A PRIMEIRA UTOPIA DO ANTROPOCENO

Fichamento 05.02.2018

A PRIMEIRA UTOPIA DO ANTROPOCENO1

JOSÉ ELI DA VEIGA

Ambiente & Sociedade São Paulo v. XX, n. 2 p. 233-252 abr.-jun. 2017

“ Em vez de aumentar a lista dos contorcionismos tão comuns em infrutíferas tentativas de promover um suposto “conceito” de desenvolvimento sustentável, é bem mais prudente que a análise dessa expressão comece por separar os argumentos científicos disponíveis sobre seus dois componentes essenciais: o substantivo desenvolvimento e o adjetivo sustentável.” P-01

“Discutir o que há de válido, sério e objetivo nessa noção pode ser uma ótima vacina contra muitas das ilusões que ela tende a difundir. E separar o joio do trigo permite que o desenvolvimento sustentável possa ser mais conscientemente assumido como um dos mais generosos ideais civilizadores.” P-01

Com certeza não é mera coincidência que o ideal do desenvolvimento sustentável tenha emergido justamente no início de uma época em que as atividades humanas adquiriram tão imenso poder transformador daquilo que Samuel Murgel Branco (1989) entendia por “ecossistêmica”. A ponto de chegarem a ser consideradas o principal vetor da evolução do que vem sendo chamado de “sistema Terra”, ou “sistema terrestre”.p-01

Os usuários dessas duas últimas expressões estão sugerindo que seria possível abordar e entender o planeta mediante a suposição de que constituísse um único sistema. E, para muitos deles, um sistema passível de ser domado pela espécie humana, desde que ela se entenda sobre a melhor maneira de cooperar e consiga adotar as melhores práticas de governança. P-01 e 02

No entanto, para que se possa discutir a possibilidade de uma efetiva governança do desenvolvimento sustentável, é preciso interpretar o sentido histórico dessa expressão, o que aqui será feito pelo exame de quatro controvérsias: desenvolvimento, sustentabilidade, Antropoceno e utopia. P-02

Desenvolvimento

Ao longo do intervalo de 70 anos (1945-2015) que separou a Carta das Nações Unidas da Agenda 2030, o processo de legitimação desse ideal que é o desenvolvimento foi tão abrangente, amplo, extensivo, geral, vasto etc., que até poderia ser considerado totalizante.P-02

“Pelo lado oposto, foi igualmente significativo o fato de que em 2014 tenha sido encerrada a publicação da revista Entropia, último porta-voz da corrente intelectual contrária ao ideal do desenvolvimento, que no início dos anos 1990 adotara a bandeira “pós-desenvolvimento” e mais tarde se convertera ao “estudo teórico e político do decrescimento”.” P.02

“Todavia, há diversas razões para que se considere que a ideia de desenvolvimento permaneça como objeto de controvérsia. Não apenas porque o uso dessa noção continua a ser ferrenhamente combatido por ativistas da educação ambiental, mas também porque, de forma mais implícita, ou indireta, conflita com a tese do “decrescimento”.” P.03

“Afinal, uma das dimensões essenciais do ideal do desenvolvimento continua a ser justamente o crescimento econômico.” 03

“Com certeza, um dia será necessário decrescer crescendo, ou, como disse Edgar Morin (2011, p. 36) “simultaneamente crescer e decrescer”. Isto é, será necessário fazer crescer os serviços, as energias renováveis, os transportes públicos, a economia plural (que inclui a economia social e a solidária), as obras de humanização das megalópoles, as agriculturas e pecuárias alternativas. ” p.03

“Ao mesmo tempo será imprescindível fazer decrescer as intoxicações consumistas, a alimentação industrializada, a produção de coisas descartáveis e/ou que não podem ser consertadas, a dominação dos intermediários (principalmente cadeias de supermercados) sobre a produção e o consumo, o uso de automóveis particulares e o transporte rodoviário de mercadorias (em favor do ferroviário). Algo muito parecido ao que alguns expoentes da socialdemocracia europeia chegaram a chamar de “crescimento seletivo”.” P-03

