Diário das minhas leituras/8

23/10/2018 – ISAAC BASHEVIS SINGER

Que grande contista é Isaac Bashevis Singer. Dos melhores que tenho lido este ano. Seus personagens são judeus frequentemente em conflito com a sua fé e as suas tradições, mas que, ao tentarem deixar para trás a herança religiosa da sua família, também não encontram nada muito melhor para se viver. Destaco na coletânea “Um amigo de Kafka” os personagens femininos, as mulheres abandonadas pelos maridos e aquelas que ousaram ser independentes. Aparentemente, o escritor também se apropria da própria biografia para dar um tratamento ficcional. E tudo é envolvido em bastante ternura. Também é interessante que, mesmo em um ambiente de crescente descrença, há sempre alguma coisa de misteriosa ou mesmo sobrenatural a intrigar e maravilhar os personagens. Acho que esse livro é uma das melhores maneiras para se inteirar sobre o judaísmo e suas implicações na vida cotidiana.

23/10/2018 – MAR DE HISTÓRIAS 5

No Volume 5 da Coleção Mar de Histórias, tive algumas broncas com o Aurélio Buarque de Holanda e o Paulo Rónai por conta dos textos introdutórios aos contos. Achei que desmereceram demais a escrita de Gabriele d’Annunzio e de Antonio Fogazzaro (senti especialmente pelo Fogazzaro, pois o conto “Idílios desfeitos” foi o que mais gostei em uma coletânea italiana). Verdade que os dois contos selecionados para “Mar de histórias” não me chamaram a atenção, mas, já que é pra selecionar contos deles, que se dê destaque aos méritos dos seus autores. Também achei muito, muito longa a introdução que fizeram para o Eça de Queiroz. Não se justifica porque a importância dele como contista não é tão grande como é a de romancista. Por outro lado, as introduções que fizeram sobre Herman Bang (que escrevia sobre os infelizes e desafortunados) e Cyriel Buysse (o Maupassant flamengo) me entusiasmaram a ler os seus respectivos contos, mas a verdade é que não gostei muito deles. Mas pode ser que eu dê mais alguma chance a eles, lendo um livro autoral, que me permita conhecê-los melhor. Só espero que o Buysse não seja tão, tão descritivo como foi no conto selecionado para essa antologia. Em relação à seleção, esse é o livro voltado ao “Realismo” e pega nomes como Machado de Assis, Tolstoi e Tchékhov. O melhor conto do livro deve ser “Angústia”, do Tchékhov, que é também, quase por unanimidade, um dos melhores contos já escritos. Do Machado há quatro contos, que não são da minha especial predileção (“O empréstimo”, “O espelho”, “Singular ocorrência” e “Entre santos”). O que eu realmente gostei foi daquele conto persa que citei. Voltei a encontrar nesse livro o difícil conto do Korolenko “O sonho de Makar” e o um tanto aborrecido “José Matias”, do Eça, dois contos que eu pulei sem dó. Há um contista húngaro chamado Mór Jókai que talvez eu dê mais atenção. Também há o Villiers de l’Isle-Adam, que parece ser seguidor do Poe e escreve bem. Há também três contos do Oscar Wilde, o que achei um exagero.

25/10/2018 – CONTO CHINÊS

Leio agora o “Maravilhas do conto chinês”. Fui tocado por um conto anônimo escrito no tempo da dinastia Ming (1368-1644). É a história de um velho jardineiro que vivia para as suas flores e tinha um jardim incrível em sua casa. Não deixava ninguém entrar e muito menos arrancar uma flor. Um dia o grupo de um jovem vindo de família poderosa vê aquele jardim, resolve entrar e fazer uma porção de maldades com as flores e com o seu jardineiro. Arrancam várias flores e dizem que vão tomar o jardim do homem. Mas ele tem uma ajuda sobrenatural (nos contos chineses o sobrenatural é natural). As flores voltam ao seu lugar ainda mais belas, mas então o homem é acusado de feitiçaria. Sofre muitas injustiças, mas volta a ter uma intervenção especial, vinda de uma “imortal”, e então as coisas ficam bem para ele. Essa história é arrebatadoramente lírica e poética, uma coisa linda de se ler. É interessante que, após a sua primeira ajuda divina, o homem decide ser mais generoso e até abre o seu jardim para a visitação dos vizinhos. Quando se livrou da condenação, ele passou a seguir mais fielmente o taoismo. É bem lindo.

