Culpa, responsabilidade, ética e justiça

Introdução

Neste estudo temos como objetivo utilizar a obra "Convite à filosofia" escrita por Marilena Chauí focando em suas teorias sobre a ética e principalmente os conceitos apresentados de consciência moral e senso moral com a finalidade de colocar esta obra em diálogo com o filme "Deus da carnificina", assim tentando estabelecer uma relação entre os conceitos teóricos expostos por Chauí e a situação chave que gera todo o clímax do filme e questionando as possíveis atitudes ou procedimentos que se possa tomar para se alcançar o pensamento crítico moral.

Introdução teórica dos conceitos

Chauí expõe em sua obra diversas situações que desafiam nosso senso ético e colocam a prova nossa consciência ética, isto ocorre justamente pois estas situações pedem à quem a presencia ou a quem as vive uma atitude, uma ação, ação esta que deve ter como base o juízo ético de valor, para esclarecer melhor recorramos a uma situação do texto.

"Uma mulher vê um roubo. Vê uma criança maltrapilha e esfomeada roubar frutas e pães numa mercearia. Sabe que o dono da mercearia está passando por muitas dificuldades e que o roubo fará diferença para ele. Mas também vê a miséria e a fome da criança. Deve denunciá-la, julgando que com isso a criança não se tornará um adulto ladrão e o proprietário da mercearia não terá prejuízo? Ou deverá silenciar, pois a criança corre o risco de receber punição excessiva, ser levada para a polícia, ser jogada novamente às ruas e, agora, revoltada, passar do furto ao homicídio?" (Chauí, pg. 430.).

Primeiro usemos este pequeno exemplo para podermos utilizar os conceitos de Chauí para analisar o filme "Deus da carnificina". Nesta situação temos o agente, no caso a mulher que vê a criança roubando os pães, no início da situação seu senso ético é despertado, ou seja, seus sentimentos são fontes de um futura ação, ver esta situação gera nela ódio por ver alguém roubando ou compaixão por ver alguém necessitado buscando comida de forma desesperada, portanto na fase superficial da ética de ação temos apenas alguns sentimentos gerados a partir da situação vista de modo raso.

Porém vemos que quando o agente se debruça diante do acontecimento e percebe suas pluralidades e complexidades começa a se tornar necessário um justificativa para sua ação que está por vir, no caso acima a mulher começa a utilizar da sua consciência ética justamente quando se dá um estudo da situação, "Deve denunciá-la, julgando que com isso a criança não se tornará um adulto ladrão e o proprietário da mercearia não terá prejuízo? Ou deverá silenciar, pois a criança corre o risco de receber punição excessiva, ser levada para a polícia, ser jogada novamente às ruas e, agora, revoltada, passar do furto ao homicídio?", ou seja, agora o agente toma ciência dos desdobramentos de seus atos e para além disso percebe os outros que estão envolvidos nesta situação, percebe a complexidade das escolhas e a profundidade delas.

Porém não podemos deixar de lembrar que a própria consciência ética está construída dentro de um contexto histórico-cultural, portanto o próprio conceito de bem e mal, felicidade e tristeza, permitido ou proibido são fluidos perante o tempo e a cultura e até mesmo são diferentes diante de classes para classes podendo existir valores diferentes convivendo na mesma sociedade e tempo, mas do mesmo jeito que não podemos deixar de esquecer deste detalhe não podemos nos deixar esquecer que o centro da ética desde Antiguidade clássica se encontra na violência, aqui tentamos desenvolver que uma atitude moral sempre age a favor do bem estar, portanto em última análise o bem agir é quando se consegue perceber as singularidades da situação e acima de tudo ir de encontro ao bem estar.

Agora que decorrem de modo básico diante de conceitos essenciais expostos por Chauí em sua obra, iremos usá-los para fazermos uma análise do filme "Deus da carnificina" onde colocaremos esses conceitos em diálogo com a situação geradora exposta no filme e com as reações dos agentes envolvidos.

O filme

O filme dirigido por Roman Polanski carrega como título original "Carnage" que é uma adaptação de uma peça teatral francesa chamada "Le Dieu du Carnage". O encontro de dois casais, um deles são Nancy e Alan Cowan e outro sendo o anfitrião da casa, Penelope e Michael longstreet que ocorre com o objetivo de discutirem sobre uma situação específica: o filho do primeiro casal agredir o filho do segundo casal usando um graveto e assim lhe ferindo o rosto o que resulta na perda de dois dentes. A discussão começa dentro de padrões estabelecidos pela conduta ética e moral e a civilidade, até o momento que o constante julgamento dos envolvidos faz com que a situação perda o controle o que acaba gerando um massacre da conduta ética e moral que é soterrada por ácidos comentários e exposições constantes.

