"Mutantes" - resenha/análise do álbum que completa 50 anos.

No dia 07 de julho de 2018, com mais ou menos um mês de atraso, eu lancei aqui no Recanto, uma resenha sobre o álbum Os Mutantes, de 1968, que foi um disco extremamente importante para o movimento tropicalista que estava em seu auge, tornando-se um dos álbuns mais importantes da música brasileira e lançando os nomes Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias ao estrelato da época. Já no ano 1969, a Polydor Records lança o álbum “Mutantes”, cuja capa é uma fotografia do trio no Maracanãzinho onde eles, amparados por uma orquestra, defenderam a música “Caminhante Noturno” e trajavam roupas que conseguiram nos estúdios da Rede Globo. Na foto, a esquerda, Arnaldo Baptista de arlequim, no meio, Rita Lee de noiva e na ponta a direita, Sérgio Dias de toureiro. Já na contracapa, temos o grupo com uma maquiagem de alienígena, cujas cabeças avantajadas foram feitas com bolas de isopor, as veias e o sexto dedo de Rita Lee feitos com massinha de modelar, além da pele toda pintada de verde, reforçando um conceito mais voltado para a ficção científica que permeia boa parte do disco.

Curiosidades:
- Apesar do primeiro álbum dos Mutantes ser o mais importante e o mais famoso da banda, não é o mais psicodélico, tendo em vista que, a referência de psicodelia no final dos anos 1960 eram os álbuns Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band e Magical Mistery Tour, dos Beatles, porém, é o segundo álbum dos Mutantes que mais se aproxima da sonoridade do quarteto britânico.
- Esse disco conta novamente com as participações de Claudio Cesar Dias Baptista, construindo alguns instrumentos, inclusive o Teremim usado por Rita Lee em duas faixas, o pedal para a guitarra de Sérgio Dias na música “Dia 36” e cuidando de alguns instrumentos eletrônicos. Também teve a participação de Dinho Leme na bateria, que posteriormente se tornou membro fixo da banda, Liminha na viola caipira na faixa “Mágica” e do maestro Rogério Duprat, responsável pelos arranjos orquestrais.
- As faixas Dois Mil e Um e Qualquer Bobagem foram originalmente escritas por Tom Zé, sendo que só a segunda foi gravada por ele e a primeira foi exclusivamente interpretada pelos Mutantes, com a participação da dupla Zé do Rancho e Mariazinha, tocando sanfona e viola caipira. Essa música foi também defendida em um dos festivais da MPB, com a participação de Gilberto Gil na sanfona.
- A primeira faixa, “Dom Quixote”, foi a primeira música composta por Rita Lee e Arnaldo Baptista e teve dois versos censurados, onde no lugar, foram colocados sons de aplausos.
- A faixa “Fuga Nº 2" foi inteiramente escrita por Rita Lee e sem a participação dos irmãos Baptista, enquanto a faixa anterior a ela, “Algo Mais”, foi feita num processo inverso. Essa última foi um jingle feito para um comercial da Shell.
- Esse é o primeiro álbum onde quase todas as músicas são escritas pelo trio principal.

Análise de faixa a faixa:
Dom Quixote (composta por Arnaldo Baptista e Rita Lee):
A música começa com som de tambores pesados, seguida por uma orquestração típica do período medieval, quando os cavaleiros e os grandes reis eram anunciados aos seus súditos. Ao fim das trombetas, entra um agudo som de flauta doce tocando algumas notas e depois servindo de fundo para um vocal mais adocicado de Rita Lee e Sérgio Dias em coro. Junto a flauta, entram violinos tocando as mesmas notas, produzindo um som semelhante ao da música erudita. Nesse momento, o tom é cortado por batidas de bateria e o vocal de Rita ficando um pouco mais alto e sendo cortado por Sérgio que canta o próximo verso, e os dois voltam ao coro. Enquanto a instrumentação nesse momento é trocada por uma guitarra no pedal de “ua ua”, ao melhor estilo dos Beatles, alternado para um som mais distorcido, até voltar para o som anterior, mas com a letra seguindo. Após essa introdução, a música segue na alternância dos diversos instrumentos presentes, misturados. Sendo encerrada pelo toque de uma buzina, um grito de Arnaldo, onde ele diz “palmas para Dom Quixote que ele merece!”, mais orquestração, a introdução da Disparada de Geraldo Vandré (uma clara provocação do trio ao músico que era um crítico da tropicália) e finalizado com gargalhadas dos integrantes. Aparentemente, a letra é uma grande brincadeira com o livro Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, onde o grupo faz um jogo linguístico com as primeiras letras das palavras de cada verso, falando sobre Sancho mascando chiclete ou o quixote, ou sobre o próprio Dom Quixote aparecendo na TV.

