Diário das minhas leituras/16

25/12/2018 – THEODOR STORM

Precioso o conto “Immensee”, o mais famoso do Theodor Storm. Incrível como acontece tão pouca coisa nele, se considerarmos meramente os eventos exteriores. E, no entanto, quanto “mover” existe na área das emoções! Acontece, inclusive, mais do que o escritor descreve, pois muita coisa é apenas insinuada. O Theodor se considerava alemão, mas não deixo de pensar que existe uma influência nórdica na sua escrita, até porque a sua aldeia natal pertence a Schleswig-Holstein, quase Dinamarca. Pois o pouco que já li de escritores nórdicos sugere, justamente, o ambiente de “Immensee”, cheio de situações singelas, de uma visão poética da vida e, o que é importante, de uma relação íntima e profunda com a natureza. É interessante a divisão do conto em vários pequenos recortes, com as situações-chave para entender a trama. Essa versa sobre mais um amor não realizado, como os alemães adoram, deste “Werther”. Mas dificilmente alguém conseguirá escrever sobre isso com uma melancolia tão profunda e persistente.

25/12/2018 – BRUNO FRANK

Bruno Frank é praticamente um completo desconhecido por aqui. Mas “O besouro dourado” é um conto que sugere a necessidade de se conhecer mais sobre esse homem. É uma trama surpreendente, que, logo de início, apresenta um estupro, ao qual se segue a um período na cadeia do personagem. E nessa cadeia acontece o episódio decisivo da história. Incapaz de interagir com os outros presos, não tendo nada com que gastar o seu tempo e próximo do verdadeiro desespero, Johannes Abrecht, o prisioneiro, descobre o dito besouro dourado em sua cela e faz “amizade” com ele. Era, afinal, a sua única relação com o mundo externo, pois um dos carcereiros, homem especialmente sádico com Johannes, já havia impedido que ele ouvisse os passarinhos cantando lá fora e até mesmo que vislumbrasse alguma réstia de vida por uma das altas janelas do presídio. Esse carcereiro um dia descobre o besouro, percebe que Johannes tem especial interesse por ele, joga-o no chão e o esmaga-o. A partir daí tem início os desejos de vingança de Johannes, que vai alimentando abertamente o seu ódio por aquele homem capaz de uma crueldade tão grande. Ele ganha a liberdade, vai visitar a mulher que estuprou e se oferece para se casar com ela se a família quiser, mas eles se contentam com o dinheiro que ele oferece. E então se dedica, de forma quase exclusiva, a planejar o assassinato do carcereiro. A situação acontece, ele agarra o homem na rua e tenta estrangulá-lo, mas, quando estava perto de conseguir, o carcereiro ergueu as mãos, em um pedido desesperado de clemência, e esse simples gesto não apenas remeteu ao do falecido besouro, em suas “interações” com Johannes, como despertou nele uma espécie de “sentido universal” que fez com que desistisse do crime que estava para cometer. Suas reflexões posteriores sobre o acontecido são valiosíssimas e de profundo conteúdo filosófico. “Não estamos separados uns dos outros como pensamos. Onde estão os limites? Quem poderá atrever-se a separar, a dividir e a dizer: assim é este e assim é aquele, e isto é bom, e aquilo é mau?”. Johannes acredita que o carcereiro não sabia o que era mau e cruel, mas julgava fazer o que era correto. “Eu mesmo, quem sou para julgar? Isso é bom e isto é mau e me faço de juiz e vingador?”. “Donde tiro a lei e a sentença, onde está a cátedra do juiz para quem se possa apelar?”. Com esses questionamentos, era quase impossível o conto não me conquistar.

