Diário das minhas leituras/20

26/01/2019 – MARAVILHAS DO CONTO MODERNO BRASILEIRO

É um livro interessante que abrange os escritores brasileiros vivos no ano de 1959. Curioso como alguns contos escolhidos possuem “parentes”, ou seja, outros contos que de alguma forma se assemelham no que diz respeito ao tema. Assim é com aqueles que considerei os dois melhores do livro: “As pérolas”, de Lygia Fagundes Telles, e “Penélope”, do Dalton Trevisan, ambos explorando os meandros do ciúme em face a um adultério imaginado. O último conto do livro, “A hospedeira”, de um bastante desconhecido Edilberto Coutinho, foi um dos que mais gostei e ele faz dobradinha com o conto de José Condé, “A velha senhora Magdala”, ambos tratando de uma mulher idosa que busca reviver anos de esplendor ao receber hóspedes. Há mais um par formado por “Elegíada”, de Osman Lins, e “O chapéu de meu pai”, do Aurélio Buarque de Holanda, ambos contos em primeira pessoa que se passam no velório de uma pessoa muito querida (entre esses dois, preferi o do Osman Lins, já que o do Aurélio, a certa altura, muda de ambiente e vira conto regionalista). Entre outros que apreciei, cito Gastão Cruls, com “O abcesso de fixação”, conto psicológico em que um médico conta um crime cometido de fato para “expurgar” a culpa sentida depois da morte de um paciente, Aníbal Machado com o surrealismo cômico de “O piano”, Marques Rebelo com o existencialismo de “Labirinto”, Dinah Silveira de Queiroz com o místico “Tarcísio”, Afonso Schmidt com o lírico “Olhos alheios”, Ribeiro Couto com o sociológico “O conto da madrugada”, Luís Lopes Coelho, com o trágico “Crime mais que perfeito”, Helena Silveira com o belo “Aida Arouche Magnocavallo” e, surpreendentemente, um conto do Erico Verissimo, rei no romance, o sensível “As mãos de meu filho”. Preferi, largamente, os contos “não regionalistas”. Tenho, sim, muita dificuldade com o conteúdo regionalista da literatura brasileira, à exceção do José Lins do Rego, que eu acho uma lindeza só, e talvez o Graciliano (nomes que não estão no livro). Entretanto, entre os contos de conteúdo regional em que eu reconheci méritos, apesar das dificuldades de leitura, estão o “Paisagem perdida”, de Luís Jardim, e o “Sarapalha”, do Guimarães Rosa. Quatro contos regionalistas se tornaram extremamente difíceis para mim e eu os li arrastado: os de Peregrino Júnior, Darcy Azambula, Guido Wilmar Sassi e Ricardo Ramos (filho do Graciliano). Um regionalismo como o de Joel Silveira, em “O homem na torre”, sim, esse eu aprecio, e provavelmente pela bagagem jornalística que o autor tem, o que fatalmente reflete na linguagem. Há mais contos no livro, mas esses foram os que me motivaram a comentar alguma coisa.

29/01/2019 – CORNÉLIO PENNA

Eu queria ler "A menina morta", mas não encontrei, e a orelha de outro romance, “Repouso”, ressaltava tanto o tema da angústia existencial que achei que se tratava de um outro Dostoievski e resolvi pegar emprestado. Mas, depois que comecei a ler, achei que estava mais para o Proust. A linguagem é impecável, a construção é precisa, mas é leitura para se fazer com muito, muito vagar, e nem assim se pode ter certeza de que o sentido das palavras foi absorvido totalmente. Não tenho dúvidas de que é um livro muito bonito, só que eu não estou à altura dele.

30/01/2019 – VIRGINA WOOLF

Aliás, por falar em livros que não estou à altura, essa foi a sensação que eu tive ao ler “Rumo ao farol”. É realmente uma pena que não seja mais inteligente, porque então poderia apreciar muito melhor a leitura desse livro. Não sou, no entanto, burro demais para não perceber que escorre beleza em cada página. Mas não foi uma leitura muito fácil. Experiência bem melhor eu tive com “Mrs. Dalloway”. Ali eu realmente consegui “entrar” na história e me deixar conduzir por aqueles fluxos de consciência. Lindo demais.

01/02/2019 – JOÃO UBALDO RIBEIRO

De uma de suas crônicas:

“Nenhuma gramática ou dicionário, que eu saiba, reconheceu a visibilíssima existência do pronome indefinido "nego", pronunciado "nêgo", que, inclusive, já entrou faz muito para a literatura, pelo menos a literatura das crônicas de jornal. Na verdade, um estrangeiro que disponha do melhor dicionário e da melhor gramática continuará ignorando um pronome de uso universal nos bate-papos informais, com sua variante paulista - "neguinho". Não é a mesma coisa que "alguém" ou "todos", mas anda perto; assim como sua forma negativa - "nego não" - não é a mesma coisa que "ninguém", mas anda perto. Todo mundo conhece frases como "nego aqui é muito tolerante", "nego não conserta esta bagunça porque não quer", "nego vai lá e dá um pau nele", etc. Nestas questões lexicográficas, nego muitas vezes deixa escapar coisas óbvias como esta”.