Não Vá Se Perder Por Aí (composta por Raphael Vilardi e Roberto Loyola):
A segunda faixa do disco, escrita por Roberto Loyola e Raphael Vilardi (ex integrante do grupo Os Seis), se inicia com um grito risinho dizendo “e aí” e tem como destaque um banjo, provavelmente tocado por Rita, uma guitarra bastante distorcida de Sérgio, que lembra bastante os riffs de A Minha Menina e um solo de baixo de Arnaldo tocado em alguns intervalos e um violino na parte dos arranjos. A letra, claramente, fala sobre a necessidade das pessoas de não se iludirem com determinados gestos que podem (ou não) indicar interesse amoroso, como um beijo, uma frase ou um olhar, recomendando a você que escuta que “não vá se perder por aí”.

Dia 36 (composta por Arnaldo Baptista, Johnny Dandurand e Rita Lee):
A terceira faixa, e a mais psicodélica do disco, começa com fortes tambores (assim como Dom Quixote), seguida por um solo de guitarra bem minimalista, dando então, abertura para os vocais bem distorcidos de Arnaldo, feitos a partir de um equipamento chamado “leslie cabinet”, no microfone. Logo em seguida, é adicionado a guitarra, um pedal criado por Claudio Cesar, batizado por ele de “uul uul” (em referência ao “ua ua”), fazendo um som grave, dando a impressão de que a guitarra estaria vomitando. Ao fundo, uma percussão não muito ordenada. Na letra, o eu lírico parece refletir sobre as coisas que ele vê, seja a menina cujo amor a fez girar, as pessoas e seus cabelos rosas a se abraçar e, principalmente, o passar do tempo. Mas não a mudança das coisas no processo. Tudo parece do mesmo jeito. “Esquece não pensa mais”.

Dois Mil e Um (composta por Tom Zé e Rita Lee):
A quarta faixa é, sem dúvidas, a mais tropicalista do álbum, misturando o que parece ser um sertanejo paulista com um rock psicodélico, devido a alternância entre um vocal em coro de Rita e Arnaldo imitando pessoas do interior paulista, ao som da viola caipira e de uma sanfona, enquanto Rita toca seu pandeiro, para entrar um acompanhamento de guitarra e baixo e um vocal mais limpo. Em determinado momento. Entra um som do teremim tocado por Rita, junto a gritos e ruídos, cuja referência é a sequência da viagem psicodélica do personagem Dave do filme 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, que, por ser um filme que os Mutantes haviam assistido no ano anterior e gostaram bastante, serviu de inspiração para o título, além de casar com o subtexto de ficção científica da letra, que fala o tempo inteiro sobre astronautas, computadores e velocidade da luz, em contraste com os elementos do cotidiano do sertanejo paulista. Vale destacar a excelente linha de baixo de dita muito bem a transição de ambos os estilos de música.

Algo Mais (composta por Arnaldo Baptista e Sérgio Dias):
Ao longo de toda a sua duração, a quinta faixa do álbum bebe da fonte do rock clássico, com um acompanhamento de teclado, bateria e guitarra no mesmo ritmo e com notas típicas do rhythm blues, junto a esses instrumentos, uma base de percussão. A letra, cantada ora por Rita Lee, ora em coro com os irmãos Baptista, é um convite do eu lírico para as pessoas curtirem a vida intensamente, pois ela teria “algo mais para dar”.

Fuga Nº 2 dos Mutantes (composta por Rita Lee):
Segundo o vlogger Bruno Ascari, do canal Som de Peso, para alguns, essa faixa seria uma “música irmã” de She’s Leaving Home, dos Beatles, do álbum Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, só que, o eu lírico aqui, é a filha que foge de casa. No caminho, ela vê olhos de mercúrio que a espionam e iluminam seus passos, representando aqui o medo e a insegurança de uma jovem ao desbravar o mundo fora de sua casa e sem saber aonde ir. A música é a base de uma arpa que é trocada por trombetas e violino durante o refrão “pra onde eu vou? Venha também”, enquanto no fundo, há um acompanhamento de percussão assim como na faixa anterior, só que mais lento e a música se encerra com um som de piano bastante extenso que lembra o encerramento de A Day in the Life, também dos Beatles.

Banho de Lua (composta por Franco Migliacci e Bruno de Filippi)
A sétima faixa do disco é a segunda regravação da canção italiana composta por Franco Migliacci e Bruno de Filippi, cuja primeira interpretação traduzida foi feita por Celly Campello numa versão mais voltada para o rock clássico. Aqui os Mutantes dão um tratamento psicodélico introduzindo percussão de pandeiros, uma bateria mais rítmica, guitarra distorcida e um teremim tocado por Rita Lee que canta a música num tom mais “gritado” e em coro com Arnaldo Baptista. A letra aqui não está completa como na versão original, somente destaca as partes onde o eu lírico, no caso uma mulher, ao tomar um banho de lua e ficar branca como a neve, tendo o luar como seu amigo e sem ninguém se atrever a censura-la, sente o amor como se fosse uma magia, sonhando com seu amado ou, por que não, sua amada?

