Diário das minhas leituras/29

18/05/2019 – RABINDRANATH TAGORE

Um pouco mais sobre “O abandono”, belíssimo conto do Rabindranath Tagore. Um moço brâmane, órfão de tudo, depois de um naufrágio, é meio que “adotado” temporariamente por uma família que fazia uma viagem para recuperar a saúde da esposa. É precisamente essa esposa quem mais se dedica ao jovem brâmane, apreciando e incentivando os seus dons e habilidades. Entretanto, depois de alguns dias, quando esse jovem já estava reabilitado e se sentia totalmente à vontade na casa (até mesmo abusando da hospitalidade), o cunhado dessa esposa aparece e os dois se dão tão bem que o pobre brâmane fica esquecido. Torna-se amuado, arredio, quer chamar a atenção da esposa, mas sem muito sucesso. Por fim, a família decide voltar e ele, é claro, não será convidado a acompanhar. O jovem passa ainda por humilhações cometidas pelo cunhado e resolve se vingar tomando dele um tinteiro, objeto que o sujeito muito apreciava. A acusação de roubo logo cai sobre ele, mas a esposa resolve defendê-lo. Mais tarde, ao se despedir do jovem, ela irá encontrá-lo sem querer em meio aos objetos dele. O brâmane percebe que o seu segredo foi descoberto, deixa todas as suas coisas para trás e desaparecer. A mulher joga o tinteiro no rio e não permite que os homens revistem as coisas dele. Uma história triste, mas bonita e, como falei, fácil de se identificar para todos aqueles que já experimentaram o que é sofrer de carência.

21/05/2019 – ARTHUR SCHNITZLER

“Contos de amor e morte” é realmente o nome que melhor caberia a essa coletânea do austríaco Arthur Schnitzler. A tônica dos contos são os relacionamentos amorosos que culminam, em um determinado momento, com a morte de um dos envolvidos. Há traições para todos os gostos, assim como duelos, essa forma nobre a honrada de se cometer um assassinato. Schnitzler é um escritor eminentemente psicológico, e talvez até psicanalítico, como bem prova a estima que lhe devotava o Freud. Se tem uma coisa que coloca o nosso juízo a perder, afinal, é essa história de “amor”. Gostei de “Os mortos calam”, sobre um acidente de coche sofrido por um casal de amantes e de como a mulher, para não se ver envolvida em escândalos, fugiu da cena, deixando o amante morto. “A sina do Barão von Leisenbohg” também se destacou para mim, sobretudo por conta do seu final, quando se percebe que toda uma vida devotada a uma pessoa não foi suficiente para evitar a perfídia do objeto da sua adoração. Há também uma novela, “Fuga para a escuridão”, cujo tema não é tanto o amor, mas a loucura. Schnitzler sabe como explorar pensamentos doentios. O conto que mais gostei, no entanto, é o único que não tem nada a ver com amor. “A profecia” é um conto de literatura fantástica. Um vidente ou coisa do tipo faz uma previsão ao sujeito de onde ele estaria exatamente dez anos depois e todas as coisas concorrem para que essa previsão se confirme durante a encenação de uma peça de teatro. Não tem amor, mas tem morte. Seja como for, devo admitir que a alta expectativa que eu tinha com esse livro, a partir das leituras de contos como “O Tenente Gustl” e “A mulher do filósofo” não se confirmou totalmente. Achei que gostaria mais. De toda forma, é um nome que precisa ser muito mais conhecido que vem sendo na atualidade.

24/05/2019 – SHERWOOD ANDERSON

Estou lendo os contos de “Winesburg, Ohio”. Como é tradição no conto americano, Anderson escreve histórias densamente povoadas e, por isso, nada mais natural que ele reúna toda essa gente em uma só cidade. Da mesma forma que vários contistas do seu país, ele também focaliza aqueles aspectos que, a um primeiro olhar, mais pareceriam estranhos na personalidade de cada um. Não se trata de juntar uma porção de gente esquisita, mas de evidenciar que nós mesmos, os seus leitores, também somos gente esquisita, que até tenta disfarçar as suas excentricidades, mas elas saltam aos olhos de qualquer um que se disponha a uma observação mais atenta. Como a vida de uma cidade pequena do interior é altamente propícia não apenas para reunir tipos singulares, mas também para expressar hipocrisias de julgamento por parte das pessoas comuns, tem-se como bastante interessante a unidade temática desta obra.

