Lidando com as feridas

Quem conhece o trabalho de Hiro Kyohara, artista de Another, Só você pode ouvir e Tsumitsuki – o espírito da culpa, não irá se decepcionar ao ler o mangá de volume único Feridas (kizu). Assim como Só você pode ouvir, este belo mangá que conta uma triste história se baseia em roteiro de Otsuichi ( o mesmo de Só você pode ouvir) e aborda a solidão e as feridas emocionais que afligem pessoas jovens. Ainda que Feridas fuja um pouco da temática habitual de Kyohara, que é o terror, possui um toque sobrenatural que agrada aos fãs do artista e aborda, com muita sensibilidade, a necessidade que as pessoas possuem de encontrar seu lugar no mundo e ter algo em que acreditar para continuar a ter esperanças e seguir adiante mesmo quando todas as circunstâncias são adversas.

Sem pesar a mão, Feridas fala de abusos e maus-tratos sofridos por crianças da parte daqueles que delas deviam cuidar, mostrando como isso lhes afeta a autoestima e seu senso de identidade, fazendo-as pensar que não possuem nenhum valor perante o mundo. E também relata como o mundo é cruel para com as pessoas diferentes, que não correspondem aos padrões estabelecidos. Como ter força para lidar com o fato de que a vida pode ser bastante cruel para com pessoas inocentes que deveriam estar vivendo em um ambiente saudável que lhes permitisse crescer felizes? Piores do que as feridas físicas, que deixam marcas na pele, são as feridas emocionais causadas pela negligência, abandono e indiferença, que provocam profundas cicatrizes na alma em idade tão vulnerável. Ainda assim, a história não é pessimista, pois mostra como a força de uma verdadeira amizade pode ajudar almas feridas a encontrar forças para se reerguer e continuar lutando para buscar a felicidade.

Os protagonistas desta trama singular são Keigo e Asato, meninos na faixa dos onze anos de idade. Keigo é um garoto problemático que, após brigar com uns meninos que o estavam provocando por causa de uma marca de queimadura nas costas provocada por seu pai violento, acaba sendo transferida para uma turma especial, que reúne alunos com problemas emocionais e/ou de aprendizado, o que o faz se sentir mais solitário e deslocado do que nunca. Entretanto, ele logo vê sua rotina mudar ao conhecer um menino estranho que vai estudar na sua turma: Asato. O novato é tímido e não se abre com ninguém e Keigo, ao ouvir a conversa da sua professora com o diretor, descobre que a mãe do novo menino está na prisão e ele vive na casa de uns parentes distantes que não lhe dão atenção. Isto desperta seu interesse, pois vê que Asato e ele são dois solitários vivendo com estranhos. Assim como Asato teve suas tragédias familiares, Keigo é atormentado pelas lembranças de um ambiente familiar abusivo. Seu pai, viciado em bebida alcóolica, espancava não só a esposa como o filho até o dia em que foi internado com uma doença incurável. A mãe, então, saiu para nunca mais voltar e uns tios foram viver com Keigo, mas apenas para ter uma casa, já que não lhe dão a menor atenção.

Keigo sente que Asato tem algo diferente e suas suspeitas se confirmam quando ele se corta ao talhar madeira para fazer artesanato. Asato então toca seu ferimento e Keigo se dá conta de algo inusitado: seu colega tem o poder de transferir para o próprio corpo as feridas de outra pessoa. Desde esse momento, os dois se tornam amigos e compartilham não apenas o segredo de Asato como também momentos divertidos em que Asato passa a passar para o próprio corpo os machucados de outras crianças que vão à enfermaria da escola.

No decorrer da trama, Keigo fica sabendo da história de Asato: que sua mãe está na cadeia por ter assassinado o marido e ter tentado matar também o próprio filho a facadas. Eles também acabam conhecendo uma adulta, Shiho, que possui uma sorveteria e usa uma máscara no rosto, a qual nunca tira. Ambos passam a frequentar a sorveteria de Shiho para tomar sorvete e Keigo vê que Shiho, além de não tirar a máscara, tem um grande afeto por Asato. Embora seja uma pessoa afetuosa e bem-humorada, ela carrega uma grande dor. Perdeu o irmão – que lembra Asato – em um incêndio, incidente no qual queimou seu rosto (motivo por qual usa a máscara). A partir daí, os meninos vão vendo como cada pessoa que existe no mundo carrega suas dores particulares e há tantas pessoas sozinhas neste mundo em que coisas cruéis acontecem para quem não merece.

A história vai se intensificando e, ao atingir seu clímax, surge uma pergunta: conseguirão os meninos vencer os sentimentos de solidão e inadequação causados por suas feridas emocionais, que são muito piores do que qualquer ferimento físico? Poderão achar motivos que os levem a concluir que vale a pena viver e ter esperanças na vida e no futuro? Estas são perguntas que só eles conseguirão responder. Enfim, o que ninguém consegue é ficar indiferente diante dos dramas e da luta de Keigo e Asato para prosseguir em sua jornada de busca pela felicidade. Qualquer um que leia Feridas se sentirá tocado pela sensibilidade com que o autor aborda o sofrimento de pessoas que apenas querem viver e ser amadas como qualquer outra.