26/12/2018 – HEINRICH VON KLEIST

Um conto extremamente impactante é “Terremoto no Chile”, do Heinrich von Kleist, escritor alemão que já fazia contos antes de virar “moda”. E, a julgar por esse exemplar, como sabia contar bem histórias! É um drama excepcional esse, o de um casal que viveu um romance proibido pela sociedade, tanto mais que a mulher estava no convento e ficou grávida, para grande escândalo daquela sociedade dos anos 1600. A situação era tão grave, para os padrões da época, que ambos foram condenados à morte, mas justo no dia da execução acontece um daqueles terríveis terremotos que, vez ou outra, sacodem o Chile. Morreu meio mundo, mas os dois estiveram entre os sobreviventes e, no clima de comoção e de solidariedade que se seguiu à tragédia, julgaram que podiam viver felizes ali mesmo, compartilhando, finalmente, o seu amor. Ledo engano! Porque os sobreviventes organizaram uma missa e um padre fez uma pregação na qual atribuía o terremoto aos grandes pecados da cidade (é uma coisa que os pastores fazem até hoje), e citou nominalmente o caso dos dois “pombinhos”. Então a multidão enfurecida se volta contra os dois, enxergando neles a explicação para o desastre que acometeu a cidade. Daí resultam violências das mais impressionantes, com um terrível linchamento não só dos dois, mas também de outros que, por engano, a multidão acreditasse que fossem eles. Era realmente uma fúria cega. Sobreviveu, por muita sorte, só o pimpolho, bebê do casal. Ora, o comportamento da multidão reforça aquela tese do “bode expiatório”, que René Girard tão bem estudou: a necessidade de um grupo, diante de uma crise, e para voltar a se tornar coeso, jogar todas as suas culpas sobre um inimigo comum, cuja execução trará de volta a paz. Foi isso o que aconteceu e, sinceramente, acho que não estamos assim tão afastados dessa realidade para dizer que não agiríamos assim hoje em dia. Continuamos adorando os bodes expiatórios. Adoramos colocar sobre eles as razões de todos os males que nos afetam. Isso inclui, até mesmo, os cristãos, gente que, depois do assassinato de Jesus, deveria ter abolido para todo o sempre a tese do bode expiatório. É um conto forte que dialoga com os nossos dias e que, mesmo alemão, se passa na América do Sul.

26/12/2018 – JAKOB WASSERMANN

Curioso, muito curioso o conto “O amuleto”, do Wassermann. Acompanhamos a trajetória de vida de uma sofrida empregada doméstica, que vive uma vida das mais dolorosas e ausente de qualquer afeto. Até encontrar um homem, a quem não chega efetivamente a amar, mas com quem passa viver. Esse homem vai à guerra e, supostamente, morre nela. Um dos seus amigos se mostra um canalha de marca maior, explorando abertamente a mulher, seja no dinheiro, seja na cama. Mas eis que o marido que era tido como morto reaparece, o que desencadeia a fuga da mulher e do canalha. Ocorre a seguir uma morte de criança das mais violentas da literatura, diante do desespero da mulher, sua mãe, que achava estar na iminência da sua própria morte. O engraçado, o irônico no conto é o tal do “amuleto”, que pouco aparece, só no início, quando a empregada a recebe de um patrão no leito de morte, e no final, quando ela, pouco antes de também perecer, resolve dá-lo ao marido que voltou da guerra. De que diabos havia servido esse amuleto, que não impediu a espoliação da mulher, a morte do seu filho, a morte dela própria, nem todo o sofrimento de uma vida abjeta e sem sentido, posto que sem amor? É uma das perguntas que o autor não faz, mas parece ser esse o questionamento que justifica o próprio conto. Sendo assim, digo que foi muito bem executado. A mulher morre feliz, porque havia recebido um inédito gesto de amor. Dói.

27/12/2018 – DÓRIS LESSING

Falei há algumas semanas sobre a introdução de “O carnê dourado”, que, para mim, foi melhor do que o próprio livro. Reproduzo aqui alguns trechos que me chamaram muito a atenção:

"Começa quando a criança tem apenas cinco ou seis anos, e chega ao colégio. Começa com notas, recompensas, "lugares", "estrelinhas". Essa mentalidade de cavalo de corrida, a maneira de pensar do vencedor e do perdedor, conduz a coisas como "O escritor X está, não está, alguns passos à frente do escritor Y. O escritor Y passou para trás. Em seu último livro, o escritor Z demonstrou ser melhor que o escritor A". Desde o começo a criança é treinada para pensar dessa forma, sempre em termos de comparação, de sucesso e de fracasso. É um sistema de eliminação: o mais fraco é desestimulado e cai fora; é um sistema destinado a produzir alguns vencedores que estão sempre competindo entre si. Acredito - embora este não seja o lugar de desenvolver minha tese - que as aptidões que toda criança tem, independentemente do seu QI oficial, poderiam permanecer com ela a vida inteira, para enriquecê-la e a outras pessoas, se tais aptidões não fossem consideradas mercadorias, com um determinado valor no jogo do sucesso".

