Diário das minhas leituras/23 (Romenos)

26/02/2019 – LIVIU REBREANU

Agora um romeno. Rebreanu é autor de “Isaac Israel, desertor...”, um notável conto que se passa durante uma guerra e envolve dois amigos, um cabo e um soldado. Certa ocasião, os dois saem para o que, aos olhos do soldado, deveria ser uma missão de reconhecimento. Entretanto, o cabo havia recebido a ordem de um tenente para matar o soldado, pois implicava bastante com ele por motivos que não ficam claros. O soldado foi classificado como “desertor” pela manhã e em seguida pediu-se ao cabo que o levasse a algum lugar e desse fim nele – no seu amigo. O soldado a tudo ignora, embora, conforme caminhem os dois, ele suspeite da verdade. Mas frequentemente ela acha que se enganou e que não há nada de errado. Até que o cabo se obriga a contar a ele toda a verdade. Como não queria “pecar”, o cabo pede que ele caminhe na direção do inimigo. O soldado não queria matar, mas para ele não era pecado algum conduzir o seu próprio amigo a uma morte cometida por outras mãos. É tocante a forma como o soldado, apalermado, diz “não quero, não quero”. O soldado não tem querer. Ele já não tinha querer a partir do momento que foi convocado à guerra, para a qual não pediu para ir. Ele não tinha querer quando pediram que se atirasse contra outros seres humanos, seus semelhantes, e que os matasse. E, agora, ele não tinha querer quando o classificaram como desertor e decidiram que precisaria ser eliminado. A guerra é, além da violência, o constante crime contra a consciência dos envolvidos, que não gostariam de fazer o que lhes pedem para fazer, que teriam mil objeções morais a ponderar, mas todas elas são sufocadas, seja por um discurso patriótico e vazio ou pela própria pressão coletiva e a expectativa colocada neles. E dizer que há cristãos que compactuam ou mesmo empreendem tamanho defloramento das consciências, que defendem que a individualidade do ser humano se anule para prevalecer a vontade do mais forte! Em tempo: o conto termina com o suicídio do soldado.

26/02/2019 – EUSEBIU CAMILAR

Outra pérola do conto romeno chama-se “O sorriso”, de Eusebiu Camilar. Um grupo de militares avança, em meio a um contexto de guerra, não se sabendo exatamente o motivo da sua caminhada. Eis que no meio do caminho eles se deparam com um animal, inicialmente interpretado como um lobo, mas depois se descobre que era um cachorro. Esse cachorro passa a seguir dois dos homens, por onde quer que eles vão. É muito interessante como o narrador, um dos personagens, interpreta os pensamentos do cachorro. Assim, por exemplo, quando o cachorro aparece, ele diz que o animal parecia perguntar a eles “Qual dos dois, meus irmãos, tem uma migalha de pão?”. Todos os esforços do cachorro pareciam ser no sentido de chamar a atenção dos dois, para que brincassem com ele ou fizessem carinho nele, mas os homem estavam embrutecidos e, apesar de tentados, reagiam com aspereza à insistência do cachorro. “Nem pensem que quero atrapalhá-los – diziam seus olhos. – Deixem-me apenas segui-los, pois estou só...”. “Como se esforça para não acariciar-me e para dominar o seu sorriso”. “Vamos, amoleça ao menos uma vez o seu coração! Mostre um sorriso, mostre-o uma vez sequer, pois não posso viver sem o sorriso de m homem! Será que nem isso você entende? Se tivermos que perecer, pereceremos juntos... mas não me deixem sozinho”. Essas são as palavras que o cachorro parecia dizer com seus olhos e gestos. Mas em um momento começam as detonações próximas ao grupo, o matraquear de metralhadoras e os silvos de bala que colocarão tudo a perder. “Estão vendo? Estão vendo? Agora é tarde demais...”. O narrador diz ainda se lembrar daqueles olhos a perguntarem: “ – Homens, onde está o vosso sorriso?”.

27/02/2019 – GEORG BRAESCU

Esse romeno foi um humorista que escrevia histórias de caserna, com personagens militares que iam do soldado ao general. “O arrulho do pombinho” tem um argumento muito parecido com “Camaleão”, um divertido conto do Tchékhov. “Dois espertalhões” sugere a existência de certas tramoias no exército a partir de problemas domésticos dos militares.

