STEPHEN KING : CAIM REBELADO : CONTO

Nesse conto, o estudante Curt Garrish, após período de exames, surta e abre fogo, da janela de seu dormitório, contra quem quer que esteja ao alcance da mira telescópica de seu rifle.

Esse conto é de 1968 e pode ser encontrado na coletânea TRIPULAÇÃO DE ESQUELETOS, de Stephen King.

Talvez seja ilusório ou precipitado supor que esta não seja uma autêntica história de horror, pela ausência do elemento sobrenatural.O fator desencadeador do medo, aqui, não é tão evidente durante a maior parte da narrativa, é fato, mas isso não implica em que não esteja presente o tempo todo, discreto e silencioso, como uma metástase no início.Há muita coisa acontecendo na mente perturbada de Curt Garrish – o leitor desconfiará disso bem antes do momento crucial, quando ele discorre sobre suas percepções teológicas com o pôster de Humphrey Bogart – coisas que suas respostas secas, seu ar quase circunspecto (e um certo rigor neurótico em relação a disciplina pessoal) não dão a entender facilmente.Quando, ao final, tudo desanda, as associações ficam claras e cada traço pessoal do protagonista ganha um teor particularmente sinistro.

Essa não é a única abordagem de King desse tema, terrível numa sociedade traumatizada por tantos massacres em escolas.Seu romance RAGE (FÚRIA), de 1966, publicado em 1977 sob o pseudônimo de Richard Bachman, trata de um aluno repreendido pela direção da escola, que resolve matar um professor e manter os colegas reféns.Um exemplar de RAGE foi encontrado entre os pertences de Michael Carneal, o atirador do Heath High School, em West Paducah, Kentucky, EUA, em dezembro de 1997.Stephen King achou mais sensato tirar de circulação o que eventualmente poderia ser um subterfúgio para novas tragédias do tipo.

Conforme entendo, essa é uma história atual, tanto se levamos em consideração o contexto social em que ela foi produzida e os subseqüentes massacres perpetrados por adolescentes (como em Columbine), como também entre os leitores brasileiros, em ano eleitoral, quando o debate sobre o desarmamento da população certamente será retomado. Desnecessário afirmar que em cada contexto a abordagem do problema ganha contornos bem intrínsecos, nada acrescentando à discussão ignorar as gritantes diferenças entre a sociedade norte-americana e a brasileira.

O conto traz o estilo típico de Stephen King, direto ao ponto, em suas narrativas curtas, descontraído e envolvente desde os primeiros parágrafos.Interessante notar em alguns elementos reveladores tanto da condução do enredo como um todo, como da visão crítica do autor, por exemplo:

• O pai de Curt Garrish é ministro metodista : King teve formação metodista, na infância; sabendo que atualmente o autor não professa fé alguma, é inevitável estabelecer um link de causalidade entre uma origem supostamente repressiva, na percepção do autor, e aquilo no que o protagonista vem a se tornar por fim;

• As referências à cultura popular e indústria de entretenimento : Humphrey Bogart, revista Playboy, Rodolfo Valentino, a miniatura do Pensador, de Rodin, numa privada;

• As fantasias nas quais Curt imagina a morte de pessoas próximas, Rollins, Bailey, um estudante de cálculo.

O que mais alimenta a minha afeição por este conto é a forma como King captura, com precisão, o mundo dos estudantes, pelo viés de seus medos reais, suas inseguranças em relação ao futuro, a empáfia típica e totalmente justificável da juventude, o ímpeto de quem acha que sabe de tudo, que tem as melhores respostas para os problemas do mundo – anos 60, não nos esqueçamos... – , a esperança e , mais que tudo, a fragilidade da existência humana, o modo como “o mundo muda de cor repentinamente” (Sylvia Plath).

Uma outra história de King ambientada entre estudantes é PRIMAVERA VERMELHA, talvez mais interessante da perspectiva do horror puro e simples (bem como da gênese dos mitos e lendas urbanas) que do ponto de vista político, sociológico, existencial, etc.Ambos funcionam e são altamente recomendáveis para os amantes de boa prosa, equilibrada e levada a efeito por alguém que se deu ao trabalho de assimilar os fundamentos da arte.

.

.
Israel Rozário
Enviado por Israel Rozário em 26/06/2018
Reeditado em 28/06/2018
Código do texto: T6374579
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.