Também não faria nenhum sentido imaginar que o desenvolvimento pudesse ser definido apenas como crescimento econômico distributivo, mesmo que a distribuição vá bem além da renda e inclua a expansão de algumas oportunidades essenciais, como os acessos à educação e à saúde. Sobretudo porque essa fórmula não deixaria de manter a confusão entre meios e fins. E é por isso que o desenvolvimento é a mais política das questões socioeconômicas.p.04

Enfim, uma maneira de dizer concisamente o que é desenvolvimento vem sendo incansavelmente repetida desde 1990 nos relatórios anuais elaborados pelo PNUD. O desenvolvimento tem a ver, primeiro e acima de tudo, com a possibilidade de as pessoas viverem o tipo de vida que escolheram, e com a provisão dos instrumentos e das oportunidades para que façam tais escolhas. P.04

Sustentabilidade

À medida que a sustentabilidade foi se tornando novíssimo valor – comparável a outros bem mais antigos, como justiça, liberdade ou igualdade –, tal noção também passou por intenso processo de banalização. A ponto de ser apropriada como leitmotiv central de estratégias de propaganda empresarial. P.04

“Por um lado, isso certamente contribui para que fique demasiadamente nebuloso o significado do substantivo sustentabilidade. Mas, por outro, é altamente positivo notar que em poucas décadas esse tema tenha passado de mero alvo de zombarias a trunfo a ser ostentado. É uma espécie de prova dos nove de sua legitimaçãov – que, por parecer definitiva, pode incitar ao equívoco de se pensar que hoje tal noção esteja isenta de contestações, quando, de fato, várias podem ser apontadas.” p.04

As professoras Melinda Harm Benson (Geografia, Novo México) e Robin K. Craig (Direito, Utah) consideram que a invocação contínua da sustentabilidade nas discussões de políticas ignora as realidades emergentes, caracterizadas pela extrema complexidade, incerteza e mudança radical sem precedentes. Em mundo assim, seria impossível até mesmo definir – e muito menos perseguir — a sustentabilidade. Não porque seja má ideia, dizem elas, mas porque é duvidoso que essa ideia ainda seja útil à governança ambiental. P-05

“Para se poder avaliar se tais confrontações entre sustentabilidade e resiliência poderiam ser admissíveis, é necessário começar por lembrar que a ideia de resiliência ficou por séculos confinada às engenharias (principalmente a naval) e tão somente há 40 anos passou a ser simultaneamente adotada por ecólogos (1973) e psicólogos (1974). Nos dois casos, para designar, grosso modo, capacidade de recuperação sistêmica pós-choques, ou capacidade de absorção de choques e subsequente reorganização para funcionar como antes.” P.05

“De resto, todas as abordagens da resiliência voltam-se sistematicamente para as reações a “choques”, enquanto a sustentabilidade é algo muito mais abrangente, pois, além deles, também envolve fenômenos erosivos ou cumulativos, como são os casos da perda de biodiversidade, ou da overdose de gases de efeito estufa na atmosfera. Ambos aumentam a frequência de eventos extremos, mas a sustentabilidade não se limita a reações a choques deles decorrentes.” P-07

“Por isso tudo, não há a mínima chance de que a noção de sustentabilidade venha a ser preterida em favor do conceito de resiliência. E tal inviabilidade não se deve a um suposto apelo intuitivo e emocional da ideia de sustentabilidade que, segundo Kupers, impediria sua superação por um conceito mais “técnico”, ou mais “preciso”, como é o de resiliência. O fato é que, comparada à sustentabilidade, resiliência é uma noção relativamente restrita, cujo alcance lógico e cognitivo é bem menos abrangente.” P-07

“Sustentabilidade é, portanto, uma noção incompatível com prognósticos de que o desastre só estaria sendo adiado, ou sérias dúvidas sobre a real possibilidade do progresso da humanidade. Em seu âmago está uma visão de mundo dinâmica, na qual transformação e adaptação são inevitáveis, mas dependem de elevada consciência, sóbria prudência e muita responsabilidade diante dos riscos e, principalmente, das incertezas.” P-09