Rita Lee (composta por Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias):
A oitava faixa do disco, segundo o vlogger Bruno Ascari (e eu concordo com ele), parece ser uma grande gozação por parte do trio a visão que a sociedade da época tinha da jovem Rita Lee, esperando que ela, já aos vinte anos, deveria estar namorando e pensando em casamento, visto que, em plenos anos 1960, esse ainda era um padrão de vida esperado para uma mulher “bem nascida”. Vale destacar o acompanhamento de piano, bastante puxado da psicodelia britânica, seguido por algumas notas no órgão e arranjos orquestrais, enquanto Sérgio interpreta a letra num tom de felicidade poética.

Mágica (composta por Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias):
A nona faixa e segunda mais psicodélica do álbum, é iniciada com uma arpa, mas logo entra num seguimento bem repetitivo, com curtos solos de guitarra, batidas de viola caipira, tocadas por Liminha (em sua primeira música com Os Mutantes), uma espécie de gaita ou buzina tremida, uma bateria rítmica. A letra, apesar de não repetir os versos, é sempre cantada por Rita Lee, com as vogais sendo arrastadas e no mesmo tempo, sendo uma versão mais experimental das músicas de ciranda. Logo em seguida, a instrumentação para de ser repetitiva e segue a letra que muda para menções a elementos de fantasia como portões de ouro e ficção científica, como máquinas do tempo, voltando então a estrutura anterior. Ao fundo, uma excelente linha de baixo de Arnaldo Baptista que dita de forma muito precisa o tom e o ritmo da música e se faz presente, conseguindo se destacar. Ao final, tudo muda novamente, entrando o famoso solo de guitarra da música Satisfaction dos Rolling Stones, com o trio cantando em coro “hey hey hey”.

Qualquer Bobagem (composta por Tom Zé):
A penúltima faixa e segunda música da parceria Tom Zé e Mutantes é, com certeza, uma das melhores do álbum, com letra e instrumentos num mesmo nível de excelência. Introduzida com uma bateria bem seca, tocada por Dinho Leme, a música tem como destaque algumas pontuais batidas de violão, seguidas por um curto dedilhado de guitarra, uma base de baixo tão boa quanto a da faixa anterior e um órgão bastante poético e que, ao mesmo tempo, parece se encaixar como a trilha sonora da vida de um jovem ansioso que tem dificuldades de se declarar para sua amada, como fica bem claro na letra, interpretada por um vocal tímido e gaguejado de Arnaldo Baptista.

Caminhante Noturno (composta por Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias):
Enfim chegamos a última faixa do disco, que pode ser considerada a música mais complexa dos Mutantes até a fase progressiva. O foco aqui não é a letra, que fala sobre uma jovem que, todas as noites, recebe a visita de seu amante, o tal caminhante noturno. Ela começa a base de trombetas orquestrais, para então entrar a guitarra de Sérgio e o baixo de Arnaldo bem rítmicos, baixo esse que, eu imagino ter inspirado Willy Verdaguer na música Amor, dos Secos e Molhados, para então entrar os vocais de Rita, que também tocava umas castanholas. A música segue uma estrutura bem semelhante ao rock progressivo, mas com instrumentação de rock psicodélico. Logo entram os vocais de Sérgio bem distorcidos, com um violino ao fundo, um coro dos três num tom mais alto, preparando os ouvidos do público para o que vem logo em seguida. Logo, seguidos pelas primeiras batidas da bateria de Dinho Leme, entra o refrão “vai caminhante antes do dia nascer/vai caminhante antes da noite morrer, sincronizado com batidas de pratos, tocados por Rita, dando entrada para um excelente solo de guitarra no pedal de “ua ua”. Antes da música voltar ao tom anterior, o trio faz uma rápida referência a faixa I am the Walrus, do álbum Magical Mistery Tour, dos Beatles, onde eles cantam repetidas vezes o verso “everybody’s got one”. Até seu encerramento, a música continua numa “bagunça harmônica”. A música encerra com Arnaldo, com um vocal bem distorcido, falando “rota de colisão, é proibido proibir” e com Rita puxando um gravador com as vaias que o público fez a Caetano Veloso, no festival onde ele defendeu a música “É proibido proibir”, em parceria com os Mutantes. Seria então uma resposta do grupo a sociedade brasileira que humilhou um artista, afirmando sem dizer nenhuma palavra, quem de fato merecia vaias.

E assim, termino mais uma resenha/análise de um dos melhores e mais importantes álbuns dos Mutantes, que aqui, encerravam sua fase tropicalista e psicodélica circense, para então seguirem uma nova linha musical, já presente no álbum A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado, mas aí, só ano que vem. Espero que quem leu essa resenha, tenha gostado desse verdadeiro clássico do rock nacional.
Fontes:
Review do álbum feito no canal Som de Peso.
Discografia Mutante, de Cris Fuscaldo.
A Divina Comédia dos Mutantes, de Carlos Calado.
Gabriel Craveiro
Enviado por Gabriel Craveiro em 25/06/2019
Reeditado em 25/07/2019
Código do texto: T6681020
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