01/02/2019 – VARLAM CHALÁMOV

Li os “Contos de Kolimá”, o primeiro dos seis volumes em que esse espantoso russo faz um painel que é ao mesmo tempo o seu testemunho de como é ser condenado a trabalhos forçados na Sibéria, em meio à Rússia stalinista. Ora, nesses campos de concentração, visivelmente, um ser humano deixa de ser um humano. Os sentidos ficam de tal forma embotados que se matam uns aos outros a troco de nada, ou a troco de um pedaço de pão ou de um tabaco vulgar. Passa-se muita fome nesse tipo de lugar e um dos relatos mais chocantes feitos por Chalámov a esse respeito é o dos prisioneiros que decidiram abrir uma sepultura, pegar as roupas de morto e revendê-las a fim de conseguir alguns trocos que permitissem ter as suas necessidades satisfeitas. Em outro conto, mata-se um cachorro para matar a fome. Esses prisioneiros vivem apenas para o dia que estão vivendo, isto é, não pensam no amanhã, quando talvez nem estejam mais vivos. Muitos procuram a morte, e muitos são os que se mutilam porque, então, não serão obrigados a fazer o trabalho extenuante. Um dos contos que achei mais sensíveis diz respeito a isso e se chama “Chuva”. Há vários momentos crus e violentos, com atitudes chocantes, mas isso era o que um condenado por trabalhos forçados realmente vivia. O testemunho de Chalámov, como muitos outros, deveria ser suficiente para que a humanidade nunca mais cometesse semelhantes atrocidades. Entretanto, quem pode garantir que tudo isso não se repita, quando a humanidade achar conveniente?

03/02/2019 – ORÍGENES LESSA

Coisa mais linda é “O feijão e o sonho”, romance que chegou até a virar novela. Foi impossível não me identificar, pois eu estou muito mais próximo do sonho do que do feijão. Considero-me tão desajustado para os aspectos práticos da vida quanto o Campos Lara, protagonista do romance. Felizmente, não me casei e provavelmente nem vou me casar, então não farei nenhuma Maria Rosa sofrer. Mas hoje, de maneira geral, o feijão sempre vence, o feijão é implacável e até o sonho é submetido à lógica do feijão.

04/02/2019 – JANE AUSTEN

Considerando que não foi ela quem escolheu o nome do livro, acredito que o romance "Persuasão", da Jane Austen, deveria se chamar "Aparência e Astúcia". Além de me parecer mais fiel ao conteúdo do livro, ainda seria mantida a “dobradinha” de sentimentos no título e as aliterações do inglês que fazem parte de outros livros (Sense and Sensibility, Pride and Prejudice e, então, Appearence and Astuteness).

04/02/2019 – KAREL CAPEK

Depois de gostar bastante de “O imperador Diocleciano”, resolvi ir atrás de um livro só desse tcheco e li “Histórias apócrifas”. Capek faz algo interessantíssimo e difícil de fazer. Ele reconstrói episódios históricos a partir de pontos de vistas alternativos, geralmente levando a efeitos cômicos. Por exemplo, ele conta a história da multiplicação dos pães realizada por Jesus sob a ótica de um padeiro indignado com essa “concorrência desleal”. É muito divertido também ver os moradores das cavernas discutindo sobre “a decadência dos tempos”. Há muitos deliciosos anacronismos, pois, mais do que “brincar” com a História, Capek também nos leva a lançar um olhar irônico sobre a nossa realidade contemporânea. Um dos que mais gostei foi “O castigo de Prometeu”, quando o “Senado” grego discute a punição para o descobridor do fogo, sob argumentos curiosíssimos. Além de “O imperador Diocleciano”, que também aparece nesta livro, citaria também “A confissão de Don Juan” entre os que mais gostei. Há reconstruções de histórias gregas, bíblicas e shakesperianas, entre outras que seguem até Napoleão. Em alguns contos não é muito fácil entender as referências, mas isso se deve à minha falta de cultura, não é culpa do Capek. E tem ainda esse trecho impagável e absolutamente atual no conto “A crucificação”, de uma conversa de Pilatos com Naum a respeito da crucificação de Jesus e dos dois ladrões:

“- Mas dize, por favor: qual foi o crime do homem da direita, e do homem da esquerda? (...)

