Palmeiras na Neve, de Fernando González Molina

Palmeiras na Neve, de Fernando González Molina

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

“Palmeiras na Neve”, de Fernando González Molina, é adaptação para o cinema do romance homônimo, de autoria de Luz Gabas, publicado em 2012. Trata-se do livro de estreia dessa escritora espanhola, que viveu e estudou na Califórnia, nos Estados Unidos, e posteriormente em Zaragoza, na Espanha. A maior parte do drama se desdobra na ilha de Fernando Poo, hoje Malabo, no Golfo da Guiné. Nessa região havia importante produção de cacau, organizada sob o domínio espanhol. É a Guiné Equatorial, região marcada pela violência do explorador europeu.

Não se cuida de um romance de militância ou de problematização da condição colonialista. É um romance, sem pretensões políticas; não é um trabalho engajado. O espectador pode se frustrar (muito) especialmente no começo do filme. Tem-se uma enervante reprodução de estereótipos africanos. Quando a narrativa engata, no entanto, a relação amorosa que está no núcleo do filme se revela lírica e emocionante, justificando as quase duas horas e meia de duração. “Palmeiras na Neve” dever ser assistido como uma narrativa lírica de amor. O espectador deve estar desarmado. Apaixonado, melhor ainda. Desatento, de modo algum.

Quem espera um filme concebido sob a ótica do escravizado-dominado-oprimido perderá seu tempo. No entanto, viverá uma experiência estética singular quem, com paciência, está disposto a perceber as relações entre vida privada e vida pública, bem como entre concepções matrimoniais europeias e concepções matrimoniais africanas. Nesse sentido, não há no filme indicativos de que um adultério – sob uma ótica ocidental – macularia a vida da personagem central. Muito pelo contrário. Não nos esqueçamos que a autora da estória é europeia. Tem-se um enredo europeu sobre a experiência colonial europeia na África. Não esperem uma narrativa que não seja etnocêntrica.

São dois enredos que predicam de um fato único. Dois irmãos (eram espanhóis) vão trabalhar com o pai em uma companhia exploradora espanhola na África. Há muita diferença entre os dois. Um deles, que viveu uma experiência amorosa com uma local, sobressai-se pelo caráter, pela firmeza das atitudes e pelo enfrentamento corajoso de situações aflitivas. Com a morte de um deles – e já estavam bem mais velhos, vivendo na Espanha – uma sobrinha descobre casualmente um diário e alguns bilhetes. Intrigada, resolve visitar o local onde seu pai e tio estiveram. Desvendará, assim, enigmas que marcavam a família. Vai também conhecer um pouco da experiência vivida, principalmente pelo tio. É uma narrativa de descoberta.

“Palmeiras na Neve” é uma estória de tensões, que são permanentes na experiência humana. Nesse sentido, abstraídos aspectos pontuais do enredo, tem-se uma problematização universal de nossa condição. O título, “Palmeiras na Neve”, é um oxímoro. Isto é, uma impossibilidade topográfica, botânica e ecológica. Palmeiras não crescem na neve, e também não há neve em áreas onde proliferam palmeiras. Porém, a condição humana (e o amor também como componente dessa experiência) transcende a limites naturais, não se esgotando na geografia. O que “Palmeiras na Neve” nos pergunta é se limites culturais negariam a potência do afeto. Idade, origens sociais, condições etnográficas e religiosas estariam nesse conjunto de limitações. As lágrimas que tomam alguns espectadores mais sensíveis respondem à pergunta.

Palmeiras não crescem nas neves. Porém um europeu e uma africana podem se amar. Mais. Quebrando um estereótipo abominável (que aceitaria o europeu com a africana, e que rejeitaria o africano com a europeia) em “Palmeiras na Neve” realiza-se essa última possibilidade, em cena de intenso lirismo, que se desdobra sob uma cachoeira. É de tirar o fôlego.

Há certa “mea culpa” europeia que frequenta recorrentemente esse tipo de enredo. É o caso da metáfora da sífilis – como um ingrediente patológico da desgraça que os europeus levaram para os novos mundos. Sente-se repulsa para com a violência que os brancos praticam na região, na busca do lucro exponencial, e do prazer carnal a qualquer custo. As cenas de insinuação de prostituição me pareceram abomináveis e dispensáveis. Por outro lado, e agora vale a pena, há uma cena na qual o apaixonado europeu pede desculpas à africana violentada, e o faz em desagravo a todas as mulheres. Bem entendido, não fora ele quem praticara a violência.

Em “Palmeiras na Neve” tem-se também tensões culturais evidenciadas com inteligência. Qualquer acusação de adultério fica fragilizada na medida em que se percebem dois tipos de casamento na cultura local. Um deles decorre da compra da virgindade, conta com proteção legal, e segue o ritmo de escolhas práticas. O outro radica no amor, não é válido perante a lei, porém sugere fidelidade e lealdade, sobremodo no cuidado recíproco. É esse que conta na intimidade da consciência de quem verdadeiramente ama.

Quem gostamos de cinema encontramos figuras conhecidas. Kilian, o personagem central, protagonizado por Mario Casas, está em “O fotógrafo de Mauthausen”. Jacobo, o irmão abominável, representado por Alian Hernández, está em “Oito apelidos catalães”. Adriana Ugarte, no papel de Clarence, está em “Julieta”, um delicioso filme de Pedro Almodóvar. Daniela Bisilia, a linda guineense, protagonizada por Berta Vásquez, nasceu em Kiev, na Ucrânia, mas conta com nacionalidade espanhola. Seu pai é etíope, e sua mãe ucraniana. Já ganhou muitos prêmios na Europa.

Apreciado como uma narrativa romântica sem maiores pretensões historiográficas, de crítica ao colonialismo, “Palmeiras na Neve” é um filme que se sustenta nos limites da especulação das possibilidades de afeto. O espectador ainda ganha uma fotografia exuberante, um argumento preservacionista necessário (nas duas cenas das tartaruguinhas indo para o mar) e pistas para uma questão existencial que o filme nos coloca, em relação à responsabilidade de nossas escolhas amorosas.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 09/01/2021
Código do texto: T7156143
Classificação de conteúdo: seguro