Diário das minhas leituras/30

10/06/2019 – CONTOS CUBANOS DO SÉCULO XX

Cuba foi mais um país em que mergulhei na literatura de textos curtos. Esse mergulho rendeu-me o lindo “Tobias”, de Félix Pita Rodriguez, conto existencialista e filosófico, mas também humano. É até curioso como ele nos faz ver que até mesmo um assassinato pode ser um grande ato de humanidade. Um conto que também se sobressaiu foi “O automóvel”, de Rubén Martínez Villena, um conto vertiginoso em que se pode imaginar estar prestes a sofrer um acidente, dentro do carro em que o marido enganado dirige a fim de se vingar dos amantes. Um conto interessante também é “Barbatanas de tubarão”, de Enrique Serpa. “Inocência”, de Miguel de Carrión, é uma boa pedida também, do mesmo modo que “Don Cayetano, o irresponsável”, de Alfonso Hernández Catá, que era até então o único cubano de quem eu já havia lido alguma coisa. Gostei também de Armando Leyva com o seu “Um flirt estranho”. Em compensação, houve outros contos, principalmente “Viagem à semente”, de Alejo Carpentier, que eu não consegui ler até o final. Deve ser altíssima literatura, pois não entendi praticamente nada. Há, como não poderia deixar de ser em se tratando de Cuba, contos “revolucionários”, sobretudo na parte final do livro, mas achei que essa literatura mais “comprometida” ficou a dever. Gostei, isso sim, de “O soldado Eloy”, de Samuel Feijóo, porque ali se trata de uma crise de consciência no meio militar, levando a um trágico desfecho. Em suma, valeu a pena conhecer, mas frise-se que há momentos em que a leitura não é das mais fáceis.

12/06/2019 – MARAVILHAS DO CONTO HUMORÍSTICO

Divertida essa seleção. Abre com o “Feuille D’Album”, da Katherine Mensfield, que tem um final dos mais engraçados. O. Henry com “Mamon e o arqueiro” também é uma boa peça, bem como “O vingador”, um do Tchékhov que eu ainda não conhecia. O húngaro Jenö Heltai, com o seu “Escola Berlitz”, também se sobressai. O conto que mais me agradou no livro, no entanto, foi o de Karel Capek, esse surpreendente tcheco que, em “A empregada me rouba”, não faz apenas um conto de humor, embora também o seja, mas quem se atentar perceberá o quanto há de psicológico nesta obra. Também merece destaque o Arthur Azevedo, com “De cima para baixo”. Trata-se de um escritor que precisa ser mais conhecido entre nós. Sua verve humorística é forte e seus textos são uma espécie de antepassados das histórias do Fernando Sabino. Muitos contos são anedotas mais trabalhadas, caso do bom “A truta” de Jerome K. Jerome, ou de “Tudo vai sem novidade”, de Gervásio Lobato. Alguns contos são verdadeiras aventuras, mas repletas de eventos disparatados, como o curioso “O rapto de Bookie Bob”, de Damon Runyon, ou “Um repórter entre selvagens”, do Averchenko. Max e Alex Fischer fazem em “Estela” um tipo de conto difícil de fazer, pois, em verdade, não há uma narrativa propriamente, e sim uma lista das despesas de um homem com o passar dos meses. É um tipo de construção que, aqui no Brasil, é mais comum à crônica humorística. Exige bastante criatividade. Tipos singulares são descritos pelos brasileiros Aluísio Azevedo, em “Polítipo”, e João do Rio, em “O homem de cabeça de papelão”. É interessante que, nos dois casos, os escritores não estão interessados, meramente, em apresentar personagens inusitados que possam divertir o leitor, mas em fazer, através deles, análises sutis do comportamento da sociedade. No caso de João do Rio, a crítica é até mais direta e aberta, evidenciando tudo o que pode acontecer aos que ousam “pensar fora da caixa”. Já Aluísio trata de um sujeito comum que “se destacava justamente pela sua extraordinária vulgaridade”. O célebre Mark Twain não poderia ficar de fora e comparece com “Como publiquei um jornal agrícola”, em que também, para além do humor, se percebe a crítica voltada à imprensa de maneira geral. Outra crítica associada à imprensa é a de Achille Campanile, em “O incêndio do Palácio Folena”, quanto faz um colunista social descrever com grande pompa um evento trágico. Há ainda o August Strindberg com “Amor e pão”, único conto que aparece duas vezes ao longo da coleção “Maravilhas do Conto” – e é um conto muito bom, na mesma linha do “O feijão e o sonho” do Orígenes Lessa. Tadeus Rosewicz aparece com o “O casal ideal”, um daqueles contos que mostram que toda a felicidade atribuída a certos casais não a uma análise mais acurada. Em suma, há histórias bem legais no livro, embora nem todas sejam tão engraçadas assim, e algumas sejam até um tanto estranhas.

