“Bufo & Spallanzani” de Rubem Fonseca

É o segundo romance de Rubem Fonseca que li, o primeiro foi “Agosto”. Confesso que fiquei um pouco decepcionado com o primeiro, aquela investigação policial misturada com a decadência do caudilho entrincheirado no Catete, ficou como que uma coisa mal colada. Sem nunca ter lido um romance publicado entre 1985 e 1986 resolvi pegar livro de Fonseca, o “Bufo & Spallanzani”, que foi publicado em 1986, de acordo com minhas anotações.

Trata-se de um livro com três histórias entremeadas. A primeira é o assassinato da socilite carioca Delfina Delmare uma das várias amantes do escritor Gustavo Flávio. O assassinato é investigado pelo policial Guedes, que é muito parecido com o policial do outro romance de Rubem Fonseca que li, “Agosto”. O marido de Delfina havia descoberto o relacionamento amoroso da esposa, tinha ido à casa de Gustavo e o ameaçado de castração. Guedes tem certeza que Gustavo é o assassino, mas este empurra a culpa para o marido. Mas aparece um homem chamado Agenor que confessa o assassinato. Guedes descobre que Agenor havia sido contratado para assumir o assassinato e o libera. Agenor é assassinado. Guedes vai até Gustavo e diz que ele está em perigo. Gustavo compra uma arma, mas ela é inútil, invadem sua casa e ele é transportado para um lugar em que ele é castrado. Antes do algoz tirar-lhe também o pênis , Guedes invade o local e mata os bandidos libertando Gustavo. Recuperando-se do trauma, Gustavo confessa a Minolta que ele realmente matara Delfina, numa espécie de eutanásia, pois ela estava mortalmente leucêmica e pediu para que ele a matasse, pois não queria enfrentar uma agonia longa e sofrida.

A outra história é o “passado negro”de Gustavo, que na verdade tinha outro nome, Ivan Canabrava ; nesta história Canabrava é um professor pacato que resolveu mudar de vida e foi trabalhar como investigador numa agência de seguros. Ao descobrir que um seguro vultoso foi originado de uma falsa morte( a vítima tomara veneno de Sapo (o Bufo) que associada a Piretro -muito usado hoje em dia pra espantar inseto- dava um efeito de morte aparente). Canabrava investiga a fraude de forma obsessiva, também como uma fuga ao fato que seu casamento se acabara e que tinha sido abandonado pela esposa. Contudo o golpe envolvia também seu chefe na seguradora. Na confusão, ele encontra Minolta, na rua, sem ter para onde ir, ele traz Minolta pra sua casa, mas inicialmente eles não se relacionam sexualmente. Agora associado a Minolta, Canabrava invade o cemitério para provar que não havia defunto na cova

A terceira história se passa num retiro campestre, um hotel fazenda, em que Gustavo se instala com a intenção de escrever o romance intitulado “Bufo & Spallanzani”. Porém neste retiro ocorre um assassinato e Gustavo passa a ser suspeito. Entre os policiais que vêm investigar o assassinato está o Guedes. Esse trecho do romance parece ao romances de Agatha Christie, onde se reúne um grupo de pessoas e de repente acontece o assassinato e vários são os suspeitos. No correr da investigação aparece várias histórias interessantes dos convivas. Os hóspedes eram os músicos Orion e Juliana, o casal de bailarinos Vaslav e Roma, o casal de lésbicas Eurídice e Suzy e um rapaz solitário chamado Carlos. Antes de acontecer o assassinato Gustavo lê um trecho do romance para os hóspedes, um episódio em que Spallanzani tortura um sapo (Bufo) que está em pleno amplexo sexual, queimando-lhe a pata até carbonizá-la, querendo demonstrar que o apetite sexual do animal inibe sua sensação de dor. Em seguida ele desafia os hóspedes a escrever também uma história. Ele passa secretamente um tema para todos (na verdade o tema é o mesmo, sobre sapo). A brincadeira é interrompida pelo assassinato. Suzy foi assassinada logo depois que Gustavo a visita em seu bangalô. Suzy foi morta por sua companheira, Eurídice. As duas se desentenderam porque Eurídice apaixonara-se por Carlos, que na verdade era uma mulher disfarçada; Suzy ameaçou denunciar que Carlos era uma mulher e Eurídice a matou num acesso de raiva. As histórias eram biográficas em contavam algo da vida das personagens e terminavam com algo relacionado com um sapo. Em uma o sapo aparece na história como uma forma de o músico continuar na sua arte, apesar das dificuldades, os sapos cantam durante as noites sem se preocupar com quem está ouvindo, em outra o sapo é usado em um ritual de magia em que o animal e o doente trocam um beijo ardentemente asqueroso.

