Resenha Psicanalítica do Filme "Don Juan De Marco"

Um rapaz de 21 anos, acreditando ser Don Juan De Marco, assumindo ter tido mais de 1000 mulheres e assumindo ser o maior amante que o mundo já viu entra em cena preparando-se para sua morte (suicídio) por ter sido rejeitado por uma mulher, por uma única mulher, sua Doña Ana. Antes de morrer, porém, ele faz a sua última conquista.

Um Psiquiatra em final de carreira, cansado e prestes a aposentar-se. Desacreditado dos sonhos, cego às belezas do amor e do romantismo, ansioso por o momento em que se livraria do hospital, dos pacientes, da carreira e de tudo o mais que o tornava tão fatigado.

Eis as personagens principais desse enredo encantador e rico em detalhes tanto ligados à vida e aos sonhos de cada um, suas dores e anseios, quanto á questões psicanalíticas e psiquiátricas.

A Polícia à postos chama o renomado Psiquiatra interpretado por Marlon Brando para tentar convencer o Dom Juan a não se jogar de cima de uma altura considerável onde o mesmo encontra-se a chamar por Don Francisco Del Silva para que morra através de sua espada. O Dr. Jack Mikler sobe para convencer o jovem rapaz a descer de lá, no entanto, percebe o grau de fantasia em que está envolvido o suposto Don Juan e decide entrar no jogo dele para que obtenha o sucesso desejado. O Dr. Mikler se faz passar por Dom Octávio Del Flores, enviado por Dom Francisco Del Silva visto que o mesmo não pôde atender ao chamado. Houve uma resistência inicial, mas o psiquiatra rumou a conversa para elogios eloqüentes ao Dom Juan e às conquistas até que por fim, o rapaz cedeu e decidiu descer.

Levado ao Hospital Psiquiátrico o caso do Dom Juan foi discutido entre o Conselho e o Dr. Mikler pediu para assumir o caso. No entanto o seu pedido foi declinado visto que teria apenas mais dez dias de trabalho antes de sua aposentadoria, ainda assim o Dr. Mickler insistiu que o curaria nesse intervalo de tempo. Pedido negado.

O rapaz, no entanto, não aceitou ser atendido pelo outro médico e se negou a falar, exigindo a presença de Don Octávio Del Flores. Podemos perceber nesse caso que a transferência existiu entre o suposto Dom Juan e o Dr. Mickler, não ocorrendo o mesmo com o segundo médico.

Entrar no mundo imaginário do paciente em questão foi uma tática usada pelo psiquiatra para obter a confiança do paciente e assim garantir o sucesso do tratamento. Só que no decorrer dos dias o médico passou a se deixar influenciar demais nas histórias e delírios do paciente. Analisando de um ponto de vista profissional percebemos que isso ocorrera devido ao fato de que ele, o profissional, encontrava-se cansado, desmotivado e enxergando uma vida totalmente sem brilho. E, de repente, se depara com um rapaz novo, que por si só, por sua idade, significava a vida, o novo, a força da juventude, acrescentando a isto os delírios amorosos e a forma nova e romântica de enxergar a vida, o Dr. Mickler se rendeu e mergulhou literalmente nos delírios do paciente. Podemos afirmar que houve uma contratransferência.

Em certos momentos do filme, durante as sessões, o paciente é que determina o tempo de duração e o rumo da sessão, ao profissional cabe apenas ceder e atender tudo prontamente. Os papeis se invertem, na verdade.

O Dr. Mickler se impõe ao hospital e continua sem medicar o paciente, talvez apenas pelo encantamento dele para com a conversa e a nova filosofia de vida que lhe é apresentada, talvez por sentir-se bem ao conversar com o Don Juan, talvez por sentir-se, em verdade, sendo curado pelo seu paciente. Medicá-lo o levaria à loucura, garante o Dr. Mickler.

O Dr. Mickler, por ordem do Diretor do Hospital visita a avó paterna de Don Juan e lá fica sabendo de que nada do que contara o seu paciente, com exceção de ter sido o pai um “astro” da dança, é verdade. Don Juan em verdade chama-se Jonhy. A morte do pai em nada teve a ver com o que foi descrito pelo paciente, a forma como os pais se conheceram, o lugar onde moraram, onde o próprio Don nascera, enfim, toda a história fora distorcida.