14/06/2019 – FÉLIX PITA RODRÍGUEZ

Ainda sobre o belíssimo e existencialista conto “Tobias”. O personagem encontra o dito Tobias em uma prisão. Uma das filosofias do homem:

“Assim que nascemos já começamos a morrer. Cinquenta, sessenta, oitenta anos, mas tudo é agonia, tudo é ir morrendo pouco a pouco, como se gasta um sabão sem que caiam os pedaços. De repente um galhinho de espumas se separa e permanece. São as lembranças. Não estão em parte alguma, não têm corpo nem alma, ninguém pode vê-las, e são duras como o ferro. Se quisermos saber de que maneira estamos feitos, temos que olhar nelas como um espelho”.

Assim disse Tobias e acrescentou:

“Graças ao saber como fomos é que somos. Se não fosse pelas lembranças, não estaríamos aqui nem em parte alguma. O caminho percorrido, esse é o caminho. O que estamos percorrendo não é mais do que um pedaço de terra debaixo dos pés”.

E prosseguem as suas reflexões, agora sobre a morte:

“Um morto não seria mais do que um homem que sai do baile e não volta a entrar (...). Não seria mais do que isso, não fosse pelas lembranças, que ficam dando voltas ao redor do vazio que deixou no ar o homem morto. Aí está o mal, nessas lembranças às que não se pode matar. É então quando a gente percebe o que significa um homem. A gente estava acreditando que não era mais do que isso: uma cabeça com o que tem dentro dela assomando pelos olhos, umas mãos se mexendo como aranhas na frente do peito, e uns pés que servem para não ficar sempre olhando a mesma coisa. E não era assim. Não era assim porque tudo aquilo começa a se transformar em carniça quieta, e no entanto o homem continua vivo – com seus sorrisos e suas fomes, e seu modo de dizer que está com frio ou que gosta de fumar em jejum –, nas lembranças das pessoas. Você não pode matar o jeito que tinha aquele homem de pôr a mão sobre a cabeça de seus filhos, enquanto fiquem as cabeças de seus filhos andando pelo mundo. Não pode matar o jeito que tinha de pegar o cigarro entre os lábios, e que sua mulher continua vendo, como se estivesse ali, fumando”.

E esse homem, esse filosófico Tobias, também havia matado um seu semelhante – era por isso que ele estava na prisão. Ele havia encontrado um velho em uma cabana e o velho tinha a esperança de que ele, como todos os que passavam por lá, pudesse ter passado pela aldeia em que vivia o seu filho. Ele queria notícias do filho, de quem tinha informações de que seria uma pessoa de consideração, um “doutor”. O velho vivia sozinho e sentia a falta desse filho, a quem gostaria de abraçar antes de morrer. Tobias não o conhecia e nem havia passado pela aldeia em que ele estava. Mas, logo em seguida, outro homem veio à cabana do velho, um que havia passado pela aldeia do seu filho e travado conhecimento com ele. Mais precisamente, ele havia encontrado o filho do velho na prisão! Havia cometido diversos crimes, roubos, estelionatos, assassinatos, escândalos por bebedeiras, jogo proibido... E tudo isso foi sendo jogado, sem a menor sensibilidade, no colo do velho que imaginava o seu filho doutor e respeitado. E o cara se diverte muito por ter encontrado o pai daquele “doutor” e se imagina contando a ele sobre quando voltar a vê-lo em outra prisão. Fo então que Tobias se levantou, de faca na mão, e disse que ele não iria contar mais nada, pois “já contou mais do que é permitido contar a um homem neste mundo”. E o mata. Foi por isso que, no comentário anterior, observei que até o assassinato pode ser visto como ato de humanidade.

