Diário das minhas leituras/21

08/02/2019 – ALUÍSIO AZEVEDO

Li o conto “Demônios”, mas eu não estava preparado para o que li. Eu conhecia o Aluísio Azevedo de “O cortiço” e “O mulato”, então achei que se tratava, igualmente, de um texto naturalista, de forte vinculação social. Mas não era nada disso. “Demônios” é um conto de terror! E como é bem contado! Um ambiente sufocante, cheio de cenas memoráveis. As transformações dos personagens que ocorrem na parte final do conto são algo de épico na literatura! Páginas memoráveis! Li rapidão as 30 páginas, querendo chegar logo ao final da narrativa tão atrativa. Pessoalmente, preferia que a conclusão do conto não deixasse nenhuma explicação, que ficasse tudo na área do fantástico mesmo! Entretanto, devo admitir que foi uma boa saída a que ele arranjou. Um conto que me gostei bastante. Vi por aí quem fale que é também um dos precursores da ficção científica brasileira. Acho que vou ler um livro só de contos do Aluísio.

08/02/2019 – DRUMMOND – PAUL E VICTOR MARGUERITTE

“Nunca esqueça o guarda chuva em casa de amigos: se um minuto depois se lembrar, e voltar à sua procura, surpreenderá o pessoal da casa falando mal de você. E o guarda chuva participando da conversa”. (Drummond citando, em uma crônica, a moral de um conto de Paul e Victor Margueritte).

10/02/2019 – ÁLVARES DE AZEVEDO

Eu não sou fã do Álvares de Azevedo, mas colhi um trecho interessante no conto “Bertram”:

“O que é a existência? Na mocidade é o caleidoscópio das ilusões: vive-se então da seiva do futuro. Quando chegamos aos trinta anos, e o suor das agonias nos grisalhou os cabelos antes do tempo, e murcharam como nossas faces as nossas esperanças, oscilamos entre o passado visionário, e este amanhã do velho, gelado e ermo - despido como um cadáver que se banha antes de dar à sepultura! Miséria! Loucura!”.

11/02/2019 – ÁLVARES DE AZEVEDO

Mais uma do homem, que era sombrio, mas dava umas chineladas que vou te contar, hein?

"E dizer que tudo o que há de mais divino no homem, de mais santo e perfumado na alma, se infunde no lodo da realidade, se revolve no charco e acha ainda uma convulsão infame para dizer - sou feliz!...".

11/02/2019 – MIGUEL DE UNAMUNO

Pinço um diálogo do conto “O que se enterrou”, do Miguel de Unamuno, por achar que ele poderia ser utilizada como epígrafe de algum livro de literatura fantástica:

“– Bem – interrompio-o – e que significa tudo isto?

– Aí está! Você já está a procura da solução, da moral da fábula. Pobres loucos! O mundo se lhes aparece como uma charada ou um hieróglifo cuja solução é preciso descobrir. Não, homem, não: isto não tem solução alguma, não é nenhuma adivinhação, nem se trata de qualquer simbolismo. Isto aconteceu tal como lhe contei e, se não quer acreditar em mim, azar seu”.

