Masculinidade*

Percebo o ambiente de aeroporto como algo frio, impessoal e restritivo daquilo que sou e posso fazer, o que sempre me faz lembrar de Spinoza, para quem “a felicidade é aumento de nossa potencialidade”, de nosso poder. Por não poder muita coisa nos embarques, desembarques, escalas e conexões, tento suprir as restrições dos aeroportos da melhor maneira possível.

Nos últimos dias me vi nessa circunstância várias vezes. E, como sempre, procuro um livro para me servir de linha de respiro. Logo no primeiro aeroporto, fui à livraria à cata de algo que pudesse me fazer respirar. Encontrei a obra A grande aventura masculina: como encontrar seu coração selvagem e descobrir uma vida de desafios e emoções, de autoria do escritor norte-americano John Eldredge, traduzido por Emirson Justino e publicado no Brasil pela Editora Thomas Nelson do Brasil, em 340 páginas, agora em 2007.

Ao ler as partes breves da obra (orelhas, quarta capa, sumário e toda a introdução), fiquei com um pé atrás por ver que o fundamento cristão estava lá, a garantir a ossatura da obra. Mas a tentação de saber que tal “aventura masculina é essa?” me fez ir ao caixa, pagar pelo livro e começar a lê-lo imediatamente.

À medida que progredia nos parágrafos, fui compreendendo que o autor trabalha com uma espécie de “arquétipos” do masculino, os quais, solidariamente, constituiriam o que nós ocidentais entendemos por masculinidade. Esses arquétipos seriam: Infância, Caubói, Guerreiro, Amante, Rei e Sábio. Segundo ele, cada arquétipo corresponde a uma fase da vida masculina, mas não necessariamente atrelado a uma idade específica:

- Infância. É a fase do deslumbramento e da exploração. Época de ser o Filho Amado. Período para o garoto sentir-se a menina dos olhos do pai. Tempo de afirmação, de busca de validação e valorização; de sentir-se um prazer para o genitor. Nessa fase o amor do pai é fundamental.

- Caubói. Essa fase começa por volta dos treze anos de idade. É momento de transição e pode se estender até os vinte anos. É quando o menino aprende as lições do campo. Aventura-se e experiencia as mais variadas provas que o mundo circundante oferece. Por isso é um tempo de trabalho duro, pois é nesse período que ele aprende a caçar, jogar bola, domar um cavalo, tem suas primeiras aquisições materiais. O menino vê aí um horizonte aberto à sua frente. Vai para a floresta. Viaja. Vira guarda. Torna-se bombeiro. É um tempo de ousadia e perigo, durante o qual ele aprende aquilo de que necessita.

- Guerreiro. Dos vinte e poucos até os trinta anos de idade é que surge o jovem guerreiro. Segundo o autor, “Tenha seis ou sessenta anos, um homem sempre será um Guerreiro, pois ele é a imagem de um Deus guerreiro (veja Êxodo, 15:3)” (p. 28). O Guerreiro tem causa. Deve encontrar em si um rei. É quando estuda direito, torna-se missionário. Depara frente a frente com o mal e aprende a derrotá-lo. Disciplina-se. Pode tornar-se professor de matemática. Luta pelos corações jovens. Descobre para si uma missão. Aprende a lutar contra o reino das trevas. “Para ser homem, ele deve aprender a viver com coragem, a agir, e a lutar” (p. 28).

- Amante. É nessa fase precedente que ele se descobre Amante. “Um Amante vem para oferecer sua força a uma mulher, não para obtê-la dela” (p. 29). Por isso essa fase está basicamente relacionada a uma mulher. Aí o jovem descobre o Caminho do Coração. A poesia e a paixão mostram-lhe melhor a verdade do que a razão. Desperta-se para a beleza, para a vida. Dá de cara com a música e a literatura. Igual a Davi, o jovem torna-se romântico. É o tempo em que ele também encontra Deus, o verdadeiro pai.

- Rei. O estágio do encontro consigo na condição de rei vem depois de todas as fases anteriores. Segundo Eldredge, “A crise de liderança em nossas igrejas, nos negócios e no governo deve-se em grande parte a este dilema: os homens receberam poder, mas estão despreparados para lidar com ele. O tempo de governar é um enorme teste de caráter, pois o rei será duramente provado ao usar sua influência com humildade, para benefício de outros. Aquilo que chamamos de crise da meia-idade normalmente é caracterizado por um homem que possui uma certa quantidade de dinheiro e influência e usa isso para voltar e recuperar aquilo que perdeu como Filho Amado (ele compra brinquedos para si) ou como caubói (ele sai em aventuras). Ele é um homem não desenvolvido, não iniciado” (p. 29). Mas a autoridade do rei e o privilégio que ele tem não devem servir para a conquista de conforto pessoal. Ser presidente de uma empresa, comandante de uma divisão, pastor de uma igreja, técnico de futebol de um time constituem condição para ele governar sobre um reino. Nessa fase, portanto, o Rei deve cercar-se da companhia de jovens guerreiros.

- Sábio. É o pai de cabelos grisalhos. Rico em conhecimento. Farto em experiência. Tem a missão de acompanhar os outros. Seu reino encolhe, pois os filhos vão saindo de casa. Ele abandona o seu cargo de presidente. O sustento do sábio vem da poupança e investimentos que fez ao longo da vida. É o ancião junto aos portais. Ele pode ser um presbítero ancião. Pode trabalhar na diretoria das instituições educacionais. Monitora Reis. É o tempo para uma grande, talvez a maior, contribuição que o gênero masculino pode oferecer à humanidade.

Li essa espécie de resumo aí, que Eldredge registra entre as páginas 26 e 30, como a ante-sala de toda a obra. E é. Nomeei o pensamento do autor como A Mitologia Cristã Norte-Americana de Eldredge Sobre a Masculinidade. É um jeito de construir uma proposta de percurso para a conquista e vivência da masculinidade.

Como todo texto que expressa o discurso taxionômico, aí estão os trilhos pelos quais o ser masculino pode percorrer. Mas eu, como disse no início, acredito em linhas de respiro. Talvez o que penso não coincida exatamente com o que li.

Contudo, ficou para mim a forte impressão que a masculinidade está intimamente ligada à relação com o pai. Aí, fui reler meus próprios textos sobre meu pai. Concluí que essa busca exerce forte influência na minha trajetória existencial.

Lembrei-me que Sartre disse, certa vez, que se ele, Sartre, não tivesse perdido o pai aos sete anos, a presença paterna o teria sufocado. Mas, Sartre, será que adianta essa ilusão quando sabemos que o arquétipo do Pai continua em nós?

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*Do meu blog FiloEducação

=> http://filoeducacao.blogspot.com/

30.Nov.2007.