A Doña Ana de quem o Don Juan era enamorado e por quem morreria por ter sido por ela rejeitado se tratava de uma modelo de revista de nudismo. Ele, o Don, tentara falar com ela e não obteve sucesso nisso, dessa forma, sentindo-se rejeitado por aquela em quem depositava os seus anseios, queria matar-se.

A mãe de Don visita o Dr. Mickler e assume a história contada pelo filho como sendo verdadeira. E ao pedir que lhe diga a verdade, ela apenas responde “Não posso lhe dar a verdade. A verdade está dentro de cada um”. Mais uma vez o filme retoma uma áurea de romantismo e otimismo. Intimada a falar sobre a morte de seu marido, ela apenas chora e se sai da conversa. Talvez para ela, acreditar nos delírios do filho atenuasse a sua culpa e vergonha pelos fatos do passado.

Vendo-a pela janela, Don confidencia ao seu médico: “Disse que ela podia ir, mas em verdade queria passar mais tempo ao seu lado. Ela me faz viver a realidade.” E aqui temos um outro ponto crucial do filme.

O único momento na trama onde Don Juan perde a calma, se tornando violento é quando o Dr. Mickler cogita sobre a possibilidade de sua mãe ter realmente tido um caso fora do casamento, conforme Don Juan havia dito em suas fantasias quando o marido de sua amante, por vingança, havia espalhado a notícia de que tinha um caso com Doña Inês, mãe de Don. Desse boato surgiu um duelo entre Don Antonio (pai de Don) e o Don Alfonzo, marido traído (cônjuge da de Doña Julia, amante de Don). Segundo Don Juan, foi nesse duelo que seu pai morreu. E para vingar a morte do pai Don Juan matou o algoz de seu genitor.

Quando Don apossou-se da espada para duelar com o assassino de seu pai, a sua mãe gritou: “Meu Deus, vou perder os dois”. O Dr. Mickler levantou a hipótese de ela ter se referido não ao marido e ao filho, e sim ao marido e ao amante. Foi nessa hora que Don Juan explodiu em ira para defender a honra da mãe. “Você precisa de mim para suportar a sua própria vida” disse Don Juan ao Dr. Mickler. E que riqueza existe por trás dessa frase. Um dos pontos chaves do filme. Umas das cenas mais belas e reais. Foi como se dissesse: “Quem de nós está realmente doente? Eu, que crio as fantasias para ser feliz ou você que vive infelicidades por não abrir espaços à elas?”. E Don lança a sentença “O meu mundo perfeito não é menos real do que o seu, Don Octávio.”.

No julgamento final sobre o futuro do paciente Don Juan, que a essa altura já era por demais famoso entre as mulheres do hospital, ele, sem sua fantasia habitual, trajado de roupas comuns admitiu as informações dadas por sua avó e, normalmente confessou seus delírios. Falou sobre a morte de seu pai em um acidente de trânsito, falou sobre o fato de sua mãe ter amantes e de seu pai ter ciência disso ( e talvez a insegurança de Don Juan para com as mulheres tenha nascido do fato de ver o que foi a vida do pai e em que resultou o casamento: traição e morte), falou sobre seu amor platônico pela moça da revista e de como levara um “fora” dela. Falou que realmente não queria se matar e apenas chamar a atenção. Acreditava que precisava ser diferente, que não podia ser “normal” porque sendo apenas “normal” ele não conseguiria ter a atenção, o carinho e o amor das pessoas.

Don Juan foi absolvido e teve alta.

O Dr. Mickler, teve sua vida toda transformada após o caso “Don Juan”, assumindo uma visão mais romântica e feliz do mundo em sua volta. E termina a história como a contar uma fábula, como se agora, ele, o psiquiatra, precisasse de uma cura para os seus delírios, ou ainda, sob uma outra ótica, tivesse encontrado nos delírios a sua “cura”.

A obra “Don Juan de Marco” pode ser tida como um lindo filme, um filme que fala sobre o que é verdade, e o valor que tem a verdade para cada um de nós. Uma história fantasiosa, mas que proporcionou aos seus protagonistas momentos felizes, como se para felicidade fosse preciso fechar os olhos à realidade ou ainda, forjar as verdades fantasiando-as em mentiras em nosso favor.

Do ponto de vista da psicanálise o filme é riquíssimo em detalhes. Podemos encontrar a transferência, a contratransferência que ocorre quando o profissional não tem seus problemas resolvidos, o Complexo de Édipo quando da adoração de Don Juan para com sua mãe. A forma como ele projetou em personagens as dores e os traumas vividos em decorrência de sua vida, das traições de sua mãe, da sua insegurança para com o mundo.