"Idealmente, o que se deveria dizer a toda criança, repetidamente, durante toda a vida escolar, é algo mais ou menos assim:

Você está no processo de ser doutrinado. Ainda não criamos um sistema de educação que não seja um sistema de doutrinação. Lamentamos, mas estamos fazendo o melhor que podemos. O que lhe estão ensinando aqui é um amálgama dos preconceitos atuais e das opções desta nossa cultura. A consulta mais ligeira à história revelará o quanto eles são temporários. Você está sendo ensinado por pessoas que conseguiram acomodar-se a um regime de pensamentos transmitido por seus predecessores. É um sistema autoperpetuador. Os que, dentre vocês, são mais vigorosos e individuais do que os demais serão incentivados a ir embora e a encontrar maneiras de se educar, educando seu próprio julgamento. Os que ficarem devem sempre lembrar, sempre, em todas as ocasiões, que estão sendo amoldados para se enquadrar nas estreitas e específicas necessidades desta determinada sociedade”.

"Não é apenas infantil um autor querer que os leitores vejam as coisas como ele as vê, que compreendam a estrutura e o objetivo do romance da mesma forma que ele - o fato de o autor desejar isso significa que não compreendeu um ponto fundamental. Qual seja, que o livro é vivo e potente e fecundo e capaz de promover ideias e debates apenas quando seu plano e estrutura e objetivo não são compreendidos, porque o momento em que sua estrutura, seu plano e seu objetivo são percebidos é também o momento em que não existe mais nada a ser tirado dele. E quando o padrão e a estrutura de um livro são tão óbvios ao leitor quanto o são para o autor, talvez tenha chegado a hora de jogar o livro de lado e começar de novo outra coisa nova".

28/12/2018 – OLAVO BILAC

Hoje faz 100 anos que morreu Olavo Bilac, mas praticamente ninguém deu muita bola. Bilac era mais do que "Ora (direis) ouvir estrelas!" e seus poemas parnasianos. Ele também era um cronista altamente combativo. Sua coletânea "Vossa Insolência" é crítica já a partir do título, que, aliás, é um verdadeiro achado, uma ironia que aprendi com ele e repito até hoje. Chama a atenção a sua percepção social e a sua capacidade de indignação com episódios do Rio de Janeiro da época. Ele usava a sua crônica para defender causas que acreditava necessárias para melhorar a sua cidade. Leitura muito interessante.

29/12/2018 – PAULO MENDES CAMPOS

“Ricos, remediados e pobres pensam todas as noites, olhos acesos, quartos esfumaçados: onde vou arranjar o dinheiro? Industriais, industriários, comerciantes, comerciários, fazendeiros, funcionários civis e militares, lavradores, o pensamento insone do Brasil é este: onde vou arranjar o dinheiro? Um precisa de muitos milhões, e não dorme; o segundo precisa de poucos milhões, e não dorme; o terceiro precisa de um milhão, e não dorme; o quarto precisa de meio milhão, e não dorme; o quinto precisa de cem contos, e não dorme; o sexto precisa de dez contos e não dorme; o sétimo talvez precise de um conto, e não dorme. Falta dinheiro. Falta dinheiro para pagar a comida, o remédio, os empregados, o colégio, o enterro, o banco, a prestação - e ninguém dorme”.

30/12/2018 – GEORGE ELIOT

Ainda sobre o calhamaço “Middlemarch”. É um livro que exige paciência, mas, analisando bem, dá para se notar muitas virtudes. Parece também que a George Eliot foi uma das precursoras desse negócio de "fluxo de consciência", embora, é claro, de forma não tão escancarada quanto outros autores. Há tipos apaixonantes na trama, sobretudo Dorothea, a "heroína" do enredo. Mr. Casaubon, o erudito fracassado, e o banqueiro Bultrode, o religioso hipócrita, são tipos bem convincentes. Creio que o Will Ladislaw, o mocinho injustiçado, também fará sucesso.

30/12/2018 – JUAN CARLOS ONETTI

Não tenho vergonha de admitir que “Tão triste como ela”, coletânea de contos do Onetti, foi um dos livros mais difíceis que já li na vida, existindo alguns contos que eu não entendi praticamente nada do começo ao fim. Consultei algumas pessoas e elas tiveram uma impressão semelhante. Alguns contos, no entanto, são melhor compreensíveis, e nele se percebe também melhor a beleza da construção narrativa do Onetti. O conto que eu mais gostei foi "Ebsjerg, na costa".

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 30/12/2018
Reeditado em 30/12/2018
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