26/10/2018 – CONTO CHINÊS

Continuo encantado com os contos chineses. Outro conto da dinastia Ming, “O casamento inesperado do bacharel Tsien”, tem aquele conhecido recurso, usado à exaustão no cinema, de fazer um amigo se passar por você em um encontro amoroso. Mas com o toque oriental isso fica muito bonito. Essas histórias de "burlas amorosas" lembram o que o Cervantes e o Boccaccio já vinham fazendo no Ocidente.

26/10/2018 – BORGES

Sobre “Ficções”, meu primeiro contato com o Borges: “Parece-me que nunca houve época melhor para se ler esses contos do que essa em que cada vez mais se discute seriamente a existência de universos e dimensões paralelas. Ter outras versões de mim em outras partes que interagem com outras versões das mesmas pessoas, como é sugerido em "O jardim de veredas que se bifurcam" (um dos contos que mais gostei), está bem longe de ser um disparate entre os teóricos da mecânica quântica. Será que um dia o realismo mágico vai ser só realismo? Em tempo, o meu favorito foi "O milagre secreto". Que construção!”.

26/10/2018 – CONTOS CHINESES

Que surpresa mais agradável foi ler as “Maravilhas do Conto Chinês”! Eu imaginava uma leitura difícil, tanto pelas dificuldades de tradução como por abissais diferenças de cultura. E, entretanto, que prazer foi percorrer 14 séculos de literatura chinesa! Acho até que a linguagem contou a favor, pois, por conta de suas peculiaridades, o chinês escrito é muito sintético em suas expressões, o que significa que quase não irão aparecer períodos excessivamente longos e com intermináveis descrições de ambiente. Lê-se tudo com muita naturalidade. Tudo é simples, bonito e bem escrito (ou, vá lá, bem traduzido). O livro já começa com um conto muito significativo chamado “A história de um velho espelho”, de Wang Tu, que é do tempo da dinastia Tang (ou seja, de 618 a 907 da presente era). Já nesse conto se percebe algo que imagino uma característica marcante da literatura chinesa antiga, ou seja, a naturalidade dos eventos sobrenaturais. Com frequência veremos nesse livro objetos, seres, fantasmas, coisas que contradizem a nossa velha mente racional ocidental. O que poderia, a princípio, nos afastar, por considerarmos aquilo inverossímil demais, é capaz de permitir uma visão mais poética, profunda e bonita da realidade. Estou usando outra vez o adjetivo “bonito” porque realmente é o que mais me vem à cabeça com esses contos. “Viagem ao interior de um travesseiro”, de Chen-Tsi-Tsi, também conta uma bela história nos mesmos moldes. “A vida de Li Wa”, de Poe Hieng Kien, relata uma história de amor com interessantes reviravoltas. É incrível que esses contos são os mais velhos do livro e ainda apresentam ótimo vigor. Depois vem os contos da dinastia Song (960-1276), que são anônimos e podem ser chamados realmente de “contos de fantasmas”, pois esses seres são peças fundamentais no enredo dos dois contos dessa época. Depois aparecem os contos da Dinastia Ming (1368-1644), que foram, no conjunto, aqueles de que mais gostei. Já falei de “O velho jardineiro” e de “O casamento inesperado do bacharel Tsien”. O terceiro conto dessa época é “O tesouro perdido”, grande conto sobre as peripécias de um estudante e uma cortesã que se apaixonaram um pelo outro. Muitos contos dessa época, pelo menos os ocidentais, são amplamente desfavoráveis às mulheres. Pois nesse conto a mulher sai por cima e dá uma lição nos homens que, olha, foi épica. Há grandes momentos na parte final do conto, mas ele todo é formidável. Na sequência, estão os contos da dinastia Tsing (1644-1912), que não me chamaram tanto a atenção, mas lidam também com o sobrenatural com grande naturalidade e beleza. Por fim, na última parte, há o “período contemporâneo”, que se entende como da fundação da república chinesa, em 1912, até a publicação do livro, nos