Diário das minhas leituras/3

23/08/2018 – ADA NEGRI

Ah, que coisa mais linda é o conto “O seu direito”, da italiana Ada Negri! Uma mãe e sua filha, criança que, por um acidente com álcool, tem o rosto desfigurado. Todo o drama psicológico dessa mãe ao lidar com uma filha nessas condições, todas as variações do seu temperamento, que incluem até mesmo a hipótese de matar a filha e a si mesma, a fim de preservá-la e permanecer eternamente ao seu lado. O devastador impacto que o acidente representa para o seu casamento e para o relacionamento da mãe com seu outro filho. O desejo de liberdade da filha quando se torna maior. É tudo tão lindo, tão forte, tão intenso, tão bem escrito. E estava complemente escondido dentro do “Maravilhas do conto feminino”.

23/08/2018 – GEORGE SAND

No mesmo livro, há um belíssimo conto da George Sand chamado “A nuvem rosada”. Faz parte dos contos que ela escreveu para os seus netos. Em tese, portanto, são contos voltados para crianças. Mas como faz bem aos adultos esse conto! Cheio de encanto e magia, não é, nem por isso, um conto bobinho. É o tipo de história que eu gostaria de contar a algum filho que eu tivesse. É o tipo de história que eu gostaria que ele lesse durante a infância. É o tipo de história que desperta a criança que eu sou.

24/08/2018 – MARIA, RAINHA DA ROMÊNIA

Outro grande momento do “Maravilhas do conto feminino” é o conto de Maria, Rainha da Romênia, que se chama “A visão de Vasile”. Há uma situação na trama que me pareceu bastante criativa. Homens de guerra, conduzindo prisioneiros, sofrem com um frio aterrador e não encontram madeira que os aqueça. Um dos soldados sai e descobre uma cruz sobre uma sepultura. A cruz era de madeira e foi a única coisa que ele achou, pois, além de a região ser deserta, era noite. Ele traz a cruz para o acampamento e a gente já começa se pensar: será possível que vão queimar a cruz mesmo? É interessante a discussão que se dá sobre se deveriam queimar e assim acabar com o frio que os devorava ou se isso não era algo digno de fazer com semelhante objeto, ainda que disso lhes sobreviesse a morte. Também há, através do personagem principal, interessantes questionamentos a respeito da vida e da guerra. Não falta também um toque místico à trama, mas o resultado, de maneira geral, me pareceu bastante agradável e bonito.

27/08/2018 – PEARL S. BUCK

Mas o que falta para que a Pearl S. Buck seja tão celebrada quanto as outras escritoras mulheres? Por que é quase só se fale em Jane Austen e nas irmãs Brontë, que são realmente maravilhosas, mas não se coloca no mesmo patamar uma mulher como Pearl S. Buck, que, além do mais, ainda ganhou um Nobel? Parece que houve uma época, até alguns anos atrás, que ela fez sucesso mesmo, foi bem conhecida e divulgada em diferentes países, mas esse período já passou e ela parece, pelo menos aqui no Brasil, ter caído num muito imerecido ostracismo. Você não vê o nome dela sendo citado sequer em blogs voltados para mulheres e que se dispõem a listar escritoras mulheres que merecem ser lidas. E a Pearl. S. Buck merece ser lida, e como merece! Todos esses louvores são frutos apenas de duas obras que eu li. Em 2016, encantei-me perdidamente pelo romance “A boa terra”. Que livro bem escrito, delícia de história. E agora escrevo após o arrebatamento que foi ler o conto “O velho demônio”. Impressionante como o conto mantém o ritmo do começo ao fim, não tem aquela parte narrativa ou descritiva que geralmente a gente (eu, pelo menos) acha mais chato: é atrativo e interessante do começo ao fim. Pearl tem ainda o mérito de tornar a China e o Oriente mais compreensíveis para nós, pobres seres ocidentalizados, mas ela faz mais do que isso, ela ainda torna esses lugares e as pessoas que lá vivem admiráveis aos nossos olhos. Nós, na nossa ignorância, achamos que chineses e japoneses são as mesmas coisas, jamais iria nos ocorrer que essas duas potências fossem tão diferentes a ponto de uma não compreender a língua da outra e de elas entrarem em guerra entre si. Pois é justamente um conflito como esse que Pearl narra, de maneira notável, em uma aldeia chinesa onde nunca se viu um japonês e nunca se viu um avião. Pearl capta muito bem detalhes, pensamentos e sensações dos personagens e os coloca em uma prosa que não precisa apelar para as frases de efeito: sua força está na própria narração dos eventos. Que coisa boa é conhecer a velhinha que dá vida a esse conto. Ao mesmo tempo em que expõe toda a brutalidade e a irracionalidade das guerras em geral, mesmo as do Oriente, contra quem não faz a menor ideia da razão pela qual se está lutando, Pearl não faz da velhinha uma personagem simples e unidimensional. Ela é complexa e contraditória como a realidade, e é desse caldo que nasce o grande desfecho do conto. Não hesitei em dar uma posição de grande destaque para esse conto na lista de 100 melhores contos do ano que estou fazendo. E isso para uma escritora que, quando citada, não costuma ser pelos contos.

