Diário das minhas leituras/17

01/01/2019 – RUBEM BRAGA

Disse o Rubem Braga em uma crônica:

“Ando meio desconfiado com esse Ano Novo de 1939. Afinal de contas, ele é filho de 1938. Vamos ver se é um pouco mais decente que o pai. Porque o pai – francamente”.

Em 1939 começou a Segunda Guerra.

02/01/2019 – SCHILLER

É perigoso acordar o leão

E terrível o dente do tigre

Porém o mais terrível dos terrores

É o homem em sua ilusão!

Gefährlich ist's den Leu zu wecken

und schreklich ist des Tigers Zahn

Doch das schrecklichste der Schrecken -

Das ist der Mensch in seinem Wahn!

Trecho de “A canção do sino” (“Das Lied von der Glocke”) citado em conto de Turguêniev, com tradução de Irineu Franco Perpétuo.

02/01/2019 – TURGUÊNIEV

Lendo o “Memórias de um caçador”, lá pelas tantas, topei com o conto “Hamlet do distrito de Schigrí”. Nele é apresentado um personagem fascinante, um daqueles tipos esquisitos e existencialistas que os russos souberam produzir como ninguém. Como o Turguêniev veio antes da maioria, deve ser um dos primeiros. Aparentemente, foi inspirado em um sujeito real, como tudo o mais que ele escreveu no livro. Mas eu acho que ele merecia um espaço maior, ser trabalhado em um texto próprio. Até porque, nesse conto, ele mesmo só vai aparecer depois de várias páginas, nas quais são narradas outras situações que nada têm a ver com ele. Turguêniev faz muito isso nesses contos. Ele caminha numa direção, mas então, do nada, vai para outra. Esse Hamlet de Schigrí merecia, ao menos, um conto para chamar só de seu. Joguei agora, por curiosidade, o nome do conto no Google e vi que ele é um dos que se destacam no livro mesmo, a ponto de, pelo que vi, ter ganhado uma adaptação para o cinema. É interessante que esse conto ganhou o meu destaque de forma independente, isto é, eu não fui influenciado por ninguém.

03/01/2019 – LAURA ESQUIVEL

“Como água para chocolate” é um proposta bem legal de realismo mágico-culinário.

03/01/2019 – TURGUÊNIEV

Elogiei o “Hamlet do distrito de Schigrí”, mas acabei encontrando um conto ainda melhor em “O fim de Tchertopkhánov”. O sujeito desse nominho impronunciável é apresentado no conto anterior, mas só se torna uma figura inesquecível no conto que trata do seu fim. Esse homem perde a esposa, uma cigana que decide abandoná-lo por sentir saudade, havendo uma conversa de despedida bastante vívida. Logo em seguida perde o melhor amigo, Nedopiúskin, de quem havia sido protetor. Mais para frente, ele irá se tornar protetor também de um judeu que estava sendo espancado. Esse judeu venderá a ele um cavalo dos melhores que já existiram. O homem passa a viver em função desse cavalo fantástico. Mas um dia o cavalo é roubado. Tchertopkhánov larga a sua propriedade e viaja em busca do cavalo roubado. Só vai voltar depois de um ano, trazendo de fato o cavalo. Mas será que era o mesmo cavalo? Ora, ele passou a ser consumido pela dúvida de que, talvez, o cavalo que trouxe não era o verdadeiro. Por fim, se convence de que trouxe o cavalo errado, e então acontece a cena do fim do cavalo que é bastante marcante. Sem muito mais motivo para viver, ele morre algum tempo depois. Mas a sua trajetória de vida é uma pequena epopeia que podia até virar um “romanção” de 300, 400 páginas. Turguêniev gastou pouco mais de 40. Uma grande história, um belo personagem e a sensação de que poderíamos ter tido ainda mais.

04/01/2019 – KAFKA

O leitor de “A muralha da China” não deve se assustar com algumas das experiências surrealistas do Kafka nesse livro, ainda que possam ser de leitura mais difícil. É preciso aguardar pacientemente até chegar na maravilhosa tríade "Blumfeld, um solteirão", "A construção" e "Investigações de um cachorro". Esses três são contos poderosíssimos, são algumas das mais impressionantes manifestações do "fazer literário" que eu já encontrei. É incrível como os personagens são vivos e a gente praticamente nem percebe que são uma criação da cabeça do Kafka. São fantásticas as alegorias que essa mente foi capaz de criar e como elas penetram fundo na alma humana! Que baita escritor ele foi.

