Noção de poder em Foucault

Preciso alertar ao leitor que este texto não tem a mínima pretensão de ser um tratado sobre o pensamento de M. Foucault. É apenas um exercício proposto por um professor de Sociologia do segundo ano do meu curso de Ciências Sociais na ESP em 2004. O que se encontrará aqui são reflexões minhas despertadas durante essas aulas. Até mesmo porque considero ser inútil ficar destrinchando a obra de um autor, simplesmente pra se tornar doutor da inteligência alheia. Então, peço desculpas antecipadas se, por acaso, ofender alguma “foucaulete” de plantão...

________________________

Um texto a respeito da noção de poder em Foucault

Foucault parece ter por missão clarificar as relações de poder existentes na sociedade, com ênfase na disciplina a que são submetidos os indivíduos. Como surgem e se estabelecem, como são mantidas e aceitas pelos sujeitos, como é formada a subjetividade desses sujeitos através da especialização e da disciplina que individualizam, esquadrinham e estabelecem mecanismos de dominação e exploração nos mais diversos campos da atividade humana. Para exemplificar seus conceitos ele parte da margem em direção ao centro, invertendo as situações para explicá-las. Assim, os criminosos, os loucos, os doentes se tornam o princípio de suas reflexões sobre a justiça, a psiquiatria, o sistema manicomial e hospitalar.

O conhecimento é o ponto essencial para estudarmos o poder, pois é através de sua apropriação e manipulação que é possível o controle exercido de alguns indivíduos sobre outros. Foucault se baseia na história do pensamento para demonstrar a maneira pela qual o poder se instala e se modifica com passar do tempo. Traz a tona os progressos e adaptações, que resultaram no poder do Estado que conhecemos atualmente. Coloca o cristianismo, com seus preceitos de salvação individual através do sacrifício pessoal e da confissão dos fiéis, como um importante meio de se conhecer a alma, a consciência e os mais íntimos segredos do indivíduo para, em seguida, tomar sua direção. Assim como a Igreja, o Estado também prega a salvação, mas não na vida eterna. Nesse caso a salvação pode ser entendida como saúde, segurança e o bem-estar; todos esses propósitos do poder governamental.

É nesse contexto que a medicina e a rede pública de saúde se desenvolveram como forma de esquadrinhamento social. A necessidade de higienização para prevenção de pestes, obrigou as autoridades a produzirem aparatos para o levantamento de dados relativos aos cidadãos, enquadrando-os em um sistema complexo, através do qual tornou-se possível conhecer suas particularidades com grande riqueza de detalhes. A documentação e a vigilância permanentes, a hierarquização das autoridades e a burocracia medem e controlam os indivíduos em praticamente todas as esferas de suas vidas, sujeitando-os às leis, que os fixam em locais determinados, onde se é possível encontra-los e controlá-los. O Estado consegue, ao mesmo tempo, uma individualização e uma totalização, que não seriam possíveis sem o auxílio dessa racionalização que o acompanha.

Por isso é importante entender quais os meios que historicamente moldam a natureza do poder e que elevam a disciplina como o principal instrumento da dominação. Quem não se enquadra nos padrões estabelecidos pela ordem social são tidos como excluídos, que por sua vez suscitam maiores cuidados e vigilância redobrada para que não ofereçam riscos aos demais. Os hospitais, os manicômios, as prisões entre outras instituições de auxílio e policiamento, assumem a função de salvar e readaptar os pestilentos, os loucos, os criminosos e os mendigos para o convívio dos cidadãos saudáveis e corretos.

