A Hora da Estrela de Clarice Lispector

A Hora da Estrela é um livro da escritora Clarice Lispector, nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira. Publicado em 1977, conta a história da emigrante nordestina Macabéa por meio do narrado Rodrigo S. M.

Análise e Interpretação

Clarice Lispector e o romance intimista

Clarice Lispector era uma escritora da terceira geração do modernismo. Seu primeiro romance publicado foi Perto do Coração Selvagem, quando tinha 17 anos, e chamou a atenção por sua grande qualidade narrativa. Desde então, Clarice se mostrou uma das grandes escritoras em língua portuguesa.

Os romances da autora estão repletos de estudos psicológicos das personagens, mas ocorrem poucas ações, já que seu interesse está voltado para o que se passa dentro do ser humano. A epifania é a grande matéria-prima das obras de Clarice.

O romance psicológico, ou romance intimista, é o foco de Clarice Lispector. Nesse tipo de romance, o interesse é voltado para os conflitos psicológicos internos das personagens ou do narrador, sejam eles conscientes ou inconscientes.

O diálogo interno é preferido ao diálogo externo, a vida interior é mais explorada ao que se passa ao redor das personagens. O romance intimista teve seus expoentes na obra de Marcel Proust, de Virginia Woolf e de Clarice Lispector no Brasil.

O chamado fluxo de consciência, mais que os fatos em si, é matéria essencial para a romancista, que busca por meio de seus personagens, expor conflitos internos. A crise existencial e a introspecção causada por essa crise parecem ser as matérias que dão início às obras de Clarice Lispector.

Contexto

A maioria das obras de Clarice Lispector foram escritas durante a ditadura militar no Brasil. Quando muitos escritores procuravam denunciar ou criticar a situação política nacional, Clarice Lispector focava sua obra no psicológico, deixando a política de lado.

A atitude da escritora de ignorar o momento histórico gerou diversas críticas que a acusavam de ser alienada. Clarice, porém, tinha consciência política e, além de explicitá-la em algumas crônicas, isso está presente no romance A Hora da Estrela.

O narrador Rodrigo S. M.

O romance vai ser narrador por Rodrigo S. M., que também é apresentado como escritor. Ele é um dos elementos mais importantes do livro, fazendo uma mediação entre os acontecimentos, os sentimentos de Macabéa e os seus próprios.

Antes de começar a contar a história de Macabéa, Rodrigo S. M. abre o romance com uma dedicatória. Nela, o narrador faz uma profunda reflexão sobre o ato de escrever. Ele sabe que a palavra tem papel fundamental não só na escrita, mas no mundo.

A linguagem é tratada como performática, isso quer dizer que ela encerra dentro de si o poder da ação: "tudo no mundo começou com um sim". Com a consciência do poder da palavra, o narrador começa uma série de questionamentos sobre o ato de escrever e como contar a história de Macabéa.

O capítulo em questão começa com uma série de dedicatórias para os grandes compositores de música clássica. Podemos entender nesse contexto que a vibração, a linguagem antes da palavra, tem um papel muito importante no livro. O inefável, aquilo que não pode ser dito é o grande foco de A Hora da Estrela.

Livro Sagarana de Guimarães Rosa

Rodrigo S. M. nos diz que ao longo de todo o romance existe um senhor tocando violino na esquina. A música faz parte essencial da estória, como aquilo que não pode ser dito, apenas sentido.

O narrador mantém um papel essencial ao longo de todo o romance, e não apenas na dedicatória. Macabéa é uma pessoa simples, com pouca consciência de si mesma. O narrador aparece como um mediador dos assuntos internos de Macabéa. Em um movimento que vai do seu psicológico para a da personagem e vice-e-versa, o narrador consegue criar uma teia complexa de sentimentos e pensamentos em um personagem aparentemente simples.