05/01/2019 – TURGUÊNIEV

Eu já estava me dando por satisfeito com o saldo do livro, depois dos últimos contos que aqui citei, quando então me deparei com “Relíquia viva”, conto que deixou todos os demais “no chinelo”. De fato, este é o primeiro grande candidato para a lista de melhores contos de 2019, e acho que dificilmente irá deixar de ficar entre os 20 melhores. É a tocante história de uma jovem inválida que vivia há vários anos deitada em um galpão, sem poder se mexer. Recebia uma ou outra visita, mas a maior parte do tempo passava isolada. As coisas mais marcantes que aconteciam em sua vida eram como essa:

- E uma vez foi bem engraçado! Uma lebre entrou correndo, de verdade! Uns cachorros vinham em seu encalço, ela atravessou a porta com tudo!... Sentou-se pertinho de mim e ficou um tempão daquele jeito, mexendo o nariz e contraindo os bigodes, como um autêntico oficial! E olhava para mim. Ou seja, entendeu que eu não era perigosa. Por fim se levantou, foi até a porta aos pulos, deu uma olhada quando chegou à soleira, e já era! Tão engraçada!

O isolamento forçado dela lembrou-me muito do leproso da cidade de Aosta, conto do Xavier de Maistre, quem sabe lido pelo Turguêniev. É de uma sensibilidade parecida, emocionando fundo. Se não chego a exaltar mais o conto, é unicamente por saber que o Xavier de Maistre já havia mexido antes nos mesmos lugares da minha alma. Mas sem dúvida é uma peça admirável, das melhores coisas que ele deve ter escrito. Soube depois que este conto, como o anterior que eu havia elogiado, “O fim de Tchertopkhánov”, e ainda “Um barulho!”, que também é bem legal, foram acrescentados apenas em edições posteriores de “Memórias de um caçador”. De certo foram escritos mais tarde, quando o autor já havia desenvolvido melhor a sua técnica, o que faz com que, reunidos com textos mais antigos, esse três estejam entre os que mais se sobressaem. Seja como for, o livro realmente ganhou bastante com esses acréscimos.

05/01/2019 – GIBRAN KHALIL GIBRAN

A violeta que proferiu essa queixa, em conto do libanês Gibran Khalil Gibran, não terminou lá muito bem a história, mas a frase encerra grandes verdades:

"Como é dolorosa a pregação dos felizes para o coração do miserável! E como o forte é severo quando quer ser o conselheiro dos fracos!".

05/01/2019 – TURGUÊNIEV

Por fim, terminei o “Memórias de um caçador”. É um livro muito interessante, por valorizar o camponês russo de uma forma até então inédita na literatura, e pelas sutis críticas sobre o sistema de servidão a que ele estava sujeito. Reconhecendo a importância e mesmo a beleza da obra de Turguêniev, presente não apenas nos contos que elogiei, devo reconhecer que nem sempre seus contos foram fáceis para mim. É que o autor se dedica bastante a detalhar aspectos da natureza, coisa que sempre me retarda a leitura e que me faz ler com certa impaciência. O mesmo grau de minúcia ele apresenta sempre que um novo personagem entra em cena. De fato, quando a gente pensa que a história seguirá um determinado rumo, Turguêniev faz uma pausa e se põe a descrever física e psicologicamente os personagens com que lida. Como caracterização de indivíduos e das classes sociais que representam, é um trabalho dos mais valorosos, mas para mim perde um pouco no quesito “literatura”, pelo menos na concepção mais moderna do termo. Seja como for, há muitos indivíduos interessantíssimos entre os que ele descreve. É curioso também o uso da primeira pessoa, pode-se sentir realmente uma voz única em todos os contos, e que não é o próprio escritor, mas um caçador que ele criou, ainda que se valha de situações próximas às suas experiências. Confesso que uma das minhas expectativas ao iniciar esse livro era que, de algum modo, ele endossasse as opiniões contrárias à caça que Turguêniev já havia expressado pelas bocas do personagem de “A codorniz”, um conto que li na antologia “Salada Russa”. Até existem momentos em que a caça sofre um leve questionamento, mas sempre de forma extremamente sutil, prevalecendo, por fim, a defesa que o narrador-personagem faz desse tipo de atividade. Naturalmente, deve-se considerar o contexto de escrita do livro, e não seria por se tratar de um caçador que eu deixaria de apreciá-lo. Mas sem dúvida é interessante que o seu caçador faça um defesa exaltada da natureza, como se vê no texto que encerra o livro, sem que isso implique em qualquer contradição para o fato de matar alguns dos seus elementos vivos mais bonitos. Felizmente, atualmente a nossa concepção sobre a caça já é bem outra. E, de toda forma, esses contos estão muito longe de ter a violência das caçadas descritas em Hemingway. As caçadas de Turguêniev são, muito mais, um pretexto para descrever cenários e personagens. Muitos contos se assemelham a crônicas, reportagens ou ensaios. Não são muitos os que se encaixam em uma concepção de conto que, afinal, só viria depois, pois Turguêniev é anterior a Tchékhov e Maupassant. Entre os mais bem construídos no formato convencional de conto está um que se chama “O médico do distrito”, cuja história, também bastante sensível, trata da doente que, em seu leito de morte, se apaixonada pelo médico que está tratando dela, pois, sendo jovem como era, não podia admitir que morresse sem experimentar o amor. Não à toa, esse foi o conto de Turguêniev escolhido para integrar a antologia “Maravilhas do conto russo”. Fiquei feliz de conhecer mais sobre esse belo escritor russo.

