Diário das minhas leituras/7

11/10/2018 – FLANNERY O’CONNOR

Tenho sentido em certos contos da O’Connor uma dificuldade que parecer ser comum quando leio contos norte-americanos do século XX, ou seja, a demora em me ambientar na história. Os personagens não são apresentados de forma muito clara e apenas no desenrolar do conto é que me dou conta de quem são eles – mas aí eu já não terei paciência para retornar ao começo da história e compreender tudo o que havia sido dito sem que eu tivesse clareza sobre o que significava. Esses contos norte-americanos, por vezes, também me parecem excessivamente descritivos. Sei que essas características que aqui aponto como dificuldades devem significar, para a maior parte das pessoas, um maior refinamento literário, mas é que provavelmente eu não sou um leitor refinado. Gosto de leituras mais objetivas. Mas, naturalmente, depois que consigo me envolver na trama, as histórias de O’Connor fluem melhor. E muitas são boas.

13/10/2018 – MARAVILHAS DO CONTO RUSSO

Registrei sobre o “Maravilhas do conto russo”, lido em junho: “De um livro destinado ao conto russo, é de se esperar que Tchékhov brilhe mais do que nunca. No entanto, não é o que acontece nessa seleção, já que o conto dele ("A obra de arte") foi mal escolhido, não porque seja ruim, mas porque fica apagado diante da dimensão de outros contos (inclusive em questão de números de páginas). Também havia contos muito melhores do Górki do que "Ruivo". Acho que esses dois, grandes contistas, saíram perdendo nessa seleção. Os grandes vencedores, para mim, são Garshin, com o incrível "Quatro dias", e Andreiev com o originalíssimo "A conversão do diabo". Naturalmente, também se sobressai o indefectível e essencial "O capote", do Gógol. O do Tolstoi, "Deus vê a verdade, mas espera" também é bonzinho. Há ainda dois contos que aparecem em quase todas as coletâneas russas, "O turbilhão de neve" (também chamado de "Nevasca") de Puchkín e "O fatalista", de Lermontov. Todos esses são os melhores momentos do livro. Há, entretanto, páginas das mais aborrecidas, como o conto de Korolenko (O sonho de Macar) e principalmente o de Bunin ("O Cavalheiro de São Francisco), que é uma das coisas mais enfadonhas que já li na vida. Houve também uma nítida queda na qualidade dos contistas após 1917”.

14/10/2018 – FLANNERY O’CONNOR

Sigo com a Flannery O’Connor. Saltam à vista dois temas renitentes, que perpassam grande quantidade de contos, ainda que não constituam, necessariamente, o tema principal das histórias: o racismo e Deus. Cada escritor tem os seus “assuntos principais”, aqueles que vai expressar das mais diferentes maneiras ao longo da sua trajetória, e o preconceito contra os negros e as contradições da ideia do Deus cristão são dois dos favoritos da O’Connor. O bom é que, em nenhum momento, ela chega a ser uma moralista.

16/10/2018 – MACHADO DE ASSIS – NELSON RODRIGUES

Para não cair no óbvio que é enaltecer os contos do Machado, chamo a atenção para como eles explicam a produção do Nelson Rodrigues. "A vida como ela é" não existiria sem os contos do Machado de Assis, e as crônicas esportivas e políticas do Nelson devem o seu impressionante vigor ao bom humor do velho Machado. Nelson se aproveitava sobretudo das comparações exageradas e das referências disparatadas utilizadas pelo Machado e as levava ao seu paroxismo, deixando os textos deliciosos e de morrer de rir.