Quando observamos a posição de cada casal fica clara a posição dos longstreet, se julgam portadores de um conduta moral e educadores da ética, propondo uma conversa entre os dois garotos para que isso possa ser resolvido e que possa extrair uma possível moral nessa situação. Porém são os primeiros a julgarem os envolvidos no ocorrido, dividindo as crianças em dois papéis uni facetados "O agressor" e "A vítima", dando apenas espaço para um discussão punitiva do agressor e assim tentando se redimir diante da vítima. O casal Cowan sem saída inicialmente acaba aceitando as propostas do primeiro casal colocando seu filho em uma situação de "agressor".

Porém a partir do momento que mais facetas da situação se revelam fica clara a pluralidade do ocorrido.

Nesta análise tenho como objetivo não analisar o massacre do convívio ético no encontro dos casais, e sim analisar a situação das crianças, como poderíamos ter procedido? Quais os fatos a se relevar? E para isso usaremos da obra de Chauí para nos apoiarmos em um teoria para assim podermos criticar a circunstância

Portanto temos inicialmente, antes mesmo do plano apresentado pela obra cinematográfica um situação muito semelhante as a que Chauí desenvolve em seu texto, um drama onde existe o dano em um dos agentes envolvidos, dano este que é causado à partir da violência, portanto temos um "ataque" ao que vem a ser ético ou moral. Tendo isso exposto devemos ir a situação que precede os fatos do filme mas que gera os acontecimentos do filme.

Um grupo de crianças estão interagindo no parque, até que em um determinado momento duas crianças entram em conflito o que acaba gerando uma briga. Um dos garotos pega um galho que encontra próximo dele e no meio da briga bate com ele na outra criança o que acaba resultando em um ferimento no rosto do outro garoto.

O juízo de fato é este exposto acima, aqui não percebemos as singularidades e as especificidades da situação, caso só tivéssemos conhecimento dessa faceta do fenômeno nosso julgamento em busca da justiça nesse caso se daria de modo pífio, com essas informações pouco temos para que possamos recorrer a nossa consciência moral, falta dados para estudarmos a situações e assim poder deliberar um sentença de quem é culpado, ou de quem é a responsabilidade, é preciso questionar a situação.

Justamente por não estarmos presos ao enredo do filme podemos utilizar de fatos que só seriam revelados ao decorrer da obra, como por exemplo que o garoto "agressor" queria fazer parte do grupo, no caso uma gangue, enquanto o garoto "agredido" que é o mandante desse grupo negada sua entrada. Percebemos que este fato revela uma singularidade extremamente relevante para analisarmos a situação e assim colocarmos nossa consciência ética em conflito, agora é preciso estudar os lados.

Portanto retomemos a situação inicial, porém agora questionando os fatos partindo além de nosso senso ético e alcançado nossa consciência ética.

Temos um grupo de amigos em um parque, brincando até que em um momento entram em conflito, aqui já temos questões a levantar, Que conflito é este? Qual é a causa? Quem circunstancias o geraram? Com o decorrer do filme descobrimos que o epicentro da briga é quando um dos garotos exclui o acesso de um garoto a gangue.

Antes de continuar a descrever a situação devemos focar nesse ponto, agora sabemos que o garoto "agressor" não só sofreu algum tipo de discriminação do grupo, como também queria fazer parte de uma gangue, ou seja, cabe questionar o que está gangue fazia ou quais eram os princípios que carregam este grupo? Podemos ver que a situação se torna mais complexa agora que vemos a pluralidade da situação e não a vemos apenas de modo superficial.

Parece que o dono da gangue realmente se recusa a aceitar o ingresso do futuro "agressor" justificando que ele é um "dedo-duro", aqui não cabe justificar a origem desta ofensa pois temos poucas informações sobre situações anteriores a esse fato, mas é interessante percebemos que antes mesmo da violência física ter ocorrido, ocorre uma série de ataques violentos ao garoto "agressor", primeiramente ele sobre já um constrangimento e um banimento do grupo ao não ser aceito, e além disso o futuro "agredido" desqualifica o garoto o chamando de "dedo-duro" o que o coloca de novo em uma situação inferior e de humilhação, após esses atos de violência psíquica o garoto tenta se defender de modo físico, pegando um galho e ferindo um golpe no outro garoto.