25/05/2019 - KAREL CAPEK

Li o conto “A empregada me rouba”, desse excepcional escritor tcheco. Que conto delicioso. Lê-se com muita naturalidade do começo ao fim, o que não deve ser apenas mérito da tradução. Como o nome do conto revela, trata-se de um sujeito que descobre que estava sendo roubado há muito tempo pela sua empregada. Em boa parte isso era resultado da própria omissão do sujeito, que deixava à empregada a missão de “pensar” por ele no que se refere a todas as necessidades domésticas. Assim, quando essa empregada aconselhava-o a comprar novas roupas, uma vez que as anteriores já estavam em péssimo estado, ele não hesitava em ir comprá-las, sem saber, no entanto, que a mulher levaria esse material novo para o seu próprio armário e, aparentemente, repassaria mais tarde ao seu sobrinho favorito. Ao que parece, a mulher afanava não apenas roupas, mas qualquer quinquilharia sem utilidade aparente que dava sopa na casa do sujeito – aliás, um viúvo. Bem, uma vez constatado esse roubo, o conto ganha uma dimensão psicológica interessantíssima. O viúvo percebe a dependência que tinha de empregada e, ao mesmo tempo, parecia querer evitar qualquer tipo de conflito e, por isso, não demorou a se predispor a perdoar a empregada, desde que ela reconhecesse o erro e pedisse perdão, provavelmente chorando. Ele tem várias oportunidades de ir falar com a empregada, mas evita a todo custo essa “conversa difícil”, deixando para mais tarde. Por fim, é a própria empregada que vai procurá-lo, sabendo já que o cara havia mexido no armário dela, onde havia descoberto as suas coisas. A mulher de fato estava chorosa, mas a reação dela, embora seus furtos fossem tão evidentes, era o de uma mulher ofendida, a de alguém que não poderia aceitar o fato de ser tomada como uma ladra – embora o fosse de fato. Vai aí um mecanismo de defesa psicológico dos mais interessantes. A ladra, que não podia aceitar essa ofensa, sai para fazer as suas malas e ir embora. E o cara, que quer a todo custo evitar o conflito e que, além disso, não está muito disposto a assumir responsabilidades, pensa: “E se eu me casasse com ela?”.

28/05/2019 – SHERWOOD ANDERSON

Do conto “Artificialismo”, pinço essa pérola:

"Há uma ocasião na vida de todo rapaz em que ele se volta e pela primeira vez contempla o passado. Talvez seja nesse momento que ele atravessa a linha divisória entre a infância e a idade adulta. O rapaz caminha pelas ruas de sua cidade, pensa no futuro e no papel que representará no mundo. Despertam dentro dele as ambições e os arrependimentos. De repente acontece alguma coisa; ele para debaixo de uma árvore à espera de uma voz que o chame pelo nome. Fantasmas de velhas coisas apresentam-se-lhe ao espírito, as vozes exteriores segredam-lhe uma mensagem sobre as limitações da vida. Deixa de repente de ter certeza absoluta de si e de seu futuro e se torna absolutamente inseguro deles. Se se trata de um rapaz de imaginação viva, uma porta se lhe abre e pela primeira vez lhe é dado lançar um olhar sobre o mundo, e então vê, como se desfilassem em procissão à sua frente, as incontáveis figuras de homens que antes dele surgiram do nada para o mundo, viveram suas vidas e voltaram mais uma vez ao nada".

28/05/2019 – ARTHUR AZEVEDO

Em vez de indicarem "Iracema" e o "O guarani" para adolescentes, com frequência levando a traumas que durarão a vida toda (e queimando o filme do bom José de Alencar), as escolas poderiam indicar livros como esses contos do Arthur Azevedo. É um escritor clássico, mas suas histórias são perfeitamente compreensíveis para o leitor jovem de hoje. São textos curtos e divertidos que mostram que a literatura brasileira não precisa ser esse bicho-papão todo. Há o célebre "Plebiscito", sobre o pai que não queria admitir para a família que não sabia o que isso significava. Há várias anedotas transformadas em conto, com destaque para "Piedade filial", sobre o sujeito que pede para um pintor fazer o retrato do pai que está em Portugal, mas sem ter modelo algum para a imagem. Ao ver a obra pronta, ele conclui tristemente: "Como meu pai está mudado!" Preconceitos, burocracias, casos extraconjugais, tudo repassado de forma bem humorada e acessível. Muitas salpicadas irônicas ao longo dos textos, das quais a minha favorita foi essa, do conto “O galo”, também uma anedota:

"A roceira agradeceu a Providência que lhe enviava o doutor e pediu a este que examinasse o doente e o pusesse bom o mais baratinho que lhe fosse possível".