17/10/2018 – GRAÇAS ARANHA

Sei de gente que torce a cara para “Canaã”, a obra-prima do Graça Aranha. Acham chatíssimo, mas eu os compreendo. O livro tem uma bagagem filosófica fenomenal e, quem prefere a ação às ideias, não irá ter muita paciência com as intermináveis divagações de Milkau. No meu caso, entretanto, o que faz esse romance tão forte é justamente o seu conteúdo filosófico. Acho extraordinária a filosofia de Milkau, pois ele conseguiu colocar em palavras alguns dos meus próprios pensamentos, que eu apenas intuía. Mas o curioso é que mesmo entre admirados da obra, mesmo entre aquele pessoal que faz os prefácios para essa obra, todas as impressionantes falas de Milkau costumam ser reduzidas a “uma discussão sobre a identidade do Brasil”. Essa discussão existe, mas não se resume a ela, e certamente não foi ela o que me fez achar Milkau tão extraordinário. Milkau tem uma espécie de filosofia cósmica, que bebe um pouco do panteísmo, do anarquismo e, quem sabe, do espiritismo. Para ele, todo o mal está na força, no que se assemelha às vertentes do cristianismo que falam em “não resistência”, mas não há em Milkau nada que exija um Deus. É até impressionante que Graça Aranha o ponha para discutir tão a fundo questões das mais existencialistas e não surja, em nenhum momento, o “problema de Deus”. Escorre um amor enorme pela vida e uma esperança invencível no ser humano nas palavras de Milkau. Ele é, de certa forma, um místico, mas em luta com suas necessidades mais imediatas e procurando, mais do que tudo, aquilo que o possa ligar à comunidade dos homens. Suas frases são belíssimas e me espanta que haja quem passe por elas sem ser intimamente tocado, sem que delas nasça uma significativa transformação na forma como a pessoa via as coisas, sem que um imenso perdão a si mesmo e à humanidade não o abarque de modo irresistível. Em relação a “técnicas literárias”, alguém teria facilmente a objetar que o tom usado por Milkau, e mesmo outros personagens, em seus diálogos e debates de ideias dificilmente seria utilizado na “vida real”, por ser excessivamente culto e formal. Mas ao diabo com as técnicas literárias. Esse livro me comoveu como poucos e guardo uma enorme seleção de trechos dos “pensamentos de Milkau”.

19/10/2018 – FLANNERY O’CONNOR

Foi realmente uma escritora e tanto, a Flannery O’Connor. As tramas de seus contos são bem originais e às vezes ela cria um núcleo tão complexo que a gente fica pensando se não seria melhor utilizá-lo em um romance (não vai aí, naturalmente, nenhum demérito ao conto, gênero de que gosto cada vez mais). Às observações que fiz sobre a predominância de temas envolvendo racismo e Deus ou religião, deve-se acrescentar o aspecto geográfico, pois o que O’Connor retrata é o sul dos Estados Unidos no momento em que esses temas mais marcaram a região. O racismo, sobretudo, impressiona. Ele nunca é nem será uma coisa boa, mas ele se torna ainda mais monstruoso quando O’Connor retrata a sociedade daquela época e daquela região. E o conto que, para mim, melhor lida com o tema do racismo é “Tudo o que sobe deve convergir”. Aqueles momentos com o filho e a mãe dentro do ônibus e a maneira como interagem com os passageiros negros são épicos, assim com o monumental desfecho do conto. Um dos meus favoritos do livro, junto com o “O barbeiro”, que já citei, e o célebre “Um homem bom é difícil de encontrar” (que história incrível, muito bem conduzida e que pode ser analisada sob uma penca de prismas diferentes; a mim me agrada a discussão filosófica sobre Jesus). Outro ponto a se destacar nos textos da autora é a questão dos conflitos geracionais. Mesmo no preconceituoso ambiente em que se vivia, o mundo seguia em marcha e mudanças estavam em curso. Os mais velhos tentam manter o mundo que conheceram, mas as novas gerações pensam de outra maneira, e disso resulta uma série de conflitos que O’Connor soube explorar muito, mas muito bem mesmo. Todos os contos estão em alto nível. Há um de apenas seis páginas que eu imagino não ter sido concluído por ela. O último conto do livro usa alguns recursos que já haviam aparecido no primeiro. Mas é uma das melhores contistas do século XX.