Em determinada parte do filme o Diretor do Hospital fala que Don Juan seria esquizofrênico, no que até então era um diagnóstico aceitável, visto que Don Juan criara um mundo imaginário com personagens que não iam além de sua mente. No entanto, ao final do filme, no julgamento, quando ele diz ter consciência de tudo como sendo uma fantasia, poderíamos trocar o diagnóstico de esquizofrenia por paranóia, visto que o paranóico cria as suas fantasias, mas tem consciência de que não passam de fantasias, o que não ocorre com o esquizofrênico.

Na paranóia, “uma vez formado o sistema delirante em sua plenitude, o paciente em geral se torna muito mais calmo, pois deixa de se sentir confuso. Mas ele ‘sabe’ o que está acontecendo consigo.”

Ao ter o pai morto, a mãe adúltera refugiada num convento para esconder sua culpa, Jonhy sentira-se sozinho e perdido no mundo. Foi quando encontrou a moça da revista. Sabia que não a atrairia sendo apenas o que era, usou então, as artimanhas que havia lido no livro “Don Juan De Marco”. A partir de então acreditou ser Don Juan. Esse momento de sua vida foi transferido para seus delírios quando contou como conhecera Doña Ana. Sozinho, sobrevivendo a um naufrágio, perdido numa ilha. E lá estava ela para dar-lhe um sentido à vida.

Toda a vida ilusória de Jonhy foi criada em cima de seus momentos difíceis. Como na paranóia delirante, Jonhy projetou em delírios as idéias que por alguma razão eram insuportáveis para sua mente. O estado de angustia grave frequentemente desenvolve o sistema delirante. Com o sistema delirante formado o paciente não mais sofre por estar confuso e angustiado.

As fantasias, os delírios são uma forma de Jonhy conviver com a realidade. Em verdade o delírio não é a doença, é o produto dela.

“Freud defende a tese – ainda válida – de que o delírio não é a doença em si, mas representa uma tentativa de recuperação. A catástrofe principal é a perda e a fragmentação de um contato com o mundo que faça sentido. O sistema delirante representa uma tentativa de reconstruir um mundo de sentidos. Dá a expressão à catástrofe interna e também é a tentativa de se recuperar dela, por mais limitados que sejam os recursos.”

Talvez para Johny aceitar o fato de que sua mãe cometera adultério fosse algo por demais insuportável para sua mente. Dessa forma, percebemos que a fantasia de Johny gira em torno de proteger a imagem de sua mãe. Ele diz, em seus delírios, que o pai morrera ao duelar com o homem que, por vingança, espalhara a infâmia de que mantinha um caso com Doña Inês. Don Juan se coloca como o culpado na história. Traz para si a culpa da morte do pai, visto que o assassino só espalhara essa mentira como vingança por Don Juan ter mantido um caso com Doña Julia, sua esposa. Por fim, ainda em seu delírio, Don Juan vinga o pai e sua mãe segue para um convento, como já fora citado anteriormente. A mãe como freira, como uma seguidora de Deus. Mais uma vez, a mãe protegida, sagrada.

Jonhy, ou Don Juan De Marco, é um rapaz inseguro, fragilizado pelos fatos ocorridos em sua vida, pela desestruturação de sua família, pela morte do pai, pelo adultério da mãe e por ter se encontrado, de repente, sozinho no mundo.

A transferência de Don Juan para com seu psiquiatra foi completa e os laços de amor e amizade que se formaram ficam nítidos desde o início do filme. Jonhy confiou completamente em seu terapeuta e encontrou nele o pai, o amigo, o confidente.

Don Juan de Marco é sem dúvida um filme necessário ao estudante e/ou profissional de Psicanálise e toda outra ciência que trabalhe a mente e o comportamento humano.

Além de uma bela fábula, o filme em questão é um rico material de pesquisa para estes profissionais.

BIBLIOGRAFIA

Paranóia / David Bell; tradução Carlos Rosa – Rio de Janeiro : Relume Dumará : Ediouro : Segmento-Duetto, 2005

(Conceitos da Psicanálise ; v.6)

Cinthya Danielle dos Reis Leal
Enviado por Cinthya Danielle dos Reis Leal em 06/02/2007
Código do texto: T371660