A FORÇA DE "O CAÇADOR DE PIPAS"

“EU ME TORNEI O QUE SOU HOJE aos doze anos, em um dia nublado e gélido do inverno de 1975.” Essa é a primeira frase do romance “O caçador de pipas”, de Khaled Hosseini, que nasceu em Cabul, capital do Afeganistão, morou em Paris durante muitos anos e desde 1980 vive nos Estados Unidos, onde se formou em medicina pela Universidade da Califórnia. Pode ser que seja essa frase inicial do romance que tenha fisgado o leitor e colocado “O caçador de pipas” no topo da lista de livros mais vendidos no mundo nos últimos três anos. É uma frase que funciona como um fio condutor da trama. “O caçador de pipas”, além de ter uma excelente divulgação editorial em todo o mundo, é um livro que recebe recomendação do leitor, opinião que vai correndo de boca em boca, nas mais diversas línguas faladas no mundo. É um romance que passa de mão em mão e acaba por ter um número de leitores muitas vezes superior ao número de compradores. Não é um texto cheio de frases feitas com palavras catadas entre as melhores e nem narra uma fantástica história de amor ou um belo conto de fadas. É um texto que fala de muitas dores, de alguns amores, mas principalmente de muitas histórias.

Amir é o narrador que sabe das coisas e também personagem do livro. É filho de um homem poderoso de Cabul, Afeganistão, onde se passa a maior parte da trama. Sabe ler, escrever, contar histórias, ser superior, dar ordens. Hassan, um amigo de infância, desde o engatinhar dos dois, é filho de um empregado do pai de Amir. É uma pessoa íntegra, leal, sincera, cordial, sábia. Os dois pertencem a etnias diferentes, a religiões diferentes, mas dividem todas as brincadeiras nos primeiros anos de vida. São unha e carne em todos os momentos. Hassan, no entanto, costuma assumir o mal feito do amigo e Amir as ovações. Em comum entre os dois, há o fato de ambos terem perdido a mãe quando ainda eram bebês e serem criados por figuras masculinas, meio a afazeres masculinos.

Não quero quebrar o encanto de quem ainda vai ler esse livro, antecipando trechos, pois quem gosta de leitura, se ainda não leu, vai acabar lendo-o, de tanto ouvir dizer que a história é emocionante, maravilhosa, inesquecível, impressionante, triste, comovente, inovadora, brilhante, envolvente, etc. Tão envolvente que, passados dias, meses, e até ano, cenas e cenários do romance nos vêm a lembrança. Fico matutando. O que será que leva o leitor a ficar preso nessa narrativa de Amir, de Khaled Hosseini? Concluo que seja porque ele não conta uma única história. Um fio, que vai percorrendo todo o texto, desponta num dia gélido e nublado de 1975 e vai tecendo e interligando histórias e fatos ocorridos antes dessa data com outros sucedidos depois dela.

Enquanto o narrador-personagem Amir explica como se tornou o que é em uma determinada data, ele narra diversas histórias: a história oficial e não oficial de seu país e muitas outras. Durante a narrativa, a realidade permeia com a ficção: a invasão dos soviéticos no Afeganistão, o fim do comunismo, a queda da monarquia na década de 70, as diferenças étnicas, os talibãs, o terror, a marcante divisão de classes e etnias daquele país, os costumes tão diferentes dos que são conhecidos no mundo ocidental. Além de narrar histórias, Amir faz metalinguagem, induzindo o leitor a refletir sobre como se constrói a ficção.

Bem no início do texto, Amir revela que sempre lê histórias para Hassan, o qual não sabe decifrar os códigos da escrita e diz que o amigo aprecia lhe ouvir. Comenta ele que, um dia, resolve contar a Hassan uma história diferente da que estava no livro que finge ler e que ele, que não lê, não percebe que está sendo enganado e, no final, acaba lhe dizendo que a história é muito boa. Por causa disso, Amir fica animado e, na mesma noite, escreve sua primeira história: “Certa vez, um homem pobre e feliz, que raramente chorava, encontrou um cálice mágico. Passado um tempo, ele descobriu que, se chorasse, cada lágrima que caísse dentro daquele cálice seria transformada em uma pérola e assim, ele poderia se tornar um homem muito rico. A partir de então, tanto fez para ficar triste e chorar que, um dia, acabou se vendo sentado numa montanha de pérolas, com uma faca na mão, inconsolável, vertendo lágrimas dentro da cálice e carregando nos braços o cadáver de sua amada esposa.”

Amir, ao terminar de escrever sua história mostra-a a um amigo do pai, o qual lhe escreve um bilhete cheio de elogios. Ele fica tão orgulhoso que resolve, nesse mesmo dia, contá-la a Hassan, informando-lhe ser uma história de sua autoria. O amigo ouve-a com enlevo e lhe diz que sua narrativa é muito boa e que ele seria um grande e famoso escritor. Porém, expressa o desejo de saber um pouco mais e faz a Amir algumas perguntas: Por que o homem mata a esposa? Por que ele precisa estar triste para derramar lágrimas, será que não pode simplesmente cheirar uma cebola? Ao ouvir os questionamentos de Hassan, Amir se sente abalado. Havia deixado um furo na sua trama. E logo Hassan, que não sabe ler, que nunca havia escrito nenhuma palavra em sua vida, lhe aponta esse desacerto?

Essa história do homem das pérolas e a outra possibilidade sugerida por Hassan me leva de novo a pensar no fio do texto que conduz toda a narrativa de “O caçador de pipas”. Quanto antagonismo há entre os dois personagens apesar de viverem sempre juntos. Quanta diferença nos traços das personalidades dos dois. Durante toda a narrativa percebe-se essas dissonâncias. E quanta diversidade de sentimentos, comportamentos há entre os seres humanos em geral........ Parece até que o fio sai de dentro do texto e pega o leitor em cheio. Amarra. Cativa. Captura. E o leitor vê suas dores, seus podres, seus fracassos, sua covardia, suas omissões e até mesmo suas venturas sendo postos ao vivo através dos sentimentos de Amir, de Hassan. Num momento o leitor é Amir, noutro é Hassan.

Após a devassa, torna-se necessário o exorcizar, o soltar os demônios, o voltar da calma, a remissão da pena, o indulto, a redenção. Isso vem através do perdão. O personagem tem que se perdoar, perdoar o outro. O leitor também. É a saída. Cada um de nós pode ter tido o seu dia nublado e gélido de um ano qualquer. Khaled Hosseini é perspicaz. Bem no final do romance ele coloca na fala de Amir um dos mais belos discursos que até hoje já li a respeito do perdão: “... fiquei imaginando se era assim que brotava o perdão, não com as fanfarras da epifania, mas com a dor juntando as suas coisas, fazendo as trouxas e indo embora, sorrateira, no meio da noite”. Só mesmo o perdão para dar o ponto de honra no texto de nossas vidas, no texto das vidas de Amir e Hassan, que um dia caçaram pipas.

Terezinha Pereira
Enviado por Terezinha Pereira em 28/07/2007
Código do texto: T583169