A obra:
BAKHTIN, Mikhail. Epos e romance: sobre a metodologia do estudo do romance. In: Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução por: BERNADINI, Aurora F. et al. 4 ed. São Paulo: UNESP-HUCITEC, 1998. p. 397-428.

O autor:
Mikhail Mikhailovich Bakhtin (russo: Михаи́л Миха́йлович Бахти́н) (17 de novembro de 1895, Oriol — 7 de março de 1975, Moscou) foi um filósofo e pensador russo, teórico da cultura europeia e as artes. Bakhtin foi um verdadeiro pesquisador da linguagem humana, seus escritos, em uma variedade de assuntos, inspiraram trabalhos de estudiosos em um número de diferentes tradições (o marxismo, a semiótica, estruturalismo, a crítica religiosa) e em disciplinas tão diversas como a crítica literária, história, filosofia, antropologia e psicologia. Embora Bakhtin fosse ativo nos debates sobre estética e literatura que tiveram lugar na União Soviética na década de 1920, sua posição de destaque não se tornou bem conhecida até que ele foi redescoberto por estudiosos russos na década de 1960. É criador de uma nova teoria sobre o romance europeu, incluindo o conceito de polifonia em uma obra literária. Explorando os princípios artísticos do romance, François Rabelais, Bakhtin desenvolveu a teoria de uma cultura universal de humor popular. Ele é dono de conceitos literários como polifonia e cultura cômica, cronotopo, carnavalização, menippea (um eufemismo em relação à linha principal e levando o desenvolvimento do romance europeu no "grande momento"). Bakhtin é autor de diversas obras sobre questões teóricas gerais, o estilo e a teoria de gêneros do discurso. Ele é o líder intelectual de estudos científicos e filosóficos desenvolvidos por um grupo de estudiosos russos, que ficou conhecido como o "Círculo de Bakhtin" (Wikipédia).

 

A leitura de “Epos e romance” de Mikhail Bakhtin, oferece a ideia de que o estudo do romance, enquanto gênero, caracteriza-se por problemas específicos, pois o romance é inacabado e o único gênero por se estabelecer.

Eis suas palavras: “[...] o romance é o único gênero por se constituir, e ainda inacabado. [...] Os outros gêneros enquanto tais, isto é, como autênticos moldes rígidos para a fusão da prática artística, já são conhecidos por nós em seu aspecto acabado. [...] Encontramos a epopeia não só como algo criado há muito tempo, mas também como um gênero já profundamente envelhecido [...] com uma ossatura dura e já calcificada.” (BAKHTIN, 1998, p. 397).

Ao lado dos grandes gêneros, afirma Mikhail Bakhtin (1998, p. 398): “[...] só o romance é mais jovem do que a escritura e os livros, e só ele está organicamente adaptado às novas formas da percepção silenciosa, ou seja, à leitura.” O romance é o único gênero nascido e nutrido pela Era Moderna, na história do mundo (BAKHTIN, 1998, p. 398). Apresenta-se como uma entidade de outra natureza batalhando por sua superioridade absoluta na literatura. Mikhail Bakhtin (1998, p. 398) refere-se ao mais destacado livro sobre a história do romance antigo – de Erwin Rohde.

O nominado autor explicita que o romance se acomoda mal com os outros gêneros: “O romance parodia os outros gêneros (justamente como gêneros), revela o convencionalismo das suas formas e da linguagem, elimina alguns gêneros, e integra outros à sua construção particular, reinterprentado-os e dando-lhes um outro tom. [...] Na época da supremacia do romance [segunda metade do século XVIII], quase todos os gêneros resultantes, em maior ou menor grau, “romancizaram-se” [...]. Na época da escalada criativa do romance [...] a literatura é inundada de paródias e travestimentos de todos os gêneros elevados [...].” (BAKHTIN, 1998, p. 399)

O romance expõe o conflito de gêneros mais profundos e mais históricos, como por exemplo o conflito de escolas e de movimentos literários existente, mas trata-se de um feito periférico e historicamente íntimo.

