O triunfo da vontade, de Leni Riefensthal

O triunfo da vontade, de Leni Riefensthal

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Há uma forte simbologia que justificou que o julgamento contra os principais líderes nazistas fosse realizado na cidade de Nuremberg. Situada na região da Francônia, ao norte da Baviera, Nuremberg é uma cidade medieval, com muita referência histórica. Em Nuremberg viveu Albert Dürer, um dos mais importantes pintores renascentistas. Em Nuremberg, também, foram realizadas as mais inflamadas reuniões do partido nazista.

A cidade associou seu nome à presença recorrente de Hitler e dos principais líderes nazistas. Nuremberg é triste memória do culto ao Führer e ao frenesi com o qual o nazismo envolveu toda a Alemanha e de algum modo mais particularmente a população local. Essa relação justifica a escolha da cidade como cidade do tribunal. Tem-se uma ligação simbólica e pedagógica, que não pode passar despercebida do ponto de vista historiográfico.

A devoção e a histeria da cidade para com o nazismo estão fotografadas em “O triunfo da vontade”, filme de 1935, dirigido por Leni Riefensthal. A diretora era uma jovem cineasta de 33 anos. Entre outras razões, por conta desse filme, teve seu nome associado ao nazismo até sua morte, em 2003, aos 101 anos. Quando faleceu, observou-se que morria a última pessoa famosa ligada ao nazismo. No fim da guerra permaneceu quatro anos confinada em um campo de concentração dirigido pelos franceses. Definida como “simpatizante” foi colocada em liberdade. Leni não se recuperou do vínculo. Viveu como fotógrafa. Muita ativa, dedicou-se à fotografia submarina, aos 80 anos de idade. Carregou a pecha de ser “a cineasta de Hitler”.

“O triunfo da vontade” é um relato da convenção do partido nazista realizada em Nuremberg em 1934. Mostra-se como um poderosíssimo artefato de propaganda, muito a gosto do partido, que nesse departamento era conduzido pelo enigmático Joseph Goebbels. “O triunfo da vontade” certamente concentra o maior número de suásticas e de estandartes nazistas jamais visto. É um documentário sobre a histeria coletiva. Presta-se para estudos de ciência política, em tema de autoridade derivada do carisma, uma das categorias definidas e estudadas por Max Weber.

Com o benefício do retrospecto, “O triunfo da vontade” pode ser pensado em dois aspectos: a construção do filme, independentemente de seu conteúdo político e ideológico, a par do registro histórico, absolutamente vinculado a seu conteúdo político e ideológico, como indicativo de que o nazismo não foi um fenômeno individual e singular. Houve Hitler, e houve o nazismo, porque houve seguidores de Hitler e do nazismo. E foram muitos. Trata-se de uma intrincada relação que se desdobrou no pós-guerra no contexto dramático da culpa alemã, assunto explorado por filósofos como Karl Jaspers e por juristas como Bernard Schlink. Um sentimento de culpa e de vergonha nacional revelou-se, ao mesmo tempo, como um problema moral e psicológico - - que opôs gerações - - e também como uma questão jurídica, que ensejou reparações.

Quanto ao primeiro aspecto, visto sob um pretenso prisma de neutralidade valorativa, quanto à ideologia, “O triunfo da vontade” é um épico da propaganda. É a comprovação de que o cinema era uma arma de guerra de fortíssimo impacto. Os norte-americanos, por exemplo, também se valeram desse arsenal: Hollywood também foi à guerra. “O triunfo da vontade” constrói-se em torno de um absoluto culto à personalidade de Hitler. Todas as sequências e planos são construídos com o fim de glorifica-lo e de comprovar uma absoluta e inquestionável adesão à sua pessoa.

Não há mensagem objetiva ou esclarecedora de um programa de ação, por parte dos oradores nazistas que desfilam e berram ao longo do filme. “O triunfo da vontade” passa a ser mais um slogan no emaranhado de frases proferidas pelo líder maior e pelo grupo que estava a seu lado. Isoladas, as frases e cenas não fazem o mínimo sentido. Porém, “O triunfo da vontade” sugere uma concepção de conjunto, grandioso e grandiloquente. É uma peça de propaganda. É indício de cinema militante.

O espectador atento tem a impressão de que os planos, quando centrados nos personagens, são fechados, indicando proximidade e intimidade. Oradores são primeiramente fotografados de baixo para cima, o que enfatiza a estatura, que se pretendia imensa. Quando a diretora pretende captar a multidão utiliza a câmara alta, que os franceses denominam de “plongée”, expressão que traduzida sugere “mergulho”. O espectador sente-se um grandioso pássaro, forte, talvez uma águia, que também como um dos símbolos do nazismo está em várias tomadas do filme.