A relação entre o ser humano e o Sapo interliga toda a história. Ivan Canabrava toma o veneno do sapo para simular sua própria morte e assim provar que Maurício Estrucho tinha simulado a morte para ganhar o dinheiro do seguro. A relação entre o eminente pesquisador medieval Spallanzani, famoso e ridicularizado pela sua teoria da geração espontânea, e o Sapo (Bufo) mostra o quanto que o ser humano martiriza o animal em busca do conhecimento, ao longo dos séculos.

A relação entre os sapos e a humanidade pode ser uma imagem da relação entre o homem e a arte (no caso a literatura), também uma relação de martírio, principalmente se o escritor quer ganhar dinheiro através do trabalho literário. Escrever é uma atividade tão difícil quanto a arte de fazer Ciência ou se ser um músico, ou mesmo um bailarino. Qualquer um que domine minimamente uma língua pode ser escritor, mas não se deve ter a ilusão que seja fácil passar seus pensamentos de forma idêntica ao seu pensamento, por mais brilhante que seja o pensamento. Ao escrever, ao se estudar o tema que está sendo escrito, o autor se envolve com a temática, misturando suas experiências e suas expectativas, numa miscigenação que não é totalmente indolor.

Ao longo do romance há uma grande quantidade de falsificações. Ivan Canabrava é o primeiro nome de Gustavo Flávio, Carlos é na verdade Maria, o método científico de Spallanzani na verdade não é científico, o assassino confesso de Delfina na verdade não é assassino coisa alguma, Suzy e Eurídice não são primas e sim amantes, Trindade mantém o paraíso de seu hotel fazenda incinerando as enormes aranhas que rondam seus hóspedes. A realidade ronda nossas vidas e apenas a falsificação pode nos levar a suportar a existência, sem isso precisaríamos recorrer também ao suicídio e se tivermos a felicidade de Delfina, cuja vida maravilhosa seria destruída por uma doença terrível, de encontrar uma pessoa caridosa como seu amoroso namorado, que se proponha a executá-la da maneira mais indolor possível, não podemos deixar passar essa oportunidade e nos livrarmos da vida estragada pela realidade. Para manter a falsidade somos capazes até de matar, como Eurídice, que matou sua amante pois desejava manter o segredo de Carlos. Isso é o que nos distingue dos sapos, que são incapazes de superar as adversidades, sendo capazes de suportar sevícias terríveis para não mudar seu comportamento, como aquele mito que se colocarmos um sapo numa água e aquecermos a água paulatinamente o sapo morrerá de calor, mas não sairá da panela.

O personagem principal, Ivan Canabrava-Gustavo Flávio, castrado e impotente, reduz a sua vida à capacidade de manter seu falo ereto, sem o que a vida de um homem não é mais útil. Ao confessar ser o assassino de Delfina, ele desafia Minolta-Leitor se ele deve dar um fim a sua liberdade entregando-se como assassino de Delfina, uma vez que não possui mais a capacidade de manter possui mais a capacidade de manter seu órgão viril. Ou seja, como ele não se sente mais capaz de ser uma pessoa útil, se por esse motivo ele pode abrir mão de sua liberdade. A pergunta é deixada no ar para que o leitor responda.

De fato, a partir do momento que ele comete o crime, mesmo que seja com boas intenções ( a eutanásia), ele não pode mais viver livremente sob a proteção da lei. A melhor opção para o torturado personagem seria entregar-se ou sair do país. Mas o que vai acontecer mesmo é que ele vai se auto-inocentar, se auto-justificar, vai estender os princípios de seus limites éticos, vai conviver com seu crime e continuar a viver sua vida da melhor maneira possível. Esta é a humilde resposta deste leitor.

Finkiwan
Enviado por Finkiwan em 22/06/2019
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