14/06/2019 – CONTOS UCRANIANOS – A CANOA NO MAR

Uma literatura muito sensível eu encontrei entre os contistas ucranianos presentes nesse livro. Um povo, afinal, muito sofrido é o tema da maior parte das histórias. São pobres campônios tendo que se virar da melhor maneira para conseguir sobreviver e se livrar da exploração dos poderosos. Em “São Nicolau na coletoria”, de Markó Tcheremchyna, são os cobradores de impostos que, na falta de outra coisa para se confiscar, tomam a imagem do santo que era mantida por uma miserável família. Em “A fome”, escrito por Volodymyr Vynnytchenko, o próprio título já explicita a condição dos pobres personagens da trama, mas o sofrimento deles é aumentado pela crueldade, pela perversidade dos agentes policiais que os prendem, pois eles buscam se divertir à custa do sofrimento deles e tentam convencer os amigos a baterem um no outro, em troca de algumas moedas. Questões como a degradação física, encarada com a simplicidade que era habitual a esses campônios, aparecem em “O velhinho”, de Boghdán Lepky. A dor dos que ficam, a exasperação dos que ficam e ainda precisam lutar diariamente a mesma árdua luta, transparece com toda a sua intensidade em “Os filhos”, de Vassyl Stefanyk. E há ainda os dramas do coração, muito bem abordados no lindo “Uma pequena estória sentimental”, de Yury Kossatch, sobre o amor entre a viúva de um capitão e um militar que havia lutado do outro lado, amor que, em verdade, jamais se concretiza, em grande parte porque as pretensões aristocráticas dele não puderam ser mantidas em tempos de penúria. Fora isso, há também contos bastante impressionistas, entre eles o difícil “Na ilha”, escrito por Mykháilo Kotsiubynsky, contos em que se observa a intensa e íntima relação com a natureza ucraniana. Parece certo que os ucranianos não podem ser colocados no mesmo balaio que os russos, por mais que eles compartilhem de uma mesma origem eslava. Mykola Khvylovy, que comparece no livro com o conto “O caminho e a andorinha”, foi um escritor ucraniano que chegou até mesmo a tomar parte em revoltas do tipo “fora Moscou”, ressaltando, assim, a especificidade do povo ucraniano. Vale a pena, pois, insistir na busca por escritores ucranianos. Não deve ter sido à toa que eles pariram uma Clarice Lispector.

20/12/2019 – “CONTOS”, DE JACK LONDON

Acho que dificilmente encontrarei um melhor contista de aventuras que Jack London. Impressiona como ele consegue fazer com que nós realmente nos esqueçamos de nós mesmos e entremos na trama que ele narra. Muito disso, aparentemente, é resultado da objetividade da sua linguagem. London, de fato, não se perde em floreios estéticos, o que não significa que seja superficial. Além disso, ele demonstra ter bastante habilidade em manter o suspense ao longo da narrativa, além de privilegiar situações-limite que aguçam mesmo o interesse do leitor. Nessa seleção, um dos contos que mais gostei foi “Fazer uma fogueira”, em que acompanhamos avidamente a trajetória de um homem em meio a uma tempestade absurdamente fria no Alasca. As histórias de London no Alasca são especialmente boas. “O China”, que é também chamado de “O Chinago”, também me chamou muito a atenção. Ao falar sobre um chinês que foi condenado à morte no lugar de outro devido a uma confusão de nomes (sendo que nenhum dos dois havia cometido o crime que lhe imputavam), e demonstrar como todo o “establishment” não recua em sua decisão, por mais que todos tenham percebido o erro, London expõe a crueldade de uma sociedade que se considerava moralmente superior aos chineses. Os brancos não torturavam os suspeitos em busca de respostas, mas isso não significa que tivessem preocupação humanitária ou algo semelhante – em nome da hierarquia, do sistema e da burocracia, eles continuam sendo cruéis e desumanos. Trata-se, bem se vê, de um conto “intencional”, no sentido de que o autor passa uma mensagem ou uma visão de mundo com destino claro. Entretanto, isso é feito de forma sutil e sem prejuízo literário – ao contrário. Por outro lado, na primeira parte do livro, estão os contos “políticos” de London. Neles, por vezes, a fronteira entre a literatura e o panfletarismo foi transposta. Entre os que mais me agradaram, está “O herege”, que tem, também, o seu caráter propagandista, mas pinta um cenário tão desolador para um pobre adolescente explorado desde cedo no trabalho que é quase impossível não se identificar e tomar o seu partido. Um aspecto interessante, nessa primeira parte dos contos do livro, é a constância que a “fuga” desempenha um papel decisivo na trama. Os personagens de London estão sempre fugindo, seja para escapar da exploração, para fugir de uma “megera” ou para se livrar da vida burguesa. Isso é muito compreensível, se pensarmos na vida extremamente movimentada que London levou, indo de lá para cá. À exceção dos dois primeiros textos, que são testemunhos políticos, nos outros, apesar desse tom, há ainda a mesma habilidade de London em fazer com que adentremos na sua história. Isso é habilidade dos grandes.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 20/06/2019
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