11/02/2019 – MARAVILHAS DO CONTO FANTÁSTICO

Ótima surpresa essa seleção feita pelo José Paulo Paes (achei superior à do Ítalo Calvino, bem mais famosa). Nesses contos são exploradas aquelas “lacunas” no entendimento humano, fenômenos que a humanidade não sabe compreender, e por isso resvala no fantástico e no sobrenatural. O interessante é que, mesmo os contos sendo antigos (o próprio livro é do final dos anos 50), o conteúdo ainda encontra eco nas nossas atuais inquietações diante do desconhecido e dos mistérios da vida e da morte. Temos, por exemplo, em Holloway Horn e o seu “Notícias do futuro”, um jornal com notícias de amanhã. “A coisa no Hall”, de E. F. Benson, lida com estranhos fenômenos, não se sabe se espirituais ou parapsicológicos. “Laura”, do Saki, e “A promessa”, de Lafcádio Hearn, tratam de vinganças que continuam após a morte. “Do outro lado”, de Jacques Casembroot, fala abertamente sobre a vida no além. “Como um pesadelo”, de Williams Hines, lida com a ideia de que o que acontece com determinada coisa acontecerá também com a pessoa. “O complexo Laocoonte”, de J. C. Furnas, trata de uma estranhíssima materialização de pensamentos ocultos. Dois dos contos de que mais gostei lidam com a questão do tempo, sugerindo que ele não seja tão linear quando a gente acredita aqui, na matéria: “Estou à espera”, de Cristopher Isherwood, em que um sujeito parece fazer uma curta viagem de cinco anos no futuro, e “Candidata a afogamento”, de Adrian Alington, em que o personagem tem uma visão do futuro e age no presente para impedir que ela se concretize. Há uma ótima premissa também em “História completamente absurda”, conto de Giovanni Papini, em que um escritor descobre que a história que estão lhe contando e pedindo para avaliar era a de sua própria vida. Também é curiosa a ideia de uma livraria composta só de livros que nunca foram concretizados, em conto de Nelson Bond. Alguns contos talvez passem um pouco a linha do verossímil, como “Lógica inflexível”, de Russel Maloney, em que alguém resolve testar aquela ideia de que, depois de algum tempo, até mesmo macacos seriam capazes de escrever todos os livros da humanidade, mas é divertido, é interessante, é um ótimo exercício explorar essas áreas que fogem dos atuais paradigmas. O melhor conto do livro é do brasileiro Aluísio Azevedo, o sensacional “Demônios”, conto que pode ser visto como fantástico, como terror e até como ficção científica. Há também o indefectível Hoffmann e o seu “O reflexo perdido” e o Álvares Azevedo com “Bertram”. A escolha desses dois contos permite que se observe muito bem o quanto de Hoffmann havia no Álvares de Azevedo. São contos com um ambiente diferente, carregado de certa sobrenaturalidade e normalmente conduzindo a eventos trágicos. Achei que o conto do Poe, “Silêncio”, não foi uma boa escolha, pois havia muitos outros contos que viriam mais a calhar em uma coletânea voltada à literatura fantástica. Faltou talvez “O horla”, do Maupassant. E o conto termina com Drummond, com o curioso “Flor, telefone e moça”, no qual um morto passa a ligar para a casa de uma mulher depois que ela tirou uma flor de cima da sua sepultura. Improvável pode ser, mas original, criativo. Sei que gostei muito do livro e a cada conto ficava curioso para ver qual ponto nebuloso da nossa misteriosa trajetória cósmica seria explorado.

13/02/2019 – JAN NERUDA

Ando chamando o Jan Neruda de “o Neruda verdadeiro”, o que é uma forma de fazer propaganda. Estou agora apreciando pela primeira vez um livro dele, no caso, “Mala Strana – Vestígios de Praga”, um livro de contos. Entretanto, o primeiro desses contos é muito mais uma novela do que um conto, e quem sabe poderia ser classificado até como romance. Acho, inclusive, que o autor poderia desenvolvê-lo mais, de modo a se tornar um romance mais completo. Seja como for, “Uma semana em uma casa tranquila” é uma espécie de “O cortiço” da República Tcheca. Como no romance do Aluísio Azevedo, Neruda conta, simultaneamente, várias histórias de personagens e famílias que viviam no mesmo endereço, todos eles inquilinos sujeitos a um mesmo senhorio, destacando os seus dramas, as suas crises financeiras, as suas paixões e os seus desencontros. É certo que parece bem melhor viver num prédio em Praga do que em um cortiço no Rio de Janeiro, mas os vizinhos são os mesmos em toda parte, e as formas de interagir com eles permanecem essencialmente as mesmas. Neruda produziu um resultado interessante, com várias sub-histórias, alguns momentos cômicos, mas ainda acho que deveria ter desenvolvido mais.

14/02/2019 – JÚLIA LOPES DE ALMEIDA

Júlia Lopes de Almeida é um grande nome do naturalismo brasileiro, guarda semelhanças com o nosso Aluísio Azevedo, de quem era inclusive amiga, segundo me consta. Mas não tem recebido muita atenção do público (em verdade, a maioria dos leitores nunca ouviu falar nela). Recentemente, saiu uma reedição do seu romance mais conhecido, a “A falência”, o que é uma excelente notícia. Há muitas mulheres que estão sendo resgatadas atualmente na literatura, pois há a consciência cada vez maior da importância delas como escritores, e será ótimo se a Júlia também sair ganhando nessa. “A falência” é um bom livro. A história em si abre muitas abas, pequenas historietas que não dizem respeito à trama principal e que são apenas pinceladas, sem desenvolvimento e conclusão, coisa que eu havia observado já no Aluísio Azevedo. Uma coisa está clara desde o segundo capítulo: a mulher trai o marido. E isso também é bem interessante, porque não se trata de um adultério que vai se consolidando com o desenvolvimento da trama, conforme tanta gente fez na literatura, mas sim um que é exposto desde o início, e em uma época que, mais ainda do que hoje, o adultério feminino era um grande tabu. Ainda mais descrito por mulher. Mas a força feminina do livro não está na esposa, e sim em sua sobrinha Nina e em sua filha Ruth, duas personagens aparentemente secundárias, mas que são quem sustentam aquela família destruída. Merece, pois, a leitura e, mais do que isso, o resgate. Júlia também fazia contos, dos quais já li alguns.

