precisam de um espaço para exercer sua criatividade, para ocupar a função-autor, para se transformarem em personagens urbanos e para afirmarem sua identidade social, por isso muitos utilizam os muros da cidade como suporte:

Por meio das intervenções urbanas, esses jovens refazem sua relação com a metrópole; transformam paredes, muros e postes em territórios apropriados, repletos de afetividades, relações, histórias. (OLIVEIRA, 2006)

O trabalho do professor de Língua Portuguesa deve reforçar a ideia da íntima relação entre língua e sociedade, entre língua e identidade social, entre língua e poder. Por isso, a escola deve abrir-se para o diálogo com os jovens, seus alunos, que realizam intervenções urbanas lícitas ou ilícitas na cidade e na escola a fim de oferecer espaço para reflexão e para discussão de ideias; e também para dar oportunidade para criação e produção artísticas, de maneira que a escola deixe de ser mais um lugar de segregação e estigmatização, mas se transforme num verdadeiro espaço de transformação e ascensão sociais e construção de identidades.

Em meu trabalho como professora de Língua Portuguesa, procuro dimensionar a língua em seus contextos de uso, recuperar com os alunos o contexto de produção e de recepção dos textos, os interlocutores envolvidos, as finalidades comunicativas, as dimensões sociais de uso da língua e que exigências a dinâmica desses fatores traz para a escrita ou para a oralidade ou como esses fatores afetam a leitura – isso sempre procurando, primeiro: valorizar a experiência deles como falantes e usuários de primeira língua; segundo: a partir de gêneros textuais e, terceiro, tentando estimular a comparação e reflexão dos processos de escrita e oralidade utilizados, mas sem propor relação hierárquica entre uma modalidade ou outra de língua ou entre linguagem formal ou informal. As dificuldades que sinto são: em relação aos tempos e espaços como a escola se organiza; em relação a como o ambiente da sala de aula é disposto e dificulta uma relação mais afetiva e identitária com espaço e até mesmo entre os próprios alunos; em relação às ferramentas de que a escola não dispõe, como biblioteca e sala de informática que efetivamente funcionem; e, por fim, em relação à quantidade de alunos – essas inconveniências impedem um trabalho didático mais sistemático e eficiente.

BIBLIOGRAFIA

BENTES, A. C. Linguagem Oral: gêneros e variedades; Tema 1, 2 e 3. Campinas, SP: UNICAMP/REDEFOR, 2012. Material digital para AVA do Curso de Especialização em Língua Portuguesa REDEFOR/UNICAMP.

BRAGA, D. e BUZATO, M. Multiletramentos, Linguagens e Mídias. Tema 1, 2 e 3. Campinas, SP: UNICAMP/REDEFOR, 2012. Material digital para AVA do Curso de Especialização em Língua Portuguesa REDEFOR/UNICAMP.

FANFANI. Culturas Jovens e Cultura escolar. [s/l], 2000.

OLIVEIRA, R. de C. A. Lendo a metrópole comunicacional: Culturas Juvenis , Estéticas e Práticas Políticas. Revista Académica De La Federación Latinoamericana De Facultades De Comunicación Social. São Paulo, 2002.

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Grajaú. É Nós Graffiti que Pulsa. Disponível em <http://player.vimeo.com/video/44215295>. Acesso em 24 de junho de 2012.

Os Gêmeos 1 - São Paulo, Brasil. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=1fkIcEwMIiU>. Acesso em 24 de junho de 2012.

Reverse Graffiti. Disponível em <http://www.ecodesenvolvimento.org.br/noticias/reverse-graffiti-a-arte-de-limpar-as-ruas>. Acesso em 24 de junho de 2012.

Viviane Mirandaa
Enviado por Viviane Mirandaa em 07/12/2012
Reeditado em 07/12/2012
Código do texto: T4023565
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