Eu li “A Privataria Tucana”

Wilson Correia

“A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão” (Ítalo Calvino. ‘Por que ler os clássicos’. Trad. N. Moulin. São Paulo: Cia. das Letras, 1981, p. 12).

“Interpretar as interpretações emprega mais trabalho do que interpretar os textos, e existem mais livros sobre livros do que sobre qualquer outro assunto: tudo o que fazemos é glosar uns aos outros. Há abundância de comentários, mas escassez de autores. Aprender a entender os entendidos se tornou o principal e mais celebrado aprendizado da nossa época; não reside nisso o fim último dos nossos estudos?” (Montaigne. ‘The complete essays’. Trad. M. A. Screech. Londres: Penguin, 1991, p. 1212).

“Um jornalista é um homem que sabe explicar aos outros aquilo que ele próprio não entende” (Otto Maria Carpeaux. ‘Prosa política e filosófica de Heinrich Heine’. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 6).

Comentar um livro sem tê-lo lido é como não ter pernas e querer integrar os pelotões da Corrida de São Silvestre. Ler apenas ‘livros’ que falam de outros livros e se contentar em entender a interpretação dos interpretadores é como querer ver com o olho alheio.

Por esses motivos, fui direto à fonte. Entendo como absurdas as atitudes de gente que não leu o livro do jornalista Amaury Ribeiro Jr., “A Privataria Tucana” (Geração Editorial) e aparece aqui, ali e acolá dizendo cobras e lagartos sobre a obra.

O título do livro (com recorte cronológico no governo FHC, 1994-2002) está explicado na página 41: “De forma mais clara, o que houve no Brasil não foi privatização mas ‘propinização’. A versão local da práxis foi batizada como privataria pelo jornalista Elio Gaspari, ao casar, com felicidade, os vocábulos ‘privatização’ e ‘pirataria’”.

Esse tema, aliás, já havia sido consistentemente desenvolvido por Aloysio Biondi na obra “O Brasil privatizado: um balanço do desmonte do Estado”, publicado em São Paulo pela Fundação Perseu Abramo em 1999, o qual, na página 27, afirma: “Segundo o governo, as privatizações estão trazendo dólares para o país. Na prática, elas criaram saídas fantásticas de dólares, com a ampliação do ‘rombo’ da balança comercial e das remessas para o exterior. Pior ainda: essas sangrias podiam ser parcialmente compensadas se os ‘compradores’ trouxessem capitais deles próprios, tanto para comprar as estatais, no momento do leilão, como depois, para realizar os investimentos previstos para a ‘privatizada’. Nem isso acontece, por incrível contradição da política do governo”.

Isso é pirataria ou a nossa “privataria”. Ora, um pirata, sabemos, é aquele que cruza os mares para roubar navios. É o corsário que enriquece à custa de terceiros, quase sempre valendo-se da força, malandramente namorador do alheio e que seduz toda e qualquer riqueza para fazer-se pançudo à custa do suor que não saiu de sua própria testa.

Foi exatamente isso o que a história conta ter havido no Brasil durante o governo FHC. E, antes de me preocupar com as facções envolvidas nesses ataques à coisa pública de nosso país (elas sempre são cúmplices de seus mal feitos, simulando e dissimulando amizades e inimizades), o que me levou ao livro em questão foi o interesse em saber como os homens públicos brasileiros tratam do e mercadejam com o bem comum.

Não sei se o autor de “A Privataria Tucana” tentou explicar o que nem ele entende, mas sei, isso sim, que a cidadania brasileira e a vida republicana entre nós estão apenas engatinhando. Ainda somos barrigas verdes e muito desafio nos aguarda para fazermos desses nossos Brasis uma verdadeira nação.

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*Wilson Correia, Doutor em Filosofia da Educação pela UNICAMP, é Adjunto em Filosofia da Educação no Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. É organizador do livro “Formando Professores: caminhos da formação docente”. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2012.