15/02/2019 – JAN NERUDA

Grande escritor esse Neruda, o original. “Malá Strana – Vestígios de Praga” é composto por vários contos e duas novelas ou protorromances (palavra horrível!). Já falei de “Uma semana em uma casa tranquila”, que é 1867. A outra novela é “Figuras (Fragmento de um idílio encontrado entre as anotações de um aspirante a advogado”, escrito dez anos depois. Ah, evoluiu o Neruda, evoluiu mesmo. Essa segunda novela tem um mote muito parecido, isto é, os curiosos tipos que se encontra na vizinhança, bem como os inusitados resultados da interação com eles. Mas, ao contrário da primeira, cujo cenário é caótico e as histórias se misturam sem que se identifique um grande fio condutor, nesta segunda há um narrador bem definido que traça as suas impressões em um diário. O resultado foi um tanto machadiano, ou seja, ficou ótimo. Há muita comicidade no enredo, pois o pretenso advogado é um tanto esquisito como, de maneira geral, são os principais autores de diários na literatura, e não podemos deixar de dar algumas risadas das suas tentativas de aplicar a política da boa vizinhança a partir do momento em que se muda para uma casa em Malá Strana. Compreendemos perfeitamente as razões do advogado ao lidar com os vizinhos e isso nos levar a sorrir diante das situações ridículas que lhe acontecem, porque nós mesmos já temos experiências semelhantes. O autor também brinca com a metalinguagem: de repente, no meio do diário, o advogado cita uma frase de... Neruda. Em suma, achei muito bem construído, superior à novela que abre o livro, pois mais eficaz na sua exposição de vizinhos vivendo histórias entrecruzadas. Os demais textos do livro são, efetivamente, contos. Neles, o que me chama a atenção é que sempre são narrados em primeira pessoa por um indivíduo que lança um olhar ao passado. De fato, todas as histórias dizem respeito a personagens e situações curiosas que o narrador traz à memória novamente. Por vezes ele recua tanto nas memórias que chega à infância, e há aí dois enredos excepcionais: “A Missa de São Venceslau”, em que um coroinha decide passar a noite escondido na igreja para assistir a uma missa que, segundo a lenda, o próprio São Venceslau celebrava à meia-noite, e “De como a Áustria não foi destruída às 12h30 do dia 10 de agosto de 1849”, que trata do pueril plano de um grupo de moleques para derrubar o governo e instaurar uma revolução. São ótimas peças. Outro conto que me chamou a atenção foi “De como o Sr. Vorel esturricou seu cachimbo de espuma do mar”, uma história triste em que se observa que mesmo em uma grande capital europeia, como já era Praga à época, existiam certos preconceitos provincianos, certa prevenção contra os forasteiros, o que poderia levar a resultados muito cruéis e mesmo trágicos, como o exposto. Há mais contos de tipos singulares, como “O Sr. Rysanek e o Sr. Schlegel” e “O Dr. Arruinamundos”, mas o que eu mais gostei mesmo, de todos os contos, foi o que se chama “Escrito no Dia de Todos os Santos”, que trata de uma pobre solteirona que foi enganada por dois fanfarrões que se fizeram seus pretendentes. Há uma construção bem interesse nesse conto, que começa de maneira misteriosa em um cemitério, mas que vai se esclarecendo à medida que a história avança. Pareceu-me que ficou tudo “fechadinho” nesse conto, gostei bastante, sem falar na mensagem triste da história. Ou seja, vale muito a pena ler esse Neruda. Não sei que razões teve o Pablo para que escolhesse justamente o nome dele, mas agora estou convencido de que fez uma excelente escolha.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 15/02/2019
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