Nas palavras de Mikhail Bakhtin, o romance tornou-se o principal personagem do drama da evolução literária na era moderna, justamente porque, melhor que todos, expressa as tendências evolutivas do Novo Mundo. Nasce nessa época e em tudo se lhe assemelha.

Eis alguns exemplos dos “índices de gênero”: o romance é um gênero de muitos planos, mas existem excelentes romances de um único plano; o romance é um gênero que implica um enredo surpreendente e dinâmico, mas existem romances que atingiram o limite da descrição pura; o romance é um gênero de problemas, mas o conjunto da produção romanesca corrente apresenta um caráter de pura diversão e frivolidade, inacessível a qualquer outro gênero; o romance é uma história de amor, mas os maiores modelos do romance europeu são inteiramente desprovidos do elemento amoroso; o romance é um gênero prosaico, mas existem excelentes romances em verso (BAKHTIN, 1998, p. 401-402).

A confrontação do romance com o epos erige-se, por um lado, como um aspecto da crítica de outros gêneros literários e, por outro lado, sob o objetivo de elevar sua significação como gênero mestre da nova literatura. No que tange à evolução do romance, sabe-se que o personagem do mesmo não deve ser heroico e também não deve ser poético no sentido pelo qual os outros gêneros literários se apresentam como tais (BAKHTIN, 1998, p. 403).

Mikhail Bakhtin (1998, p. 403-404) aponta três particularidades fundamentais que distinguem o romance de todos os gêneros restantes: 1. A tridimensão estilística do romance ligada à consciência plurilíngue que se realiza nele; 2. A transformação radical das coordenadas temporais das representações literárias no romance; 3. Uma nova área de estruturação da imagem literária no romance, justamente a área de contato máximo com o presente (contemporaneidade) no seu aspecto inacabado. Os três tipos de particularidades do romance ligam-se organicamente entre si, e todos estão condicionados por uma determinada crise na história da sociedade europeia: sua saída das condições de um estado socialmente fechado, surdo e semipatriarcal, em direção às novas condições de relações internacionais e de ligações interlinguísticas. A pluriformidade das línguas, das culturas e das épocas, revelou-se à sociedade europeia e se tornou um fator determinante de sua vida e de seu pensamento.

O plurilinguismo, a primeira singularidade estilística do romance, sempre teve o seu espaço, sendo mais antigo do que o unilinguismo canônico e legítimo. O plurilinguismo foi constituído e canonizado entre os gêneros. A epopeia apresenta três traços constitutivos: o passado nacional épico, a lenda nacional e o mundo épico isolado da contemporaneidade, do tempo do autor, pela distância épica absoluta (BAKHTIN, 1998, p. 405). O mundo da epopeia é o passado heroico nacional, é o mundo das origens e dos fastígios da história nacional, o mundo dos pais e ancestrais, o mundo dos primeiros e dos melhores. A epopeia, em tempo algum, foi um poema sobre o presente, sobre o seu tempo e sim, desde o seu início, um poema sobre o passado.

Como se pode observar, em Mikhail Bakhtin, o passado incondicional é o objeto da epopeia. O mundo épico é inteiramente acabado, não só como ocorrência real de um passado longínquo, mas também no seu sentido e no seu valor: não se pode modificá-lo, nem reinterpretá-lo e nem reavaliá-lo. A lenda também mantém a sua importância nos gêneros nobres e acabados, ainda que o seu papel, nas condições da criação individual livre, se torne mais convencional do que na epopeia. Quanto ao romance grego, segundo o articulista, exerceu uma forte influência no romance europeu, precisamente no período barroco, na época em que iniciava a elaboração da teoria do romance e quando se refinava e consolidava o próprio termo “romance”.

Mikhail Bakhtin esclarece o plano da representação cômica (satírica), como um plano especifico, tanto em relação ao tempo, como também ao espaço. No seu entendimento, o objeto cômico pode ser representado, atualizado: o objeto do jogo a simbólica literária original do espaço e do tempo: o alto, o baixo, o frontal, o traseiro, o anterior, o posterior, o primeiro, o ultimo, etc. A lógica literária da análise, do desmembramento e da morte é preponderante (BAKHTIN, 1998, p. 414).