27/08/2018 – SIMBAD – 1001 NOITES

Comecei a ler o “Maravilhas do conto de aventuras” e achei sensacional uma das histórias de Simbad, que, na verdade, faz partes das histórias das 1001 noites. Eu ainda não o conhecia. E gostei bastante do enredo da quarta viagem do marinheiro, aquele em que ele se vê sepultado vivo em uma caverna ou algo do tipo, pois era costume do lugar onde estava que o cônjuge vivo fosse sepultado junto com o cônjuge morto. Suas aventuras dentro da caverna repleta de cadáveres e de como conseguiu escapar de lá são muito originais e interessantes. E pouco nos importa que tudo não passe de uma história impossível.

28/08/2018 – HEMINGWAY – IBSEN

Há quatro anos, fiz as observações a seguir sobre o livro “Ter e não ter”, do Hemingway: “Fiquei com a sensação de que Hemingway estragou um ótimo livro. Harry Morgan é um grande personagem e a sua história é bastante envolvente, mas, na segunda parte do livro, o escritor se perde em meio às histórias secundárias e totalmente desconexas da trama principal (e, ainda por cima, histórias com enredos fracos). Em relação à mensagem da obra, sintetizada na conclusão do Harry Morgan de que "um homem só não consegue nada", eu não pude deixar de me lembrar da conclusão do personagem de Ibsen em "Um Inimigo do Povo", que é a de que "o homem mais forte do mundo é o mais solitário".