27/02/2019 – CESAR PETRESCU

Outro bonito conto romano associado a guerra é “Meu amigo Jan”, que fala de um capitão que, depois de sobreviver, a duras penas, em uma guerra, voltava para sua vida normal, até o dia em que é visitado pela ordenança de um tenente falecido no combate. O homem tinha uma carta a ser entregue para a família do tenente e pediu ao capitão que a entregasse, pois sabia que ele era amigo do tenente e conhecia sua família. O capitão aceita e vai visitar a viúva. Ele sabia o quanto aquela mulher havia sofrido com a morte do tenente. Durante todas as vezes que a visitou após a guerra, sentia o ambiente lúgubre daquela casa, onde as próprias conversas se davam em tom baixo. Entretanto, qual não foi a sua surpresa ao encontrar a casa plenamente cheia de vida, e a própria mulher esbanjando vivacidade. Até que descobriu que ela já estava casada pela segunda vez, com um homem que dizia até que a guerra teve o seu lado positivo para a Romênia. Com isso, ele concluiu que não tinha mais sentido entregar a carta do falecido. Decidiu então entregá-la à irmã e ao pai do tenente, a quem aquelas palavras ainda fariam sentido. No entanto, também a irmã e o pai se mostram muito bem, ela vai se casar, a colheita foi boa, a guerra trouxe algo de bom para a Romênia. O tenente havia sido esquecido, o que fez com o que o capitão se afastasse, quase com ódio, indignado por aquela indiferença – que também era a dele, afinal, já sequer se lembrava do tenente até o momento em que lhe deram aquela carta. Caminhando pela rua, ela via as pessoas e pensava que cada uma havia perdido um ente querido na guerra, um irmão, um marido, um noivo, mas todos se esqueceram. Também ele passou então a tratar os acontecimentos da guerra como “espectros” que não mereciam ser desenterrados. A vida vencia e os mortos ficavam mortos como sempre.

27/02/2019 – ZAHARIA STANCU

Em “Flores na terra”, há uma interessantíssima visita do narrador-personagem a um cemitério alemão em Bucareste. Fala-se, inicialmente, dos mortos romenos durante a guerra, tantos que não eram sequer enterrados pelos alemães, permanecendo em crateras ou nas covas abertas por granadas, jazendo na mesma posição em que caíram. “Embaixo dos mortos cresceu erva miudinha; em torno de seus ossos, envolto em trapos, brotou erva alta e grossa. O sangue deles foi absorvido pela terra, que as chuvas lavaram”. Mas também alemães morreram e o narrador percorre o pequeno cemitério dedicado a eles, vai observando as lápides e começa a fazer conjecturas a respeito da trajetória daqueles nomes. Ele destaca expressões como “Gott mit uns” (Deus está conosco) e “Deutschland über alles” (Alemanha cima de tudo”, ressaltando o que elas têm de irônico. Vai então imaginando as trajetórias de cada alemão morto, as suas expectativas, os seus sonhos, as suas alegrias, tudo terminado com a morte e o sepultamento em Bucareste. E por entre os túmulos brotaram flores, pobres flores dos ricos campos da Valáquia.

27/02/2019 – GEORGE CALINESCU

“Tiro ao alvo” foi incluído em “Antologia do conto romeno”, mas não é um conto, e sim o fragmento de um romance (“A cômoda preta”). Ali se observa o divertimento de soldados alemães durante a guerra, que fazem tiro ao alvo para acertar os “contornos” de pessoas reais encostadas numa parede. E depois eles tacam fogo nos barracões onde viviam os judeus que não haviam ainda morrido de fome. “As labaredas eram tão grandes que parecia dia em torno dos barracões”. Duas moças judias que haviam sido objetos da “brincadeira” de tiro ao alvo correm até lá para ajudar, mas são impedidas, levam um tiro e morrem.

27/02/2019 – NAGY ISTVÁN

“O sobretudo de peles” é um dos poucos contos de tom mais “cômico” da “Antologia do conto romeno”, mas não se pode dizer que seja um texto essencialmente engraçado, pois ele diz respeito a graves problemas sociais. É o caso de um mendigo que se vê, subitamente, presenteado com um sobretudo de peles, e de todas as desventuras e injustiças que lhe ocorreram em consequência do que era para ter sido apenas um gesto de caridade. Nota-se, também, a questão do orgulho na caridade, tema que seria explorado de forma magistral num conto que gosto muito “Um anjo de caridade”, do turco Necdet Ökmen.

27/02/2019 – FRANCISC MUNTEANU

Notável o conto “O pintor do gueto”, que tem como pano de fundo a Segunda Guerra, sem que, para isso, se fale nos campos de batalha. A história se passa não na Romênia, mas em Budapeste, numa época em que imperava as “leis raciais” que segregavam os judeus em um gueto da cidade. Podemos observar como funcionavam as questões de acesso a esses lugares. Vemos o preconceito contra os judeus em toda parte, mas mais personificados em um personagem que, se bem que tenha curtas aparições, é um salazista notório, ou seja, um seguidor húngaro do nazismo. Em meio a isso tudo, há a história de uma atriz que devia a sua própria carreira à ajuda de um pintor judeu, mas que, àquela altura da guerra, já não queria ter nenhum tipo de relacionamento com um judeu, pois isso prejudicaria a sua imagem. E então, ao fim de tudo, há o envio dos moradores do gueto para Auschwitz, deixando-nos um nó na garganta.