Esse movimento também serve para que o narrador desenvolva os seus próprios conflitos internos e exponha questões sociais que geralmente não têm espaço nas obras de Clarice Lispector. Rodrigo S. M. diz não pertencer a nenhuma classe social, mas reconhece na Macabéa a precariedade das populações mais pobres.

Macabéa é nordestina como o narrador e como Clarice Lispector, que nasceu na Ucrânia mas cresceu em Recife. O narrador sente por Macabéa a proximidade da origem, mas a vida deles no Rio de Janeiro é muito diferente. A relação entre o narrador e a personagem acaba sendo um tema central no livro.

Macabéa

Macabéa é uma entre as muitas mulheres nordestinas que saíram do sertão para a cidade. O tema da migração e da miséria do nordeste percorre o romance em paralelo com o desenvolvimento psicológico do narrador e da personagem. Rodrigo S. M. é o criador da personagem, mas diz ter vislumbrado Macabéa em um relance, quando viu o rosto de uma nordestina na rua.

A personagem é uma pessoa simples, tanto materialmente como psicologicamente. Macabéa não tem consciência de si mesma e quase nenhum desejo. As únicas vontades que ela possui vêm de sua fascinação pelas propagandas ou pelo cinema. São desejos simples e um pouco deslocados. Quando ela vê uma propaganda de um creme de rosto, seu desejo é comer o creme com colher.

Outro desejo que aparece em Macabéa e que é explorado pelo narrador é o seu desejo sexual. Todos os movimentos de Macabéa são primitivos e possuem relação com os instintos básicos de sobrevivência, como comer e se reproduzir.

Porém, até esse desejo básico da sexualidade é reprimido em Macabéa.Seus pais morreram quando ela era criança e ela foi criada por uma tia beata. As pancadas que a tia lhe dava e a criação religiosa serviram para que Macabéa reprimisse o menor desejo sexual.

Macabéa praticamente não existe, sua presença é sempre pequena, ela nunca quer incomodar e sempre é educada. Seu primeiro namoro é com Olímpico, outro nordestino mas de carácter totalmente diferente. Ele é descrito como alguém decidido, voltado para seus objetivos, uma pessoa com anseios, desejos e até alguma maldade.

Durante o namoro, Macabéa segue as vontades de Olímpio sem questionar. Até quando ele termina o namoro com ela para ficar com sua colega de trabalho. Macabéa aceita o término, esboçando como única reação um riso de nervosismo.

Interpretação

A Hora da Estrela é um dos principais romances de Clarice Lispector e um dos mais importantes da literatura brasileira. O que torna o livro especial é a relação que o narrador Rodrigo S. M. tem com a personagem principal Macabéa.

O livro é, acima de tudo, uma reflexão sobre o exercício da escrita e do papel do escritor. Clarice Lispector sempre foi tida como uma escritora “difícil”. Nesta obra, ela nos mostra como seu processo criativo é complexo, justificando um pouco o conteúdo. Rodrigo S. M. nos diz no começo do romance:

Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado...

A angústia do escritor é matéria essencial da obra. Por meio da estória e da Macabéa, o escritor consegue “aliviar” sua angústia. Porém, esse alívio é passageiro, pois logo a própria escrita se torna fonte de angústia.

Há também uma preocupação com o inefável (aquilo que não pode ser dito) e com os limites do narrador. A vibração como forma de comunicação não verbal reverbera em todo o romance, mas como o livro é essencialmente palavras essa comunicação é falha. O narrador tem seus próprios limites.

A pergunta que se coloca é como constituir, criar e narrar uma vida tão diferente da do criador.

Vai ser difícil escrever essa história. Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus.

O sucesso do romance (a sua escrita e a transformação da narrativa em literatura) é ainda, por mais contraditório que pareça, o fracasso do narrador.

Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra no escuro. O pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua.

A Hora da Estrela é a grande reflexão sobre a escrita e sobre o papel do escritor. Sobre os limites do narrador e do próprio ato de narrar. Em última instância, é o desabafo de quem tem quer vomitar uma estrela de mil pontas.