Leni Riefensthal montou as sequências fixando uma narrativa que parte das nuvens e que apoteoticamente se encerra com um discurso inflamado. Do alto das nuvens que se amontoam surge uma figura que a cineasta pretende divinizar: é o Führer. Leni Riefensthal explorou a fixação germânica com a poesia dos céus. Tem-se a impressão de que sugere a presença das Valquírias, deusas guerreiras que conduziam os guerreiros germânicos para o Valhala, um paraíso destinado aos fortes e inquebrantáveis.

Richard Wagner, compositor que a tradição historiográfica aproxima do nazismo, ou que mais propriamente foi apropriado pelo nazismo, traduziu esse efeito simbólico em “A cavalgada das Valquírias” (Ritt der Walküren). Trata-se da parte inicial do terceiro ato de uma ópera (A Valquíria), que faz parte do conjunto melodioso “O Anel dos Nibelungos” (Der Ring des Nibelungen). É uma composição de meados do século XIX. O título do filme, no original, Triumph des Willens, de algum modo pode ser referência a Nietzsche, outro nome da cultura alemã que se teima em associar ao nazismo, para quem o desejo de poder, manifestado na vontade, era condição do triunfo.

Quanto a um segundo aspecto, registro histórico, a histeria é impressionante. Hitler chega no aeroporto, uma multidão o espera. Segue até o centro da cidade, e uma multidão o aplaude pelo caminho. O automóvel para. Mãe e uma criança se aproximam. Entregam um buquê de flores a Hitler. Leni Riefensthal o humaniza. Há crianças por toda parte. Choram. Se escabelam. Parecem criaturas deslumbradas ante um ídolo pop. Pela noite, há tochas e música militar. Tambores.

Na manhã seguinte Leni Riefensthal nos mostra os meninos da Juventude Hitlerista. Divertem-se. Brincadeiras imbecilizantes. Há um culto ao corpo. Na próxima sequência, a população local, em trajes tradicionais, protagoniza um curioso desfile. Apresentam exemplares da colheita. Crianças sorriem. Comem maças. Leni Riefensthal segue com um momento mais solene. É a gigantesca sala de conferências do Partido Nacional-Socialista.

Rudolf Hess, um dos líderes do partido, discursa empolgado. Hess seguiu secretamente para a Inglaterra em maio de 1941, talvez para convencer os ingleses de que Hitler não tinha intenções de agredi-los, isto é, que somente tinha planos bélicos para a Europa Oriental. Esperava ser recebido como um mensageiro da paz. Foi recebido como um criminoso. Hess foi julgado em Nuremberg, condenado à prisão perpétua, falecendo na prisão (Spandau) em 1987, aos 92 anos de idade.

Há observadores estrangeiros no encontro. Leni Riefensthal fotografa em primeiro plano representantes da Itália e do Japão. Alfred Rosemberg, filósofo e guru do nacional-socialismo vocifera contra a imprensa. Julius Streicher, virulento antissemita, fala em pureza racial. Hans Frank, o jurista do regime, fala em justiça do povo como único indicativo de uma justiça verdadeira. Joseph Goebbels, o articulador de toda a propaganda (que por certo está na concepção do filme) lembrava exaltado que o regime deveria ganhar o coração das pessoas. Hitler discursa em seguida, propondo que se valorizasse o trabalhador camponês. Mensagem certa para a área certa. Nuremberg era o centro de uma região agrícola. Uma sucessão de discursos enaltece a personalidade do Führer.

Leni Riefensthal retoma sequências na cidade, intermináveis desfiles. Uma loucura coletiva. Homens, mulheres, velhos, velhas, crianças, adolescentes. A “parada dos passos da guarda negra” parece macabra. Cantam. Mais tambores. Clima de exaltação. Mostra-se a cerimônia de encerramento. Hitler, exaltado ao limite, berra que somente os mais destacados adeptos do nacional-socialismo serão membros do partido. Reafirma os dogmas centrais, que se reduzem na obsessiva ideia de construção de uma grande Alemanha, que deveria pairar acima de tudo (Deutschland über alles). A frase, que presentemente é repudiada na Alemanha, foi retirada de uma antiga letra de música de autoria de August Heinrich Hoffmann, a chamada Canção dos Alemães (Das Lied der Deutschen). A melodia foi adaptada de uma peça que Joseph Haydin compôs em homenagem ao Imperador Francisco I, da Áustria.

“O triunfo da vontade” é um filme que nos comprova que dificilmente se faz cinema pelo cinema. Cinema é também militância. Cinema é também ato de fé. Ainda que, especialmente nesse caso, imagem e mensagem destoem de tudo quanto humanistas pensamos e defendemos.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 19/07/2020
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