Antropoceno

“Há muito tempo foi adotada pela ciência geológica uma história da Terra dividida em Eras, Períodos e Épocas, com base em marcadores fósseis. Conjunto de convenções frequentemente aperfeiçoado e que, desde sempre, foi muito bem acolhido pelas demais ciências naturais, com destaque para a paleontologia e a biologia evolucionária.x Nessa linha de interpretação da história da Terra, estamos há quase 12 milênios no Holoceno: a mais recente das “Épocas” do “Período” Quaternário (1,6 milhões de anos), que pertence à “Era” Cenozoica (65 milhões de anos).” P.09

“Infelizmente, tem sido bem frequente a troca semântica de “Época” por “Era”, em geral justificada por conveniências práticas de comunicação. Um exemplo bem representativo é o do chocante equívoco cometido pelo brilhante jovem historiador Yuval Noah Harari (2015, p. 80) – que, neste caso, talvez se explique também pela liberdade poética com a qual joga com as ideias de “antropização” e Antropoceno, para ele uma “Era” que teria começado há 70 mil anos, quando o Homo sapiens reescreveu as regras do jogo, mudando o ecossistema global de modo radical e sem precedente. “O impacto que causamos já é comparável com a idade do gelo e dos movimentos tectônicos” (HARARI, 2015, p. 81).” P-09

“No entanto, como foi também há doze mil anos que a espécie humana começou a praticar atividades agrícolas, é extremamente provável, ou quase certeza, que sua longa evolução cultural – com tantas ascensões e quedas de civilizações – tenha sido favorecida pelas condições naturais – e principalmente climáticas – que caracterizaram o Holoceno. Mais: que a recente aceleração das agressões à biosfera esteja marcando uma ruptura suficientemente distinta de qualquer das anteriores para que seja razoável admitir – ao menos no âmbito das ciências humanas – que já foi inaugurado um novo período que pode muito bem ser chamado de Antropoceno.” P.10

Utopia

Meio milênio depois do livro Utopia, de Thomas More (1516, que está bem acessível em português, em primorosa edição anotada), a pergunta mais pertinente parece ser a seguinte: pode-se ser fiel à ideia original dizendo que a função da utopia é nos permitir tomar uma distância do status quo que nos ajude a avaliar e julgar o que fazemos à luz do que poderíamos ou deveríamos fazer? P.11

Segundo Moyn, foi principalmente o colapso das grandes utopias que se confrontaram durante a Guerra Fria, assim como o tardio encerramento do processo de descolonização, as circunstâncias em que, na sequência, os direitos humanos ascenderam à posição de grande utopia contemporânea, que ele ambiguamente considera como “última”. P.12

Houve, porém, uma concomitante novidade que não chegou a ser considerada por Moyn (2010). Desde 1972, a Conferência Mundial sobre Meio Ambiente Humano desencadeara, em Estocolmo, um processo de tomada de consciência da responsabilidade das gerações presentes quanto aos direitos e oportunidades das gerações futuras.

Começou-se a falar em ecodesenvolvimento, inovação que precisou de 15 anos para virar desenvolvimento sustentável, a basilar contribuição do documento “Nosso Futuro Comum”, de 1987, vulgo “Relatório Brundtland”. E o primeiro dos 22 princípios legais ali propostos afirma que todos os seres humanos têm o direito fundamental a meio ambiente adequado à sua saúde e bem-estar. P.13

Síntese conclusiva

A Agenda 2030, com seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, certamente pode ser entendida como mais um capítulo desse processo de afirmação da recente utopia dos direitos humanos. Afinal, reitera até demais a necessidade de que os direitos humanos sejam “assegurados”, “concretizados”, “garantidos”, “plenamente respeitados” e “promovidos”.p.13

“Se o critério decisivo for a retórica das relações internacionais, particularmente aquelas que ocorrem no âmbito das Nações Unidas, com certeza pode-se concluir que o desenvolvimento sustentável já é a grande utopia contemporânea. No entanto, se o critério for a governança global, essa conclusão já começa a ficar inconsistente, pois, por mais e melhor que tenham evoluído as instâncias e instituições de governança do meio ambiente, elas permanecem bem distantes daquelas que promovem a governança do desenvolvimento. Por isso, a rigor, não chega a haver governança mundial da sustentabilidade, a menos que se entenda essa noção como restrita à questão ambiental.” P.13

Taiana Carvalho Paiva
Enviado por Taiana Carvalho Paiva em 08/09/2020
Código do texto: T7058135
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