05/01/2019 – TCHÉKHOV

De “Inimigos”, o conto de Tchékhov que reputei como meu favorito entre os que li em 2018, pesco duas passagens:

“O silêncio constitui, com maior frequência, a mais elevada expressão de felicidade ou infortúnio”.

"Os infelizes são egoístas, maus, injustos, cruéis e menos capazes de se entender entre si que os imbecis. A infelicidade não une, mas separa os homens e, mesmo nos ambientes em que, parece, eles deveriam ficar unidos pela paridade do infortúnio, cometem-se muito mais injustiças e crueldades que num meio de gente relativamente satisfeita".

07/01/2019 - GIBRAN KHALIL GIBRAN

Fui surpreendido pelo estupendo conto “Satanás”. É um enredo magnífico. Um padre encontra um sujeito às portas da morte em uma estrada. Acaba descobrindo que se trata de Satanás. Seu primeiro impulso é deixar que ele morra, para que o mundo se livre de Satanás. Mas então Satanás começa a mostrar ao padre o quanto ele precisa do diabo, o quanto as ações dele enquanto padre dependem da existência do diabo. E Satanás remonta então aos primórdios da humanidade, quando o primeiro ser humano alegou que tinha poder sobre as forças negativas da natureza, o que logo lhe deu um status de poder sobre os demais, pois ele se tornou capaz de ditar como as pessoas deviam se comportar para evitar que coisas ainda piores acontecessem. E Satanás segue falando da importância que o medo dele teve ao longo da história da humanidade, da sua necessidade para o próprio bom andamento da igreja, e o faz de tal forma que, ao fim de tudo, o padre termina por se convencer e trata de buscar atendimento médico a Satanás.

08/01/2019 – AGATHA CHRISTIE

Para quem, como eu, leu primeiro tudo do Sherlock e só depois tomou conhecimento do Poirot, é difícil não pensar que tudo o que se lê em “Poirot Investiga” já foi feito antes. A estrutura é idêntica: um sujeito que vive bancando o pato narra as aventuras de um detetive brilhante e bem pouco ortodoxo. Em comparação, achei que Hastings sofre mais na mão do detetive que o Watson, e que o Poirot é mais presunçoso que o Sherlock (que já é presunçoso), e também um tanto mais bem-humorado. Achei engraçado o Poirot falar de si mesmo na terceira pessoa. As soluções de Poirot também me pareceram mais mágicas do que as do Sherlock, tornando praticamente impossível as deduções do próprio leitor, mas há quem diga que é justamente o contrário. Em relação às tramas, é claro, são bem elaboradas e aguçam a curiosidade do leitor, mas, honestamente, não encontrei nada que já não tivesse encontrado no Sherlock. O Conan Doyle bebe na fonte do Poe também, não se pode dizer que ele seja totalmente original (ninguém é), mas acho que não ficou tão evidente a fonte de inspiração no caso dele.

08/01/2019 – CONAN DOYLE

Por outro lado, no “Conan Doyle sem Sherlock” se torna muito nítida a influência do Poe. Há inclusive argumentos muito parecidos. "A nova catacumba" é bastante semelhante a "O barril de amontillado". As tramas que encontrei em “O enigma do trem perdido” são bem boas e também aguçam a curiosidade, mas achei um tanto repetitivo o recurso de, ao final, uma pessoa aparecer e revelar todo o mistério.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 08/01/2019
Reeditado em 08/01/2019
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