Vários desses textos foram publicados semanalmente em jornais e de certo representavam um bom respiro para o leitor. É preciso escritores como o Arthur Azevedo nos jornais de hoje. Além de tudo, é um livro que se lê numa sentada.

30/05/2019 – CRISTÓVÃO TEZZA

Uns ligeiros comentários que fiz em 2012, após ler o célebre “O filho eterno”: “A narrativa é realmente muito envolvente, especialmente nos primeiros capítulos. Achei que nem sempre vieram a calhar as memórias do personagem. Tem bons momentos densos. Achei a parte final bastante tocante, com o filho se dedicando a torcer pelo Atlético. Queria ler mais sobre a relação com sua irmã. Mas gostei”.

02/06/2019 – HENRY JAMES

Gostei bastante do conto “A humilhação dos Northmore”. Henry James é um daqueles escritores que eu tenho um certo “medo” de ler, mas creio que este conto me convenceu a tentar ler um livro apenas dele. É sem dúvida muito bem contada e muito bem construída a história da viúva que pretende fazer “justiça” pela memória do seu falecido marido, um homem que viveu à sombra de outro, menos capaz, mas mais famoso. Ela teve que suportar a publicação póstuma das cartas desse outro homem, achando que, com isso, nem mesmo a morte faria justiça ao seu marido. Entretanto, essa mesma publicação é que revela à sociedade que aquele homem famoso não era tão extraordinário quanto supunham, pois o seu material como missivista era bastante medíocre. Acompanhamos todas as evoluções psicológicas dessa mulher, até o seu desejo de “vingança”, do qual, por fim, abriu mão, embora não do seu desejo de justiça.

03/06/2019 – ATLAS UNIVERSAL DO CONTO

A seleção de contos desse livro tem os seus méritos, seja por favorecer contistas ainda não celebrados como deveriam (Merimée, Schnitzler, Andreiev), seja por apresentar contos do Paquistão, do Iraque, de Angola e da África do Sul. Tirando os contos que eu já conhecia, os que mais me agradaram foram o do Jack London (“A malandragem de Porportuk”) e o do Henry James (“A humilhação dos Northmore”). Mas o conceito de “atlas” por trás do livro é um tanto confuso e não se chega a entender exatamente qual foi o critério de seleção. Se fosse um conto de cada país, como no belíssimo “Maravilhas do Conto Universal”, seria alguma coisa, mas temos três contos da Itália, três da França, três do Brasil, dois da Inglaterra, e nenhum, por exemplo, dos países da Escandinávia. No fim o que parece é que se quis fazer uma seleção tão vasta quanto possível em relação aos países, mas nem por isso deixando de privilegiar alguns, em detrimento de outros. Talvez se a coleção fosse para frente (e a intenção, pelo visto, era fazer mais de um volume), essa distorção fosse menor e o conceito de “atlas” ficasse um pouco mais claro, pois, como está, parece apenas um mote criado para se diferenciar de várias outras coletâneas de contos universais. Seja como for, essa classificação como atlas não é um grande problema para a leitura. Problema mesmo são os comentários feitos após cada conto. Você mal termina de ler um conto e, antes que possa ruminar direito a respeito, vem alguém "explicar" o que a gente acabou de ler. É uma interpretação não pedida que acaba por roubar a do leitor, ainda mais que o crítico dá à sua visão um caráter de verdade absoluta. Em tudo ele enxerga simbolismos e metáforas mil, às vezes corrigindo o próprio narrador do conto por não ter percebido o que só ele, iluminado, foi capaz de desvendar. Nada espanta o crítico também: tudo é uma reconstrução de histórias antigas, tudo é uma reformulação de velhos mitos que apenas o crítico, em sua vasta erudição, é capaz de nos apresentar – por mais estapafúrdias que essas relações nos pareçam. O crítico busca, praticamente, as motivações psicanalíticas de cada conto. Honestamente, eu achei isso muito, muito chato. Eu preferia ter informações sobre a biografia dos escritores, como fazem as outras antologias de contos universais. Nesse ponto a obra ficou realmente devendo, pois nada diz deles.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 03/06/2019
Reeditado em 03/06/2019
Código do texto: T6664232
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