Diário das minhas leituras/22

16/02/2019 – TOLSTOI

De Ana Karenina:

"Liêvin observara com frequência nas discussões entre pessoas inteligentes que, depois de grandes esforços, de muitas sutilezas lógicas e de abundantes palavras, os contendores chegavam à conclusão que procuravam demonstrar qualquer coisa que desde o princípio sabiam, mas que não queriam reconhecer para não serem vencidos e que o motivo da discussão resultava de terem gostos diferentes".

18/02/2019 – HENRYK SIENKIEWICZ

Célebre por “Quo vadis”, esse polonês, Nobel da Literatura, tem muito mais a oferecer. Destaco a novela “Bartek, o conquistador”. Trata-se um pobre campônio polonês, extremamente ingênuo, que um dia se vê forçado a lutar contra os franceses na Guerra Franco-Prussiana, de 1870. A perplexidade do sujeito com as razões da guerra é algo de se notar. Através dele percebemos a falta de lógica de todas elas. Bartek, de maneira inocente, acha estranho o fato de que se ele, um indivíduo isolado, matar alguém, precisará responder pelo seu ato perante a polícia, ao passo que, na guerra, a recomendação é matar e premia-se quem mata mais. É um pensamento que parece extraído dos livros filosóficos de Tolstoi. Bartek não tinha nada a ver com aquela guerra, ele não era alemão e não fazia a menor ideia do que era um francês. Entretanto, tinha que obedecer. Algumas mentiras patrióticas foram suficientes para estimular toda a fúria daquele campônio, que se atirou valentemente contra os inimigos. Seus gestos de bravura não passaram despercebidos e ele passou a ser respeitado. Observa-se então o processo de desumanização de Bartek, pois o que a guerra faz com ele é tirar a sua condição de homem. Digna de nota a crise que se instaura na sua mente simples quando descobre poloneses lutando do outro lado. Mas as lutas fraticidas já haviam sido justificadas por outro personagem, que disse: “O meu cachorro não briga com o seu?”. Ao final do conflito, ele volta para a sua Polônia e acha que os seus feitos terão alguma serventia por lá. Não perde por esperar, pois os alemães a que ele havia ajudado o levam à fome, à prisão e ao abandono da sua terra. E, como se não bastasse, há a subjugação de Bartek pelo medo. Já não tem coragem de ser um polonês e vota, obediente como um soldado, nos seus opressores alemães.

20/02/2019 – CAMPOS DE CARVALHO

Campos de Carvalho tem uma das mais irresistíveis linguagens da nossa literatura. É um prosador habilíssimo, impressiona a cadência natural que consegue dar às frases, ainda que elas sugiram tremendos disparates. Lê-se “A lua vem da Ásia” com muita facilidade. Chama-me muito a atenção nesse livro o seu espírito libertário, e mesmo anárquico. O livro é divertido e engraçado durante boa parte do tempo, mas é também terno e comovente. Para mim, o momento mais bonito do livro é esse, já no fim:

“Aos que só choram quando há motivos para chorar, e não costumam bancar carpideiras sobre a nudez ardente da bem-amada ou mesmo de uma simples rameira (quando toda a nossa atenção deve estar concentrada num único ponto, como o arqueiro no instante de visar o centro do alvo), eu formulo aqui um apelo ao mesmo tempo simples e desesperado, como o formularia ao próprio Deus caso ele existisse e estivesse presente, já que não tenho um só amigo que me possa valer nessa angústia infinita. Dai-me, eu vos peço, a receita de não chorar à toa sobre as mazelas e as incongruências deste mundo tão cotidiano, e de ver com os olhos de cego, como vós fazeis, as aparentes belezas deste vasto cemitério sobre o qual caminhamos e que, de tão repleto de mortos, já está até cheirando mal, apesar da primavera que há no céu e nas flores. Dai-me a fórmula de sabedoria que me permita, aos quarenta anos – idade da minha imagem no espelho – contentar-me com o efêmero espetáculo do dinheiro e da mulher nua, e com os fugidios prazeres que nos podem advir do corpo ou do espírito, quando sobre nossas cabeças paira, cada vez mais densa, a gigantesca sombra da morte, com a sua certeza que não admite sofismas nem tergiversações, por mais que a queiramos ignorar em nossos instantes de sono ou mesmo de vigília. Se a morte para a qual caminhamos a passos rápidos – e que ainda hoje pode colher-nos de surpresa, como nos colhe um raio em meio à tempestade – se essa morte é, cada dia mais, de minuto a minuto, a grande verdade contra a qual não prevalece nenhuma filosofia do homem nem tampouco seu incomensurável orgulho, dizei-me como e sobretudo por que devo eu ignorá-la com um sorriso nos lábios, como se este mundo fora o paraíso terrestre e não a terra deserta e sem caminho de que fala a Bíblia, livro que em tudo mais não merece grande crédito. Eu que sempre levei uma vida aventurosa, modéstia à parte, rindo-me de tudo e de todos sem pedir licença ao papa nem ao chefe de polícia, sempre fui no íntimo um pobre espantalho dentro da noite, mais triste do que o palhaço mais triste, com o riso da caveira à guisa de gargalhada. É que o meu riso, que a muitos parecia louco, era em verdade e apenas um pranto disfarçado, como só agora me dou conta de todo, em face desta lacrimorréia aparentemente absurda em que me afogo. Em suma: nada mais vos peço senão que afugenteis a morte da minha vista, já que não podeis afugentá-la das minhas costas, e que me deis o segredo desse filtro que vos faz tão tranqüilos e ao mesmo tempo tão vivos, mesmo com o cheiro de cadáver já exalando de vossas narinas. Dai-me, enfim, a arte de mentir a mim mesmo, eu que não sei mentir nem aos outros, e fazei com que eu pise sobre os mortos como se pisasse apenas sobre esqueletos antediluvianos, que não me dissessem respeito e muito menos desrespeito, dada a minha alta qualidade de ser imortal e indiferente aos abismos”.

21/02/2019 – H. P. LOVECRAFT

Venho tendo certa dificuldade com os contos do Lovecraft, que leio pela primeira vez. Mas cheguei agora em um conto que gostei bastante. Trata-se de “Entre as paredes de Eryx”, uma ficção científica de terror que se passa, simplesmente, em Vênus. Por lá existem cristais valiosíssimos para os humanos, mas que são protegidos por uma civilização semelhante a lagartos, que os usam para fins religiosos. Pois esses lagartos preparam uma armadilha para os humanos que consiste em colocar um cristal grandioso em um labirinto invisível. Literalmente invisível. O humano vê aquele cristal no meio do nada, corre até lá e bate em uma parede invisível. Vai contornando, descobre uma entrada, entra, pega o cristal, mas continua explorando o lugar. É aí que se perde, pois consiste em um complexo labirinto invisível, com bifurcações mil, e o resultado é que o intruso não consegue mais sair de lá, os dias se passam, a comida acaba, ele morre. É interessante que, perto do fim, o personagem de Lovecraft, que tão pouco apreço havia dado aos moradores de Vênus, começa a ter pensamentos mais tolerantes. A própria superioridade que o ser a humano alardeia perde o sentido: “Quem pode dizer que espécie está acima na escala das entidades cósmicas, ou mais próxima de uma norma orgânica espacial – a deles ou a minha?”. O cristal, razão de ser daquela situação, perde o valor: “Deixemos a Vênus o que é de Vênus”. Bem, depois que o homem sucumbe, as autoridades humanas que encontraram o seu diário consideram que as últimas anotações dele “demonstram decadência mental”, algo compreensível na situação em que se encontrava. Ou seja, não dão o braço a torcer. Parece que apenas situações extremas, experimentadas pessoalmente, é que são capazes de fazer com que o ser humano não se sinta a última bolacha do pacote e não use o seu poder e a sua pretensa inteligência para sujeitar todas as outras forma de vida.

22/02/2019 – DRUMMOND

Um trecho da divertida crônica em que Drummond “seca” uma mulher no ônibus que comia milho cozido:

“A espiga consumia-se. Eu sempre com vontade de provar, e mudo e quedo na minha inibição. Não tinha olhos de cão pedinte, não ousaria tanto, mas comecei a duvidar da inteligência e do coração da moça. Então ela não via que ao seu lado estava um senhor carente e desejante de comer daquele milho, e que lhe custaria renunciar a uns poucos grãos, para satisfazer tão humilde carência? Eu era um desconhecido, sim, mas o desconhecido deixa de sê-lo a um rápido olhar de benevolência e duas ou três palavras reveladoras".