28/08/2018 – CONTO FEMININO – SELMA LAGERLÖF – VIRGINIA WOOLF – DOROTHY PARKER

Terminei o “Maravilhas do conto feminino”, primeiro livro temático que leio dessa coleção (os outros eram por nacionalidade), e acho que ele mantém o nível dos demais. Os meus contos favoritos do livro são os que já citei. Em primeiro lugar, “O velho demônio”, da Pearl S. Buck, e em seguida “O seu direito”, da Ada Negri. Os contos da rainha Maria, da Romênia, e da George Sand também, como dito, se destacaram. Um de que ainda não falei é “O balão”, da Selma Lagerlöf, também um ponto alto do livro. Tenho um vivo interesse pela literatura dos países nórdicos e, como a Selma se saiu tão bem com esse conto, eu devo ir atrás de um livro de contos só dela. No ano em que li só romances internacionais de mulheres, eu li “A maravilhosa viagem de Niels Holgersson através da Suécia”, mas, embora tenha achado bonito, é para outro público. Quero ter uma ideia melhor lendo os seus contos e vendo se são tão sensíveis como o que li. Os contos femininos contam ainda com a indispensável Virgínia Woolf, que aparece com “O legado”. É um bom conto, e não é nada difícil, como geralmente se diz que são os textos dela, mas o meu “porém” é que a história em si (o diário de um morto que revela coisas insuspeitadas pelos vivos) está longe de ser original. Dorothy Parker tem bons momentos em “Loura e grandalhona” (que, pelo vi, foi traduzido aqui no Brasil também como “Big Loira”) e pode ser que eu leia um livro de contos só dela. Eu já havia lido um conto dela no “Maravilhas do conto norte-americano” e achado bom. Tem Agatha Christie e “O acidente”. A Mansfield aparece com o festejado “Felicidade”, que não me tocou. Achei interessante “Flores da alma”, de Dorothy Canfield, até então minha desconhecida. Outra Dorothy, a L. Sayers, escreveu o conto “Suspeita”, que é bom em seu mistério, mas não chegou a me agradar totalmente. “O baile”, escrito pela portuguesa Irene Lisboa, é o conto mais difícil de ler do livro. Receio que eu acabe ficando com birra dos contistas portugueses, porque, de todas essas coletâneas que tenho lido, estão entre os mais difíceis que tenho lido, e não houve ainda conto deles que eu apreciei de maneira especial. Mas é que eu também não li até agora o “Maravilhas do conto português” – vamos ver que tal eles me parecerão lá. O conto da Isak Dinesen é “O velho cavalheiro” que não me chamou a atenção – ela é nórdica também e eu já li um livro de contos dela este ano, mas acho que ela não terá nenhum conto entre os 100 melhores do ano. “Maria Concepción”, de Katherine Anne Porter, é um conto estranho e difícil de que não gostei. Ah, quase ia esquecendo de “Decisão”, da Margaret Kennedy, que achei um conto bom também. “Antepassados”, da Margarida Behtlem, chama a atenção, apesar de curto e do desfecho um pouco inverossímil. “Noiva sem beleza”, de Santa Devi, nos choca por certos preconceitos da sociedade indiana. “Agonia”, da Victor Catalá” tem bons momentos também, apesar de não ser lá muito original uma moribunda contar segredos ao marido. “Uma noite fora”, de Vick Baun, começou bem, e deve ter os seus méritos para as mulheres em seu processo de libertação (como o conto da Margaret Kennedy), mas eu não gostei muito do desenvolvimento. Esse livro tem um conto de uma brasileira, hoje bastante desconhecida. Júlia Lopes de Almeida aparece com “As rosas”, que é interessante apenas. Os demais contos não me atraíram muito.

30/08/2018 – MARAVILHAS DO CONTO UNIVERSAL

Registro aqui impressões que tive ao ler, antes de ter iniciado este diário, o “Maravilhas do Conto Universal”: “Este é o MELHOR da coleção. Imagine poder ler um escritor da Tailândia, da Jamaica, do Vietnã, do Egito, de lugares sobre os quais você não sabe nada da literatura. Pois este livro oferece a oportunidade de conhecer contos de 41 países diferentes. E como tem surpresa boa! Entre os primeiros contos, há "Episódio no lago de Genebra", do Stefan Zweig (Áustria), que se tornou um dos melhores que já li na vida. Na parte final, há uma sequência arrebatadora de contos: Suíça (Maurice Zermatten), Suécia (August Strindberg), Tailândia (Isra Amantakul) e Turquia (Necdet Öhmen). Quatro contos excelentes, dos melhores que tenho lido este ano. Dois outros nomes, ignorados no Brasil, também se sobressaem nesse livro: D'Arcy Niland (Austrália) e Dvora Baron (Israel, mas nascida em Belarus). Ambos possuem contos muito sensíveis, além de, é claro, muito bem contados. Fico pensando na tristeza que é saber que a maioria desses escritores não tem NADA publicado no Brasil além dos contos desse livro. Não são escritores qualquer, juntados para dizer que representam um país, são escritores MUITO BONS. É uma pena que sejam solenemente ignorados por essas bandas. Outros nomes que merecem destaque: Dimitr Ivanov (Bulgária), A. J. Cronin (Escócia), Demetrios Bikelas (Grécia), Herman Haijermans (Holanda), Somerset Maugham (Inglaterra), Henri Sienkiewicz (Polônia). No mínimo metade dos contos do livro podem ser classificados entre "muito bom" e "ótimo". Dito isso, há também algumas dificuldades no livro, como conseguir entrar no ambiente de G. H. Franz no conto da África Sul. Em alguns casos, como o da África do Sul, o do Congo (um conto de ideias problemáticas) e o de Madagascar, parece que os escritores não são nativos, e alguns deles parecem que sequer viviam nesses lugares, embora tenham estado lá. Isso acho que tira a força desses contos. Mas eles são a exceção nesse livro, que é um primor. Nosso Machado está lá, representando o Brasil com "O espelho". Também há Cervantes, Thomas Mann, Maupassant, Kafka, O. Henry, Pirandello e Thékhov entre os autores já "consagrados".

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 30/08/2018
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