No intuito de ilustrar os pormenores dessas relações de poder, Foucault cita o Panóptico e explica detalhadamente seu mecanismo, cuja eficiência no controle de pessoas, se baseia na observação permanente. A prisão arquitetada a partir desse modelo difere das antigas masmorras, pois apesar de manter o condenado trancafiado, não o esconde na escuridão. Podendo ser utilizado também em escolas, hospitais ou fábricas, o mecanismo de funcionamento do Panóptico permite que se observe os indivíduos em todos os seus movimentos, na realização de suas atividades ou tratamentos, mas sem que eles possam se comunicar com os demais companheiros livremente. O fato de se sentir vigiado é mais eficiente para a manutenção da ordem do que qualquer tipo de violência física, pois a idéia de ter alguém observando qualquer atitude que se possa tomar ou qualquer tentativa de formação de grupos desordeiros, instala na consciência um controle tão preciso, que dificilmente será ignorado por parte dos observados. E mais, não saber quando e por quem se está sendo vigiado e quais os interesses dessa curiosidade só fazem multiplicar a sensação de impotência. Por outro lado, aquele que está na posição de vigia também está sendo testado, visto que se algo sair do controle, se o objetivo traçado não for alcançado, em suma, em caso de incompetência, talvez este seja o primeiro atingido por tal falha.

Acredito que o Panóptico oferece mostras laboratoriais de um esquema amplamente difundido, diluído e instalado no inconsciente coletivo. O Estado impõe seu poder sobre os cidadãos sem a necessidade de policiá-los em tempo integral. O ladrão sabe que pode ser preso, o mal pagador tem conhecimento das conseqüências de seus atos. A disciplina recai também sobre aqueles que tentam quebrar suas regras. Dizem que a justiça é cega, porém através de seus instrumentos e instituições ela vigia a todos porque todos se reconhecem como vigiados. Carregam seu peso dentro de si o tempo todo e em todo lugar, não há como fugir.

Finalmente, surge a história da sexualidade para demonstrar como o sexo foi apropriado pelos mecanismos do poder, transformado em discurso, e passou a servir como mais uma forma de controle sobre uma sociedade que via o aumento de sua população como problema. Mais uma vez as instituições de controle, como a Igreja e o Estado, criaram a necessidade da confissão da conduta sexual. A pedagogia, a psicologia, a psiquiatria, assim como os confessionários, passaram a ouvir e a controlar o que se devia ou não falar sobre a vida sexual, criando modelos e um discurso ao mesmo tempo repressivo e difusor. Controlado, o sexo passa a servir economicamente, e através de uma aparente repressão, é estimulado, assim como é estimulado o prazer e o discurso a seu respeito, acumulando mais conhecimento e mais controle sobre o assunto.

Com esse breve apanhado das idéias de Foucault tentei delinear algumas noções do que ele nos oferece sobre o poder, utilizando exemplos dados pelo autor ao longo de sua obra. Resumidamente, o que pude tirar dos textos que tive contato foi uma evolução na forma em que esse poder é exercido sobre a sociedade. O direito de vida e morte, que antes se apresentava como um instrumento do Estado para decidir sobre quem deveria morrer e quem poderia viver, ou seja, de se impor aos que se opunham ou atacavam o soberano, direcionou-se a um investimento na geração e manutenção da vida, pois agora ela é tida como um mecanismo através do qual é possível o aumento do poder e de riquezas. O direito de vida e morte passou a gerir a vida, em seus mais diversos aspectos, disciplinando-a. As guerras não são mais travadas em defesa de um soberano ou de um território, mas pela defesa da vida de sua população, chegando-se ao cúmulo de se cometer verdadeiros massacres em nome da sobrevivência.

Sob esse aparato de poder o sujeito não tem muitas chances de vencer a luta contra a alienação do seu trabalho e de si mesmo. Mas para compreender toda a genealogia desse poder coercitivo e invisível que Foucault tenta estabelecer arqueológicamente, é necessário bem mais do que essa minha breve tentativa. É preciso delinear a história do pensamento, traçando uma linha, localizando no tempo sua evolução. Considerar todos os dispositivos (...que eu precisaria ter detalhado muito mais profundamente) dessas relações de poder emanantes do Estado, mas que, se espraiam e se infiltram em praticamente todas as relações sociais existentes – as tais micro relações que são o ponto que mais o interessa. O controle sobre o corpo, o adestramento, o desenvolvimento de aptidões, o aumento de capacidade e força para a produção e, sobretudo, a docilidade do homem atual são, em conjunto, os principais aspectos que permitiram o estabelecimento do poder sobre a vida.

Leonardo André
Enviado por Leonardo André em 13/09/2005
Reeditado em 13/09/2005
Código do texto: T50052