22/02/2019 – H. P. LOVECRAFT

Ouvi maravilhas sobre a capacidade do Lovecraft em criar ambientes envolventes, mas a verdade é que a leitura de “A tumba e outras histórias” me decepcionou um pouco. Achei que o excesso de descrições prejudicou bastante o clima de terror, suspense, mistério ou coisa parecida que ele tenta empregar nos seus contos. “Aprisionado com os faraós”, um conto sobre Houdini, possui uma trama bem interessante, o problema é que demora uma eternidade até chegar à aventura propriamente dita (há um longuíssimo nariz de cera). Em geral, notei uma falta de objetividade mesmo nos contos, com exceção de “A fera na caverna”, que é ainda das suas primeiras histórias, por isso, supostamente, não tão bem feitas, mas, de qualquer forma, é uma história que já começa no meio da aventura. O único conto que me conquistou foi o que já citei, o “Entre as paredes de Eryx”. Noto ideias bastante interessantes nos contos, mas a execução do Lovecraft, frequentemente, não me agradava. O que eu li ainda me parece distante do Poe.

23/02/2019 – HENRYK SIENKIEWICZ

Terminei agora “O faroleiro e outros contos”. O conto que batiza o livro eu já havia lido, mas pelo nome “O faroleiro de Aspinwal”. É um belo conto sobre um polonês desterrado que, subitamente, recebe um pouco da sua pátria pelos correios. Mas a melhor obra do livro, para mim, é mesmo “Bartek, o conquistador”, da qual já falei, e que é uma novela. Há ainda mais duas pequenas histórias, o triste “Janko, o pequeno músico”, e o interessante “Sachem”, que, ao mesmo tempo em que escancara a “crueldade civilizatória” da humanidade contra os índios, termina com a insuspeitada (e igualmente cruel) adesão de um dos seus remanescentes aos valores de seus opressores. O último texto do livro também não é exatamente um conto, mas a novela “Devemos segui-lo”, em que, assim como no célebre “Quo vadis”, Sienkiewicz se volta às civilizações históricas, pois trata de um casal de romanos que, por acaso, se vê em Jerusalém no momento da crucificação de Jesus. Achei que o entusiasmo da mulher romana pela doutrina de Jesus se deu de forma muito precipitada, diante de umas poucas palavras que ouviu ao seu respeito, o que achei um tanto inverossímil. Em verdade, eu gostei mais dos textos em que Sienkiewicz fala sobre poloneses.

25/02/2019 – BERNARDO GUIMARÃES

há diferenças notáveis entre a novela e o livro “A escrava Isaura”. Todo aquele núcleo do Coronel Sebastião e da Condessa de Campos não existe no livro. O pai do Leôncio também pouco aparece, e em momento algum chega a se arrepender de não ter dado a liberdade à Isaura. Também me chama a atenção a crueldade e a impiedade dos mocinhos Isaura e Álvaro contra Belchior, o jardineiro corcunda. Isaura o chama de "mísero idiota", "um disforme", e acha que toda a sua beleza e educação não poderiam ser desperdiçadas com uma pessoa desse nível. O nojo de Isaura ao cogitarem se casar com Belchior é o mesmo que tem ao cogitarem se entregar a Leôncio - antes a morte! E o Álvaro, com todo o seu espírito libertário de quem quer ir contra os preconceitos da sociedade, olha com pasmo e indignação para aquele "homúnculo". Já dizia o Rubem Fonseca que aos corcundas não se concedem eufemismos.

26/02/2019 – LÚCIO CARDOSO

Acho “Crônica da assassinada” um livro épico, monumental, dilacerante, à altura dos grandes russos e acima de alguns deles. Mas vi por aí falarem que o livro seria um “monumento ao moralismo”, coisa que muito me chocou, pois seria o último adjetivo com que eu classificaria o livro. A justificativa apresentada foi que os personagens “desviantes” se davam mal. Ora, é preciso uma leitura muito superficial para não ver que nisso está precisamente a crítica do autor – que não só não é nenhum moralista como foi, por muito tempo, deixado em segundo plano na literatura por ser considerado imoral. No confinamento do Timóteo, eu enxergo toda a crítica possível. É o relato da sociedade que ele se propôs a decompor. Era a Minas Gerais tradicional que, como ele disse em uma entrevista, ele queria destruir. É no mínimo curioso ver um dos raros livros a tratar abertamente do incesto como moralista. Vamos pedir para um padre ler e ver o quão moralista ele acha esse livro. Não seria estranho se ele tivesse um impulso no sentido de queimá-lo. Porque nem no embate entre o padre Justino e Ana o padre sai vencedor. Moralista? Não.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 26/02/2019
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