Resumo

O livro começa com Rodrigo S. M., o narrador e escritor, refletindo sobre o papel da escrita e da palavra. Ele usa o primeiro capítulo para justificar o próprio livro. O chamado para a escrita é interno, vem da necessidade do próprio narrador.

Rodrigo S. M. continua a aparecer ao longo de todo o romance, fazendo pequenas intervenções e levantando questões existenciais sobre si mesmo e sobre as personagens. Macabéa é a personagem principal do romance. Ela é uma nordestina que migra para o Rio de Janeiro.

Macabéa é datilógrafa e divide um quarto com outras três migrantes. Logo no começo da estória, ela é demitida por não sabe escrever direito, mas seu chefe Raimundo ainda a deixa trabalhar por ter pena dela.

A vida de Macabéa é simples, ela trabalha e em casa escuta uma rádio na qual a programação consiste em cultura, hora certa e alguns anúncios. Toma café frio antes de dormir, tosse à noite e come pedacinhos de papel para enganar a fome.

Um dia ela falta ao trabalho e fica sozinha no seu quarto. Ela experimenta a solidão, dança sozinha, toma café solúvel e até sente tédio. É nesse mesmo dia que ela conhece Olímpico, que vem a ser o seu primeiro namorado.

O namoro segue sem graça, o casal sai quase sempre em dias de chuva. Seus passeios consistem em sentar-se em um banco na praça, onde conversavam. Olímpico sempre se irritava com as perguntas de Macabéa.

Um dia Olímpico resolve pagar um café para Macabéa, que fica tão feliz com o luxo que acaba colocando muito açúcar no café para aproveitar. Outro dia eles vão ao zoológico. Macabéa fica tão assustada com o rinoceronte que urina na própria saia.

O relacionamento acaba quando Olímpico conhece Glória, a colega de trabalho da Macabéa. Glória era loira oxigenada, seu pai trabalhava num açougue e ela fazia parte do clã do sul do Brasil. Todas essas qualidades eram atrativos para o ambicioso Olímpico, que trocou Macabéa por sua colega Glória.

Sentindo-se mal por ter roubado o namorado da colega, Glória passa a ajudar Macabéa. Primeiro a convida para jantar em sua casa e depois oferece dinheiro emprestado para Macabéa ir visitar uma cartomante.

A visita à cartomante marca uma reviravolta na vida de Macabéa. Ela pede licença do trabalho, inventando uma dor de dente e, com o dinheiro emprestado, vai de táxi para a cartomante. Lá, se encontra com a Madama Carlota, uma antiga prostituta e cafetina que, depois de enriquecer, tira a sorte nas cartas.

Carlota traz boas notícias para Macabéa: ela vai encontrar um gringo rico que vai se casar com ela, e sua vida de sofrimento vai ficar para trás. Para confirmar a sua sinceridade ao contar o futuro, Carlota afirma que a cliente anterior saiu chorando pois as cartas disseram que ela seria atropelada.

Macabéa sai da cartomante cheia de saudades do futuro, pronta para começar a sua nova vida. Porém, ao atravessar a rua, é atropelada. O atropelamento de Macabéa é uma das parte mais importantes do livro, é a “hora da estrela”.

O narrador Rodrigo S. M. reaparece de forma bem marcante. Ele hesita em relação à narrativa. Ele não sabe se Macabéa deve morrer ou não. Essa é a hora da epifania. Largada no chão, Macabéa quer vomitar uma estrela de mil pontas.

Principais personagens

Rodrigo S. M.: é o escritor e o narrador da estória de Macabéa.

Macabéa: nordestina que migra para o Rio de Janeiro onde é datilógrafa.

Olímpico: primeiro namorado de Macabéa, que a troca por sua colega Glória.

Glória: colega de Macabéa.

Madama Carlota: ex-prostituta e cafetina. É a cartomante que tira as cartas para Macabéa.