- É o seguinte – explicou Naum -, ora as pessoas crucificam o da direita, ora o da esquerda. Sempre foi assim na História. Cada época teve seus mártires. Há períodos em que atiram à masmorra ou crucificam aquele que lutou pela pátria; em outros momentos, é a vez dos que anunciam que se deve lutar pelo bem-estar dos pobres e dos escravos. Esses dois tipos se revezam, e cada um tem seu próprio período. (...)

- Mas, então, por que crucificaram aquele, o do meio? – indagou Pilatos.

- Bem, é o seguinte: se o da esquerda estiver por cima, irá crucificar o da direita; mas, antes de tudo, crucificará o do centro – respondeu Naum. – Se o da direita vencer, crucificará o da esquerda; mas, antes de tudo, crucificará o do centro. Pode ser, também, que as coisas se compliquem e haja luta. Nesse caso, o da direita e o da esquerda irão crucificar o do centro, porque este não se decidiu com qual dos dois deveria ficar”.

06/02/2019 – DESZÖ KOSZTOLÁNYI

Li mais quatro contos desse húngaro, além de “Auréola cinzenta”, que eu havia lido mês passado. E, como neste primeiro conto, os demais também se destacam por um clima desolador e angustiante. Os personagens podem estar aflitos para recuperar alguma emoção perdida da juventude, podem andar errantes por uma cidade desconhecida na tentativa de achar o seu espaço no mundo, podem fugir desse mundo louco e caótico para se refugiar na segurança dos livros, e mesmo os que pretendem causar uma graça, pregar uma peça em outro, acabam de alguma maneira sucumbindo à própria angústia. São esses os materiais, respectivamente, de “Velhos”, “O errante de Veneza”, “O leitor” e “O louco de abril,” quatro contos que são a um tempo líricos e existenciais, lembrando algo do que já se fez tão bem na Rússia, mas acrescentando uma pungência, uma dor, um sabor todo especial. Merece ser bem mais conhecido.

06/02/2019 – FRIGYES KARINTHY

Li um único conto desse outro húngaro, mas é um conto e tanto. “Por favor, professor” é dividido em várias peças, todas relacionadas às desventuras de um moleque na escola. Lemos situações como o atraso para chegar à escola, a chamada oral, a reprovação e duas das partes que mais gostei, a que trata das justificativas para um boletim com notas baixas e a da bagunça protagonizads pelos alunos em um momento em que não havia professor em sala. Não se trata de textos bobinhos, são, claramente, textos que só um adulto poderia escrever, e é muito fácil conseguir se identificar, há muita “universalidade” nos cenários que ele pinta, tanto que pode ser aplicado no Brasil de nossos dias. São episódios que podem ser cômicos (e o escritor tinha mesmo uma boa verve humorística), mas também densos e até mesmo dramáticos. Isso tudo usando e abusando do fluxo de consciência e da troca de vozes, em um ambiente caótico que, por vezes, atinge o surrealismo, mas que pode ser lido com muita avidez. Gostei bastante.

06/09/2019 – GÉZA CSÁTH

Já deste húngaro eu não gostei muito. Três contos eu li: “Johanna”, “Ópio” e “Matricídio”. Desses, o que mais gostei foi o primeiro, embora não tenha simpatizado nem um pouco com os personagens, que ficam tentando imaginar as aventuras amorosas da sua locatária. Mas termina daquela forma desoladora que não sei não se algum dia eu não vou chamar de “húngara”. “Ópio” é uma divagação proustiana, daquelas que a gente lê, acha bonito, mas não entende direito. “Matricídio” é isso o que o nome sugere. Trata-se de duas crianças que assassinam a própria mãe. Mas até chegar a esse fim tenebroso, elas passam ainda por muitas monstruosidades cometidas contra animais. Não recomendável para estômagos fracos.

07/02/2019 – GYULA KRÚDY

O outro húngaro que li foi esse, através de seus dois contos complementares: “O último charuto no Arabs Szürke” e “O jornalista e a morte”, cada um esmiuçando como uma parte passou as últimas horas antes de um duelo. Os personagens são esquisitos como aqueles que vieram à literatura a partir do Gógol. Fica-se sabendo como é que comiam as classes altas e baixas da Hungria de 100 anos atrás, e mais algumas particularidades da divisão de classes existente na época. Não é reflexivo como eu desejaria. Mas pode se extrair alguma reflexão através da banalidade da morte em contraste com a vida cotidiana.

07/02/2019 – CONTOS HÚNGAROS

Essa “hungaraiada” toda aí eu li em “Contos húngaros”, coletânea organizada pelo Paulo Schiller. O meu interesse era ler a primeira seleção de contos húngaros feita no Brasil, pelo Paulo Rónai, mas não achei o livro na biblioteca. De toda forma, o pouco que li neste livro, somado ao que li ao longo da coleção “Mar de histórias”, dá uma boa mostra da grandeza dessa literatura e de como ela precisa ser mais conhecida.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 07/02/2019
Reeditado em 07/02/2019
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