Mikhail Bakhtin (1998, p. 414-416) apresenta esses que podem ser considerados ancestrais do romance: “os diálogos socráticos” e a “sátira menipeia”. A sátira menipeia é dialógica, cheia de paródias e de travestizações, dotada de numerosos estilos, e que não teme sem mesmo os elementos do bilingüismo. De acordo com o autor, nas visões satíricas do além-túmulo da sátira menipeia, as personagens do passado absoluto, os atuantes das diversas épocas do passado histórico e os contemporâneos vivos colocam-se frente a frente, de maneira familiar para conversar, e até mesmo para brigar.

O romance ata-se aos elementos do presente inacabado que não o deixam se enrijecer. O romancista gravita ao derredor de tudo aquilo que não está acabado, podendo aparecer no campo da representação em qualquer atitude, pode representar os momentos reais da vida ou fazer uma alusão, pode intrometer na conversa dos personagens e também polemizar abertamente com os seus inimigos literários, entre outros (BAKHTIN, 1998, p. 417).

Segundo Mikhail Bakhtin (1998, p. 420), a profecia é própria da epopeia, a predição é própria do romance. Esse, tem uma problemática nova e específica; seus traços distintivos são a reinterpretação e a reavaliação permanentes. O centro da dinâmica da percepção e da justificativa do passado é transferido para o futuro. A modernidade do romance é indestrutível, modernidade essa relegada a uma avaliação injusta dos tempos. O romance pode servir como documento para a previsão dos grandes destinos, ainda longínquos, da evolução literária.

Com referência à representação do homem na literatura, Mikhail Bakhtin (1998, p. 423) ensina que, na epopeia, o homem dos grandes gêneros distanciados é o homem de um passado absoluto e de uma representação longínqua. Como tal, é inteiramente perfeito e terminado. Entre a sua verdadeira essência e o seu aspecto exterior não há a menor discrepância, não há ainda a confissão-auto-acusação. Aquilo que se representa coincide com aquilo que é representado. O homem épico está igualmente desprovido de iniciativa linguística; o mundo épico conhece uma só e única língua constituída. No romance, afirma o autor, a destruição da distância épica, a passagem da imagem do homem do plano distante para a zona de contato com um evento inacabado do presente (e, por conseguinte, também do futuro) conduz a uma reestruturação radical da representação do homem no romance (e, portanto, em toda literatura) (BAKHTIN, 1998, p. 424). O homem deixou de coincidir consigo mesmo e, portanto, também o enredo deixou de revelar o homem por inteiro. Característica é a estrutura literária das máscaras populares estáveis, que têm exercido enorme influência na formação da representação humana no romance, nos estágios mais importantes da sua evolução (os gêneros sério-cômicos da Antiguidade, Rabelais, Cervantes). Um dos principais temas interiores do romance é justamente o tema da inadequação de um personagem ao seu destino e à sua situação (BAKHTIN, 1998, p. 425). Sempre resta um excedente de humanidade não realizado, sempre fica a necessidade de um futuro e de um lugar indispensável para ele. Esta desintegração da entidade épica (e trágica) do homem no romance vai de encontro aos pródromos de uma entidade nova e complexa, um estágio mais elevado da evolução humana. O personagem do romance, como regra, é um ideólogo em maior ou menor grau (BAKHTIN, 1998, p. 426).

Para encerrar seu discurso, Mikhail Bakhtin (1998, p. 428) salienta que o romance, desde o princípio, foi feito de uma massa diferente daquela dos outros gêneros acabados, porque é de natureza diferente de toda Literatura. O processo de evolução do romance não se concluiu, pela extensão insólita do nosso mundo, pelo extraordinário crescimento das exigências, pela lucidez e pelo espírito crítico, traços esses, que determinam o desenvolvimento do romance.

 
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 24/04/2015
Reeditado em 22/11/2016
Código do texto: T5218216
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