21/10/2018 – AUTOR PERSA DESCONHECIDO

Que conto mais delicioso é “O primeiro impulso”, de um desconhecido autor persa e presente no volume 5 da antologia “Mar de Histórias”. É o conto de um sujeito tido como muito virtuoso, de nome Tooriri. Um eremita, chamado Maitreya, ao saber da sua fama, entra em conversa com o Deus da religião local (o tal de Ormuzd) e a partir de então foi concedido ao homem, sem que ele soubesse, o poder de transformar em realidade todos os seus primeiros impulsos. Como o sujeito exalava bondade, achou-se que todos os seus primeiros impulsos seriam de caridade. Contudo, não foi o que se viu, pois muitas vezes o primeiro impulso dele era de violência e, em função disso, houve até muitas mortes das pessoas com que convi-via. Desesperado pelo que estava acontecendo, o sujeito se suicida. O eremita morre no mesmo dia e os dois se encontram diante de Ormuzd. Parecia que o homem seria condenado, mas Ormuzd disse o que se vai ler a seguinte, que é a conclusão do conto.

– Tooriri, desejaste o aniquilamento de tua esposa porque não era bondosa e já não tinha beleza; quiseste a morte dos mendigos porque te importunaram, e seu aspecto era hediondo; a de tua amante, porque era uma tola; o fim dos cocheiros e o extermínio dos cavalos, porque te forçaram a esperar quando tinhas pressa; o desaparecimento do letrado Sarvilaka, porque professava opinião diferente da tua; a do autor da comédia, porque obtivera aplausos maiores que os alcançados por ti. Todos esses desejos eram perfeitamente naturais. Os assassínios de que Maitreya te acusa foram, à tua revelia, efeitos do teu primeiro impulso, porquanto ninguém pode conter o seu primeiro impulso e desejo. Um homem odeia inevitavelmente o que o tolhe, e não menos inevitavelmente deseja o aniquilamento daquilo que odeia. A natureza é egoísta, e o nome do egoísmo é destruição. O mais virtuoso dos homens é, antes de tudo, no íntimo da alma, um patife; e se lhe fosse concedido transformar em realidade o seu primeiro desejo, impulsivo e involuntário, dentro em pouco a Terra se transformaria num deserto, sem nenhum ser humano a habitá-la. Foi o que eu pretendi mostrar, Tooriri, com o teu exemplo: o homem é julgado pelo seu segundo desejo, pois que este depende da sua vontade. Não fora o dom misterioso que, a teu pesar, tornou o teu último dia tão mortífero, tua vida teria continuado virtuosa e caridosa. O que devo considerar em ti não é a tua natureza, mas a tua vontade, que sempre tendeu para o bem e procurou sempre corrigir a tua natureza e aperfeiçoar a minha obra imperfeita. Eis por que, meu colaborador querido, eu hoje escancaro diante de ti a porta do meu paraíso.

— Essa é boa! — exclamou Maitreya. — Que fareis, então, por mim? Que recompensa me reservastes?

— A mesma — replicou Ormuzd —, embora só a tenhas merecido imperfeitamente. Foste um santo, mas, se em tudo deixaste de ser humano, humano foste no teu orgulho. Conseguiste a supressão do primeiro impulso; mas, se todos os homens fossem viver como tu, a humanidade desapareceria da face da Terra ainda mais depressa do que se cada homem possuísse o poder maravilhoso que por um dia infligi a este meu fiel servo. Ora, a mim me convém que a humanidade continue, porque isto me diverte e porque o espetáculo que me oferece chega a ser, às vezes, sublime. O teu esforço, mísero asceta, não era de todo desprovido de certa espécie de beleza, e por isso te perdoo o teu erro crasso. Numa palavra: a Tooriri abro as portas do Paraíso e o acolho em meu seio, porque sou justo; a ti, Maitreya, permito que entres, porque sou generoso.

— Mas... — disse Maitreya.

E Ormuzd, erguendo o austero semblante:

— Tenho dito.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 21/10/2018
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