Aqui não tento justificar a ação do "agressor" e sim dar corpo a situação, demonstrar seus diversos pontos e singularidades, podendo agora, justamente por ter estudado a situação, utilizar de nossa consciência moral e pensar de modo crítico diante dessa situação e novamente nos questionar, quem é o culpado? Quem deve ser penalizado? Deve haver penalização?

E além disso devemos adicionar mais uma questão a esse fato, quantos anos tem os garotos? Ao longo do filme descobrimos que eles possuem 11 anos, portanto pré-adolescente ou crianças ainda, agora entramos em um novo conflito, julgamos que crianças são completamente donas de seus atos, que medem totalmente as consequências de uma atitude? E ainda mais, será que nesta idade elas têm a capacidade de controlar suas emoções diante de uma situação estressante e de constrangimento como essa?

Para respondermos sobre esta é extremamente rico recorremos ao texto da Chauí no momento em que ela levanta os três grandes princípios que baseiam o pensamento filosófico antigo da vida moral, sendo eles:

"1. Por natureza, os seres humanos aspiram ao bem e à felicidade, que só podem ser alcançados pela conduta virtuosa;

2. A virtude é uma força interior do caráter, que consiste na consciência do bem e na conduta definida pela vontade guiada pela razão, pois cabe a esta última o controle sobre instintos e impulsos irracionais descontrolados que existem na natureza de todo ser humano;

3. A conduta ética é aquela na qual o agente sabe o que está e o que não está em seu poder realizar, referindo-se, portanto, ao que é possível e desejável para um ser humano. Saber o que está em nosso poder significa, principalmente, não se deixar arrastar pelas circunstâncias, nem pelos instintos, nem por uma vontade alheia, mas afirmar nossa independência e nossa capacidade de autodeterminação."

Portanto percebemos que para uma conduta moral se faz necessário um intenso controle de impulsos emocionais brutos gerados pelas circunstâncias para assim agirmos de forma independente e encaminhada pela razão. Porém isto não é algo simples e de fácil execução é necessário viver situações onde se passa praticar a conduta moral e situações onde tenhamos a possibilidade de agir de modo ético, portanto livres de uma opressão.

Assim percebemos que o bem agir necessita de uma educação à priori, ou seja, ela precisa ser praticada e sempre que possível vivida, assim temos que a primeira tarefa para que aconteça uma reação pautada pela consciência moral é uma educação de nosso caráter e de nossa natureza, para que possamos ser capazes de seguirmos um caminho orientado pela razão, fugindo portanto de uma vivência passional, destaca Chauí em sua obra.

Agora que temos claro que a conduta ética é resultado de uma educação e de sua constante prática, será que podemos colocar as crianças que se envolveram nessa circunstâncias em um papel de total responsabilidade por sua atitudes? Será que elas por ainda serem novas no mundo e possuírem uma vontade passional extremada dentro delas, devem ser absorvidas de seus atos? Será que podemos colocá-las como agentes que conseguem prever seus atos e medir suas consequências diante de uma situação complexa, onde é necessário se colocar no lugar do outro? Para respondermos essas questões é preciso perceber que qualquer processo educacional se dá em um longo período de tempo, portanto não podemos dizer que crianças são totalmente responsáveis por seus atos, pois ainda passam por um processo educacional de controle de seus vícios, porém não devemos perder a noção de que grande parte do controle dos apetites, desejos e emoções se dá na infância, elas se encontram em um processo de formação ética constante, assim como os adultos e qualquer indivíduo que está introduzido no meio social.

Então parece que absorve-las totalmente não será frutífero, pois um situações onde poderia se exercitar a conduta ética foi totalmente descartada, da mesma maneira que não será frutífero responsabilizá-las totalmente por seus atos, já que se encontram ainda em um processo de adaptação de suas vontades e emoções a um bem maior que é bem estar de todos, parece que o bem agir é tentar encontrar um meio entre a punição total e a total absolvição, a resolução da circunstância é será frutífera se a tratarmos como mais um dos processos educativos em que essas crianças se encontram, e não as tratar simplesmente como "agressor" e "agredido", afinal de contas a criança "agressora" não é quem ela é apenas por um reação dela, essa criança possui diversas facetas, ela é filho bom ou mal, aluno bom ou mal, um membro da sociedade, uma pessoa de direitos e assim por diante, o que devemos pensar é que seu ato em uma determinada circunstância não diz quem ele é em sua totalidade, isso vale da mesma maneira para a criança "agredida".

Alvaro Queiroz
Enviado por Alvaro Queiroz em 02/07/2019
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