"Novo Olhar sobre a Questão Penitenciária"

A portuguesa Anabela Miranda Rodrigues, professora na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e Presidente da Comissão de Reforma do Sistema de Penas e Medidas de Segurança em Portugal, propõe neste livro, através de seu brilhante e experiente olhar, reflexões sobre assuntos que abrangem desde a inclusão do Direito Penitenciário como disciplina obrigatória na formação acadêmica jurídica, a exemplo de países como a Alemanha, Espanha e Itália, até a particularidade da Execução Penal no que diz respeito ao Tratamento Penal e à Individualização da Pena, retomando, neste contexto, o conceito de socialização.

Minha leitura do texto, em razão de minha experiência como Psicóloga Jurídica no Sistema Penitenciário do Paraná, se atém à questão da Execução Penal e suas implicações no Tratamento. A abordagem do Tratamento Penal como um direito do recluso e não como um dever é, no meu entender, o ponto essencial da discussão.

A autora alega, sabiamente, que a imposição de um tratamento compulsório desrespeita os direitos fundamentais do recluso, entre eles, o direito de não ser tratado, implícito no direito de ser diferente. Sabemos, naturalmente que um tratamento, qualquer que seja, (médico, psicológico, etc) é tanto mais eficaz, quanto maior for a participação voluntária do sujeito a ser tratado. Entretanto, em se tratando de uma população especial como é o caso da população carcerária e também de uma modalidade específica de tratamento como é o caso do Tratamento Penal, que teria como objetivo último evitar que o recluso volte a delinquir, o direito à não adesão ao tratamento gera polêmica. Pois, "à magna carta do delinqüente" a sociedade opõe "a magna carta do cidadão" e reclama "por um arsenal de meios efetivos contra o crime e de repressão da violência". (pág. 32)

Na tentativa de amenizar tal polêmica é que o conceito de socialização é retomado e renovado. Este conceito teve seu apogeu nos anos 60 e início dos anos 70, e depois foi declinando até ser substituído pelo modelo de justiça neoclássico, mais repressor. Via de regra as medidas tidas como socializadoras se resumem ao direito do recluso ao trabalho, à educação, à saúde, e à assistência psicológica, e que, muitas vezes, são interpretados pelos funcionários das Instituições Penais no Brasil como privilégios, uma vez que eles próprios não se sentem dignamente contemplados nestes seus direitos de cidadão, haja visto a situação caótica da educação e saúde no país.

Mas a nova visão sobre o conceito de socialização proposta no livro, implica em reconhecer o caráter totalmente dessocializador das Instituições Penais e seus efeitos negativos e criminógenos. Assim uma perspectiva socializadora deve, antes, evitar a dessocialização do recluso. E aí se estabelece a situação paradoxal em relação à imposição do tratamento. Podemos argumentar, por exemplo, que em algumas situações esta imposição é necessária como nos casos de impossibilidade de reconhecimento da necessidade do tratamento (qualquer tratamento): as crianças e os doentes mentais poderiam ser citados aqui. Pois bem, impor o Tratamento Penal ao recluso implicaria então em equipará-lo a uma criança ou a um doente mental. Faço estas observações para ilustrar, e referendar a afirmação de que a imposição implica na infantilização do recluso, e em última análise, em desprovê-lo de responsabilidade, sendo, portanto uma medida dessocializadora a ser evitada. O recluso, nesta nova perspectiva socializadora deve ser sujeito da execução da pena e não objeto desta. O conceito de socialização, uma vez renovado através da premissa da não dessocialização do recluso, deve também ser aprofundado através da premissa da não imposição de valores ao indivíduo.Por outro lado deve ser norteado pela pretensão de “fazer aceitar ao delinqüente as normas básicas e vinculantes que vigoram na sociedade”. (pág.56)

Mas, a que sociedade refere-se aí é outra questão.É salutar lembrar que a autora fala a partir de sua experiência num país europeu, Portugal, cujos presídios não conheço. Posso afirmar, no entanto, que no Sistema Penitenciário brasileiro, um recluso, na ânsia de afirmar sua subjetividade e seu direito à diferença, não precisa se dar ao trabalho de negar-se ao Tratamento. Ao contrário, lhe é necessário reivindicá-lo, uma vez que, quando não inexistente, a oferta do tratamento não responde à demanda da super- população carcerária. A socialização tanto no seu conceito mais amplo, quanto nesta nova perspectiva aqui comentada, parece não ter logrado visto de entrada em nossa fronteira. Daí a importância da discussão do tema. Pois, se o Tratamento Penal deve ser entendido como um direito e não um dever do recluso, certamente seu entendimento como um dever do estado é inquestionável.

Resenha do livro “Novo Olhar Sobre a Questão Penitenciária”

de Anabela Miranda Rodrigues, Editora Revista dos Tribunais.

Rocio Novaes
Enviado por Rocio Novaes em 14/03/2005
Reeditado em 27/04/2006
Código do texto: T6576