anos 60. Essa seção é aberta por Lu Hsun (ou Lu Xun) e o vigoroso conto “Pesar pelo passado”. Nele já se nota que a literatura chinesa havia entrado na modernidade. É um conto em primeira pessoa, um mergulho no drama, na angústia e no remorso pelos erros passados que, imagino, poderia ser facilmente absorvido por alguma teoria psicanalítica. Excelente a condução da história. Gostei muito da escolha vocabular, só que aí o crédito é do tradutor, José Paulo Paes. É um conto altamente existencial. Acho que voto nele como o melhor do livro, pois tem menos “estranhamento”, por ser um conto moderno, mas sem perder o encanto da cultura chinesa. Tem ainda um momento misterioso, dando o tradicional toque sobrenatural. Depois vem “O registro”, de Chao Shu-Li, que é interessante porque trata do enfrentamento dos jovens à tradição chinesa, que ainda estava em voga, de os pais escolherem o casamento dos filhos. Trata-se não apenas de conflitos de gerações, mas de mudanças profundas pelas quais a sociedade chinesa estava passando, até chegar o momento em que os jovens se casariam com quem bem entendessem. O conto tem lá a sua propaganda política, é uma literatura engajada, mas a temática e a abordagem são das mais interessantes. Por fim, encerrando o livro, há “O jarro de bronze”, de Tsui Pa-Wa, conto que também me marcou positivamente. Lendo esse conto eu me lembrei de algo que já havia esquecido, mas que havia aprendido com “A boa terra”, da Pearl S. Buck: famílias podiam vender os filhos para se sustentar. Isso acontece na história, mas o filho foge, volte para a casa do pai, e tem início uma grande confusão quando o “dono” vem buscá-lo. Impressiona o grau de solidariedade dos vizinhos, a ponto de um vender terras de sua propriedade para arcar com as custas do “resgate” da criança. São gente simples que sabe que só se estiverem unidos têm condições de conseguir alguma coisa. Mas, infelizmente, quando os poderosos se unem, as consequências são terríveis para os pobres, e isso também é retratado muito bem. Outro belo conto. Essa coletânea chinesa também é, de todos os vários livros da coleção que eu li, o mais rico em informações históricas. De fato, dá para aprender muita coisa com as introduções, mas dá para aprender muito mais ainda lendo os contos. Só faltaram mais detalhes das vidas dos escritores (se conhecidos).

30/10/2018 – PEARL S. BUCK

Terminei “A Senhora Stoner e o mar e outros contos”, da Pearl S. Buck, mas, puxa vida, não foi como eu queria. Porque eu havia lido o fantástico romance “A boa terra” e o maravilhoso conto “O velho demônio” e pensei que, em um livro só com contos dela, eu iria ter alguma espécie de arrebatamento, mas não foi o que aconteceu. Achei os contos um tanto superficiais, com cenas meio artificiais. Nem parecia que era a mesma escritora. Ela escreve de um jeito simples e terno, e isso está longe de ser defeito, mas ela não conseguiu me sensibilizar tanto como nos outros textos que li dela. Será que é porque nos contos desse livro a temática não é chinesa? É interessante como todos os contos dessa coletânea terminam bem, isso de certo é uma mensagem que ela quer nos passar, mas isso também contribui para a impressão de que eles não são totalmente verossímeis. Ela também dedica uma parte do livro só para contos com temática natalina, coisa de que gosto muito, mas nem mesmo aí ela conseguiu me tocar de verdade, apesar de alguns momentos bons. O livro termina com artigos filosóficos da escritora, que tem pontos de vistas bem interessantes, apesar de eu não ter gostado da sua noção um tanto aristocrática de beleza e ordem. Mas “A boa terra” e “O velho demônio”, de toda forma, continuam sendo provas de como ela era ótima.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 31/10/2018
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