O Lado B da Biutiful Barcelona

Comentar um filme implica em várias análises: o tema, a fotografia, a atuação dos atores, a trilha sonora, a montagem e a harmonia, ou falta dela, neste conjunto. E, embora todos estes aspectos possam ser resumidos em uma única palavra - a direção - sempre haverá algo que paira acima, abaixo, ou, apesar de.

Antes de iniciar uma resenha, interessa-me buscar o que já foi escrito sobre o objeto em questão. No caso de Biutiful me surpreendi ao encontrar comentários bastante negativos, em que apenas a atuação de Javier Bardem escapou ao massacre. Mas, na contramão das críticas veiculadas, pretendo aqui me render totalmente ao filme, sem deixar de constatar que, realmente, Javier está impecável, e seria mesmo merecedor do Oscar de melhor ator, o que, no entanto, não ocorreu.

Gosto da direção e do enredo do mexicano Alejandro González Iñárritu, neste primeiro longa metragem após seu rompimento com o roteirista Guilhermo Arriaga, seu parceiro em Amores Brutos, 21 Gramas e Babel. Em Biutiful, Iñárritu assume o roteiro em parceria com Armando Bo e Nicolás Giacobone Gosto da trilha sonora, e, gosto muito, da linearidade da montagem, algo raro atualmente no cinema e, por isso mesmo, um basta ao lugar comum das mirabolantes, e nem sempre bem sucedidas, interposições das tramas que, muitas vezes, parecem querer desafiar a inteligência do espectador.

Parece-me que o tema central de Biutiful é a luta dos humanos pela sobrevivência, permeada pelo que de mais inescrupuloso a acompanha: o cifrão. A partir deste tema outros se refletem: a loucura, a imigração, a exploração, a corrupção, e, como escape, as drogas e o sexo.

No entanto, a morte, o tema recorrente de Inãrritu, é algo que, inexoravelmente, nos espera, apesar de tudo o que pretendemos, apesar de tudo o que fizermos para garantir um pouco mais desta vida.

O personagem de Javier Bardem – Uxbal - se depara, justamente, com a iminência da morte, que virá devido a um câncer de próstata tardiamente diagnosticado. Separado e com a guarda de um casal de filhos, devido à bipolaridade e, conseqüente alcoolismo e infidelidade da ex - mulher, muito bem interpretada por Maricel Álvarez, Uxbal sobrevive graças à necessidade de subemprego de imigrantes ilegais - africanos e chineses - na turística Barcelona, na Espanha.

Os imigrantes africanos precisam garantir seu comércio como camelôs de produtos ilegais fabricados por imigrantes chineses que precisam garantir sua produção e venda, também ilegal, como numa cadeia alimentar em que cada uma das espécies sobrevive devorando outra. Por sua vez, Uxbal sobrevive aliciando empregos para estes imigrantes, recebendo e pagando propinas para que policiais de seu contato não os deportem, o que, contudo, virá a ocorrer com um dos africanos “protegidos” por Uxbal, supostamente por este africano ter burlado o acordo e comercializar, não apenas os produtos ilegais dos chineses, mas também drogas.

Ocorre que Uxbal tem poderes sobrenaturais, e, ao contrário do que lhe ensina Bea, sua orientadora espiritual, acaba recebendo por esta prática. Bea é a pessoa a quem o protagonista recorre em seu ultimato para a vida e ela lhe diz: “assim como recebemos nosso dom de graça (o dom da mediunidade) também não podemos cobrar por ele”. Mas Uxbal, apesar de demonstrar alguma resistência, recebe por isto. Não quero entrar na polêmica da existência ou não da vida após a morte, na polêmica do sobrenatural, já que não é isso que interessa aqui. Penso nesta cena como uma metáfora da ética: “não devemos cobrar de outros por aquilo que recebemos de graça”. Eis a questão fundamental: uma fala que nenhum comentário, que eu tenha lido, mencionou. Mas o personagem de Javier recebia, sim, por seus poderes sobrenaturais. Minha pergunta: não recebemos a vida de graça? E, no entanto, alguns pagam tanto por ela...

Os: conheci a Barcelona turística, e só um pouco de seus arredores. No filme, Barcelona está irreconhecível, é isto que me leva a pensar no lado B da Biutiful Barcelona.

Por Rocio Novaes, resenha do filme Biutiful de Alejandro González Iñárritu.