27/01/2019 – MIHAI BENIUC

“Um prisioneiro morto” encerra a “Antologia do conto romeno” e também diz respeito à guerra. A história se passa em Podeni, para onde se dirigia um pelotão de prisioneiros. A maioria era húngara e estavam sendo conduzidos por um soviético. Os romenos, ao verem aquele grupo, começam a vociferar contra os prisioneiros e, inclusive, tentam apedrejá-los. Então descobrem que há romenos entre eles. E mais, que há um rapaz da própria aldeia de Podeni, que, entretanto, já chegou ali morto. O sujeito, que tinha sangue germânico, havia ido para a Hungria, onde se apresentou voluntariamente como soldado e aderiu às forças nazistas, querendo, inclusive, combater os romenos. Mas era injuriado até mesmo pelos outros soldados, que, ao contrário dele, não faziam questão alguma de estar na guerra. Depois de atingido pela bala que o mataria, foi trazido de volta a sua aldeia natal especialmente “para que os romenos possam ver quem queria esfolá-los”. O pai havia ido para a Hungria uma semana antes de o filho chegar. Por lá, havia se integrado a uma comunidade germânica, embora não soubesse falar o alemão. Esses alemães da Romênia poderiam ser os bucovinos, com origem na Baviera e que para lá imigraram séculos atrás. Embora tenham, mais tarde, voltado a imigrar, inclusive para o Brasil, devem ter tido remanescentes.

27/01/2019 – ANTOLOGIA DO CONTO ROMENO

Bem, depois de ter destacado alguns contos, faço observações mais genéricas sobre o livro. O que para mim se sobressai é a temática da guerra, presente em um número considerável de contos, e sempre com pontos de vista que expressam o horror e a falta de lógica por trás desses conflitos bélicos, capazes de desumanizar um indivíduo e segregá-lo do seu semelhante. Mas é de ressaltar ainda a dimensão social, isto é, a preocupação com os indivíduos mais fracos e vulneráveis sociais, presente em outros textos. “João Roda e a união dos principados romenos”, de Ion Creanga, por exemplo, evidencia que, no fim das contas, é sempre das classes mais baixas que se vai exigir a sustentação de qualquer nação. “Véspera de Natal”, de Alexandru Vlahutza, é mais uma daquelas histórias pungentes sobre a pobreza na época das festas. “O cobrador de impostos”, de Ion Alexandru Bratescu-Voinesti (de quem eu já havia lido, no começo do ano, “Nicolauzinho mentira”), evidencia os dramas pessoais e a dificuldade de sustento até mesmo de quem ter por profissão cobrar imposto dos outros. Em “A fonte entre os choupos”, de Mihail Sadoveanu, nota-se os ciganos que se tornam assaltantes para conseguir sobreviver. Já em “Radu”, de Tudor Arghezi, aos problemas sociais se acrescenta uma profunda nota lírica. São líricos também esses contistas romanos. Sadoveanu também aparece com o significativo “O trágico fim de Nechifor Lipan”. Alexandru Sahia comparece com aparentemente despretensioso, mas igualmente trágico “O engole-espadas”. Eusebiu Camilar, de cujo conto “O sorriso” já falei, aparece com o lindo “Delta”, que alia um drama pessoal a uma tentativa de domesticação de um lobo – os lobos também são o tema de outro conto de Sadoveanu, “Na ilha de Caliniuc”. Destaque também para o caráter existencialista de “Vida mutilada”, segundo conto de Vlahtuza a aparecer no livro. Há ainda uma antiga lenda romena, “O mestre Manole”, que, embora bonita, também é bastante cruel, e “O círio pascal”, de Ion Luca Caragiale, que eu já havia lido sob um título parecido, mas que não me chamou muito a atenção. Meu único “porém” para esta antologia é a decisão de incluir fragmentos de romances ou outros textos que não contos. Além de “Tiro ao alvo”, de George Calinescu, há “As aldeias”, de Geo Bogza, e “Os cardos de Baragan”, de Panait Istrati, que, além de extraídos de textos maiores, são excessivamente descritivos para um brasileiro que nunca esteve na Romênia e que não está em condições de compreender os detalhes geográficos. Seja como for, é um livro que merece uma boa lida, há algumas boas pérolas nele que merecem atenção.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 01/03/2019
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